TOCS Chatos de Natal
Dia 25 de dezembro, três horas da manhã. O chato deitado em um leito do hospital, resmungando de dor, o TOC-Mem logo ao lado, fuçando no aparelhinho de soro três vezes consecutivas, para depois recomeçar, em um fecha-abre-fecha-abre-fecha-abre eterno, os olhos baços, sem brilho, ambos com os braços queimados, meus pais vomitando de um outro leito, e eu lá, olhando, o único que sobrevivera à praga de natal, porque resolvera comer iaquissoba.
E tudo porque… Eu levei os dois para a ceia de natal. Eu nunca aprendo!
Dia 22 de dezembro, estou eu feliz, em Sorocaba, arrumando as coisas para voltar para São Paulo e, depois, ir para Peruíbe, quando a mãe do TOC-Mem aparece do meu lado, surgida sabe-se lá de onde, praticamente implorando por um favor.
– Será que não tem como você levar ele com você? Passar o natal com os amigos vai ser bom! Toda vez que ele passa o natal com a gente, fica tão doido, mas tão doido, que acaba fazendo três perus!
– Mas vocês são judeus! Por que diabos querem que ele passe o natal comigo???
Encontrei a falha do plano dela; estava sem palavras.
– É que já comemoramos o Chanucá. Você sabe, são oito dias, então dá vazão à… Obsessão dele. Mas natal…
– E por que vocês comemoram natal???
A mulher suspirou, olhando para os lados, o filho, comportado, como todo bom filho de iídiche mame, o cabelo lambido para o lado, vestindo a regata dentro da bermuda, de sandálias, óculos de sol e lambuzado de protetor. E isso porque estava dentro do carro.
– Bom, o pai dele um dia apareceu em casa com uma fantasia de papai Noel no natal, e ele nos pegou no quar…
– Não quero saber! Não quero saber! – gritei, tampando os ouvidos. – Nada de libidinagens natalinas!
– Bom, desde então, tive de dizer que o papai Noel existe.
Retorci-me de nojo, mas me controlei. Como eu odeio aquele velhote obeso!
– Tá bom, tá bom, tá bom. Mas eu não vou ter de me fantasiar e entregar presente pra ele de noite, né?
– Não. Até hoje ele vai dormir cedo, esperando o papai Noel, enquanto nós fazemos a nossa comemo…
– Não quero sabeeeeer!
– Enfim, ele só vê o presente de manhã.
– E eu vou ter de comprar o presente???
– Tó, aqui tem dez reais. Veja o que você consegue com isso.
– Ai, meu Deus!
Respirei fundo três vezes e me controlei. Fazer o quê, né?
– Tá bom, tá bom…
Ela tomou o seu filho nos braços, arrumou-lhe o cabelo, deu-lhe um beijo na testa e mandou que se comportasse. Depois disso, comemorando, desapareceu tão rápido quanto aparecera; já o outro, diligentemente, tomou a mochilinha em mãos e se sentou no banco de trás.
– Ah, nem vem que não vou de chofer! Pode vir pro banco da frente!
Ele saiu do banco de trás, sentou-se no banco da frente, colocou o cinto, tirou o cinto, saiu e se sentou no banco de trás. E de novo. E de novo. Até se conformar com o banco da frente. Aí passou a fuçar nas estações do rádio, que eu, a tanto custo, havia programado.
Vai ser uma loooonga viagem…
Quando finalmente havíamos saído da garagem, eu já falando para ele dar um jeito naquele cabelo ridículo e tirar a camiseta de dentro da bermuda, porque estava mais parecendo um almofadinha, quando meu carro bateu em algum ser não identificado à frente e ricocheteou (isso, de verdade, que nem uma bola de pingue-pongue) para trás.
Só havia um ser baixo e gordo o suficiente para aquilo!
– O Chato!
Raios cortaram os céus ao seu anúncio.
Ele me fez abrir a janela e colocar o corpo todo para fora, praticamente, para vê-lo, em uma cena ridícula. Me sentia como se falasse com um duende de papai Noel.
– Quer dizer que cê tá saindo de férias e leva ele e não eu, né?
– Não, na verdade, eu…
– Não tente negar! Eu vi os óculos de sol! O cabelo penteadinho! As boias na mala!
– Nããããããão!!! – berrei e acelerei o carro, mas o chato meramente se jogou embaixo dele e, com a sua circunferência de baleia, levantou-o como um macaco hidráulico, sem que eu pudesse encostar no chão – e sem escapatória.
– Nem vem! Você não se lembra dos dias incríveis que tivemos no último verão?
Pessoas botavam as cabeças para fora das janelas, observando a trama de novela mexicana, e eu não sabia onde me enfiar.
– Tá bom, entra logo no maldito carro e vamos cair fora dessa joça!
Ele entrou, e o carro afundou para trás, à esquerda. Teria de encher aquele pneu…
Dia 24 de dezembro, o chato estava tão feliz, mas tão feliz, que havia até mesmo se candidatado para fazer o peru; ao lado do TOC-Mem, ambos foram para o supermercado, enfrentaram as filas homéricas e começaram a preparar tudo. Eu, enquanto isso, esbaldava-me na piscina, pensando que ainda teria de comprar o presente do TOC. O que dar para ele com apenas dez reais? Que porcaria se poderia comprar de natal com só dez reais? Só a embalagem já era mais cara!
Ouvi o barulho deles chegando à casa; o chato reclamando, só para variar, ainda no segundo “Isso é um absurdo!!” (então ainda estávamos seguros, com relação à aparição do bizarro rulque), e o TOC-Mem batendo com um galho três vezes em cada centímetro da cerca.
Bom, era uma dupla perfeita; um reclamava, e o outro não escutava, perdido nas suas compulsões; e, também, ainda incomodava o primeiro, que reclamava, como adorava fazer. Era praticamente autossustentáveis.
Precisava sumir de lá, e rápido; usando de todas as minhas desabilidades de ninja da polishop, subi no telhado por uma escada meio bamba, cruzei para as telhas do vizinho, quase sendo pego pela cerca elétrica, caí no chão lá embaixo, corri do cachorro, abusei da sorte saltando no latão de lixo, cuja tampa amassou, de lá pulei para o muro, dei mais um impulso e…
Tomei um choque e me estourei no chão, do outro lado. Mas estava inteiro… Ufa, minha imortalidade ainda funcionava!
Fui para a cidade pela praia; será que conseguiria enrolar procurando o presente até a meia-noite? Aliás, será que tinha alguma coisa aberta na tarde da véspera de natal?
Depois de muito procurar, parei na feirinha rípi, onde fiquei indeciso entre bonecos do batimam e da barbicha (era uma mistura de Barbie com o He-man). Qual dos dois combinava mais com ele?
Por fim, encontrei uma ampulheta cuja areia caía totalmente em cinco segundos; ele ia ter diversão girando-a por uma eternidade!
Acho melhor me precaver… Vou comer aqui na pracinha mesmo, porque acho que a ceia não sai hoje…
Comi um Iaquissoba duvidoso e voltei; no caminho, encontrei o Comprebem da minha rua com algumas partes quebradas e ainda fumegantes, e restos de pêlos verdes e brilhantes caídos pelo chão, levando em uma trilha até a minha casa.
É, ele finalmente havia se irritado com a fila. E, pelo brilho dos pêlos, não fazia mais que duas horas.
Cheguei em casa às nove e meia; todos estavam sentados à mesa, na piscina – meus pais, o chato e até mesmo Laika, a pastora alemã –, enquanto o TOC-Mem abria o forno três vezes, na cozinha, lá tudo impecável de tão limpo. Ele havia, provavelmente, feito tudo e limpado em seguida, três vezes…
Resolvi ir para a mesa e esperar ser servido.
Primeiro, uma tigela de salada; em seguida, outra. E aí, quando quase não cabia mais na mesa, uma terceira, todas feitas com esmero.
Em seguida, ele trouxe três travessas de arroz com passas e as enfiou em uma mesa lateral.
E aí foi a vez do peru; ele trouxe sem as luvas que a mamãe lhe dera, então, simplesmente, largou-o no meio do caminho, levando os panos consigo, e resolveu ir buscá-las na mala; o chato, sem suportar ver a perda de comida, correu, pulou, rolou e segurou a forma com as mãos, mas estava tão quente que a jogou para cima. Batatas voaram por todos os lados e caíram nele como meteoros, o molho do peru queimado o seu braço e a forma batendo em sua cabeça.
Já a Laika, de longe a mais esperta do grupo, saltou do seu lugar e pulou por cima da piscina, pegando a ave com a boca, caindo na água e nadando até a outra borda; saiu correndo e, no meio do caminho, derrubou o TOC-Mem, este com a bandeja de um segundo peru na mão, que voou para o alto, girou, girou, girou e caiu em cima dele, queimando seu braço. Mas só uma vez não valia; ele pegou a bandeja, recolocou tudo dentro, ainda que sujo de terra, e a jogou para cima novamente, para que caísse em sua cabeça. E de novo. Então, se deu por satisfeito e saiu correndo e gritando que estava doendo. Três vezes.
Acostumados a tudo isso, meus pais comiam o arroz. Depois de três garfadas, seus estômagos se reviraram, e ambos ficaram verdes.
– Acho que não tô passando bem…
E assim acabamos todos no hospital; o chato com queimaduras de primeiro grau no braço, o TOC-Mem, com algumas de terceiro, todos os quatro com dores de barriga.
E, como não pôde dormir até a meia-noite, o TOC-Mem inevitavelmente viu que o papai Noel não aparecera no hospital, e, chocado, em transe, começou a brincar com o negocinho do soro, murmurando, repetidas vezes:
– Papai Noel, Papai Noel, Papai Noel… Cadê você, cadê você, cadê vocêêêê???
Fiquei com dó e tomei uma decisão; corri de volta para casa e voltei, quando eram três horas da manhã, já.
– Papai Noel não deixa as coisas no hospital, ele deixa nas casas das pessoas. Por isso eu passei lá em casa rapidinho e trouxe o seu presente. Tó.
Ele pegou o embrulho, os olhos brilhando, e olhou para a ampulheta, embasbacado. Virou-a; cinco segundos depois, virou-a novamente. E assim foi.
– Por que ele ganha presente e eu não? Isso é um absurdoooo!!!
Ah, não!
Repentinamente, ouvi do lado de fora um Ho, Ho, Ho!
– Rápido, todos pro trenó! – berrei, mas ninguém me seguiu, e eu corri sozinho para o lado de fora, aproveitei-me da minha imortalidade mais uma vez e, com um salto, agarrei o trenó do papai Noel, que passava em um voo rasante.
– Você não tá atrasado, não? – perguntei.
– Ho Ho Ho, peguei trânsito na Imigrantes!
E assim, escapei, e vos escrevo esta crônica do computador do papai Noel, no Polo Norte. Alguém pode mandar um avião para me buscar? Está muito frio, e eu só tenho bermudas e regatas…
Nota do autor, setembro de 2021: bem, o que esperar de uma crônica de natal, se não tiver papai Noel e renas?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais