Uma Lua de Mel Chática
Nós já deveríamos saber que coisa boa não seria, quando percebemos a presença do Chato no nosso avião, mas, como sempre acontecia com o Chato, não podíamos imaginar a extensão daquilo na nossa Lua de Mel.
Bom, depois de praticamente nenhuma hora de sono, pois nossa festa acabou à 1h30, e o voo partiria às 6h, logo teríamos de estar no aeroporto de Guarulhos antes das 4h30, vindos de Sorocaba ainda por cima, entramos no aeroporto com as caras amassadas, olheiras e resquícios de maquiagem (da parte dela, lógico), mas, obviamente, com um enorme sorriso nos rostos. O lado positivo de chegar neste horário é que a fila era bastante pequena e, por termos logicamente chegado atrasados (eu lá fui ler que era pra chegar antes das 4h? 5h30 estava bom!), fomos passados na frente, tão rápido que mal pude prestar muita atenção ao burburinho que se formara por um casal cujas malas haviam ultrapassado em duas vezes o excesso de peso.
Enquanto pegávamos o micro-ônibus para nos levar do aeroporto até o embarque, aproveitei para observar os outros sortudos que, como nós, partiriam de São Paulo para Natal em pleno dia das mães. Muitos casais, das mais diversas idades, boa parte deles igualmente de caras amassadas, sorrisos nos rostos e alianças refulgindo nos dedos. Foi quando me dei conta: naquele dia, era como se, para mim, apenas nós estivéssemos casando, mas, na realidade, dezenas ou centenas de casais haviam realizado sua cerimônia no dia 12 de maio.
Chegamos ao avião, sentamo-nos em nossas poltronas, devidamente alocados ao lado das janelinhas, e nos preparamos para tentar dormir.
O que não seria fácil, porque, embora para nós já fosse mais da vigésima quarta hora acordados, muitos haviam dormido e estavam ouriçados pelo sol escaldante que brilhava contra o avião. Não bastasse isso, havia a algazarra natural de crianças pequenas e bebês, cujo barulho parecia amplificado pela lataria do aeroplano.
Mas não me importei. Coloquei os fones de ouvido que ganhara do avião, cruzei os braços e fechei os olhos, pronto para descansar do dia exaustivo (dia? Depois de tanto tempo preparando, parecia-me que tudo havia levado quase um ano de exaustão!).
Contudo, logo um barulho se sobrepôs a toda esta algazarra; parecia ao mesmo tempo um guincho de uma baleia e um bramir de um elefante e foi seguido por um tranco no avião.
Abri os olhos para ver dezenas de pessoas se levantando para olhar o que havia acontecido na escadinha que subia para a porta do avião. O burburinho curioso era grande, mas meu cansaço era maior, e eu optei por novamente fechar os olhos e tentar descansar.
Contudo, não seria tão fácil. Logo ouvi diversos comentários sobre o fato de que uma mulher mais obesa que um rinopopotofante havia rolado escadinha abaixo e amassado o último degrau. E, como o avião perigosamente inclinou para frente e eu pude ouvir o silvo dos seus amortecedores se retorcendo, eu tive certeza de que o balofo havia adrentado a nave e se aproximava.
A balbúrdia, porém, era muita, e o ser, baixo demais para que eu o visse no meio do povo, de forma que tornei a fechar os olhos. Mais um barulho, pessoas falando em um tom mais alto do que seria responsável, e eu ouvi os dois seres discutindo entre si sobre as poltronas; um dizia que deveriam ter sido juntas, o outro, que deveriam ser separadas, e os dois concordavam que as fileiras eram pequenas demais para conseguirem entrar. Os dois estavam roucos, provavelmente gripados (e ainda assim falavam extremamente alto), de forma que suas vozes não me pareciam familiares, e eu pude tentar relaxar novamente. No entanto, pouco depois, um grito; e eu abri os olhos para ver duas costas balofoides esmagando um magrelo, que havia ficado no meio dos dois. Com dois pés de cabra, o homem foi removido e realocado para outro lugar; os passageiros, enquanto isso, não só reclamavam que o voo não saía, como também falavam o quão absurdo era um par de obesos ser obrigado a sentar em um assento que mal e mal comportava uma criança.
Apesar de tudo isso, começaram aquelas instruções sobre como se comportar em caso de acidente, etc e tal, para o que um do casal balofo fez algum comentário, que foi aceito com um resmungo pelo outro, o avião começou a taxiar e, afinal, decolou.
Quando o avião afinal parou de subir, estabilizou e as pessoas foram liberadas para se levantarem, o mucuvuco recomeçou, e eu abri os olhos novamente, xingando que ninguém me deixava dormir: era o casal, que havia saído de suas poltronas com muita dificuldade e caminhado pelo avião, à procura de um local para sentar, parando nas poltronas adequadas para pacientes obesos. Inocentemente sentados, as aeromoças tiveram de interromper a entrega dos quitutes (um pacote de amendoim – no singular mesmo) para irem alertar que lá só poderia ficar quem havia solicitado os assentos especiais.
– Pois estou solicitando agora! – quem deveria ser o homem respondeu.
– Mas, minha senhora – errei o sexo do ser! -, não pode trocar assim, o assento tem de ser solicitado com antecedência, e o valor é diferente.
– Tudo bem, eu pago – disse o que deveria ser outra mulher. – Minha mãezinha merece um lugar mais confortável para sentar.
– Mas não pode pagar agora, senhor – errei de novo!
– Então, o que podemos fazer?
– Podem sentar nos seus lugares originais! – a outra aeromoça respondeu, rispidamente.
– Pois eu não vou sair daqui! – disse a mulher. – Eu não caibo naquele lugar ridículo. Mal e mal caibo aqui! E aquela história de que as empresas têm de informar o tamanho das cadeiras na hora da compra? Não saio daqui, mesmo. Quem quiser, que me tire daqui!
Vontade, havia, mas… E força? Depois de dialogarem entre si, ficou decidido que o casal ficaria lá. No olhar da aeromoça, pude ver que brilhava o ódio da vingança.
– Mas que casal chato, não? – minha esposa comentou. – Por que não ficam logo de uma vez no lugar onde devem?
– Tem gente que é assim mesmo – respondi e tornei a tentar dormir.
Deram prosseguimento à entrega dos quitutes, e, poucos minutos depois, um novo burburinho; pude ouvir a mulher reclamando:
– Ei, a senhora não vai me entregar o lanche?
– Sinto muito, senhora, mas os lanches são destinados às poltronas vendidas com ocupantes. Estas poltronas não foram vendidas, portanto, não posso entregar o lanche.
Não pude ver, mas pude ouvir o barulho da mulher espumando de ódio. E ela espumou mais ainda, quando a outra aeromoça ofereceu três lanches para o passageiro que estava sentado na fila onde o casal deveria estar.
– Já que não tem ninguém sentado ali, apesar de terem vendido a passagem, pode pegar.
Ela falava aquilo com um sorriso; de onde estava, só podia ver as duas cadeiras se movendo com espasmos dos seus ocupantes.
Depois disso, o casal achou melhor ficar quieto. Com isso, ainda tentei dormir mais um pouco, mas estava tão agitado da festa que simplesmente não conseguia. Não bastasse, algum dos dois obesos decidiu cantar junto com a música que ouvia em seu fone, proveniente do programa da via aérea que passava na minitelevisão, de forma totalmente desafinada.
Quando o avião pousou e começou a taxiar, todos os que estavam atrás das baleias tiveram a mesma ideia: tinham de levantar o quanto antes, ou correriam o risco de ficarem presos por horas. Com isso, bastou o avião parar, todos se ergueram para pegar suas malas de mão, e o casal, inibido pela horda ao seu redor, decidiu ficar lá, sentado. Eu iria até passar por eles e afinal matar a minha curiosidade a respeito de suas identidades, se uma das aeromoças, para desafogar o trânsito, não tivesse aberto a porta de trás do aeroplano. Assim, seguimos para fora.
Continuamos pelo aeroporto de Natal com os outros passageiros da mesma companhia de viagem, pegamos nossas malas rapidamente (quem estaria no aeroporto na manhã de dia das mães?) e seguimos para o ônibus. Como de costume, os guias fizeram gracinhas, deram orientações, e assim nós fomos para o nosso hotel.
Lá chegando, embora a agente de viagens tivesse falado que poderíamos fazer o check-in imediatamente, mesmo sendo antes das 14h, obviamente não pudemos. Além disso, para nos assustar ainda mais, uma das até então hóspedes reclamava a altos brados sobre a falta de água em uma das torres do hotel – curiosamente, justamente na qual ficaríamos. Receosos, fomos almoçar; quando voltamos, ainda estávamos sem quarto, e metade do hotel, sem água. Mas um funcionário chileno, alto, falou para não nos preocuparmos. Ficamos do lado de fora, apreciando a belíssima vista da praia de Ponta Negra, do topo do hotel – pois o Lobby ficava no sexto andar, e os quartos, nos inferiores; pouco depois, contudo, com medo da insolação (somos dois branquelos), voltamos para o Lobby, onde capotamos no sofá, até um funcionário nos chamar para levar as malas ao quarto. Trôpegos, por pouco não capotamos sobre elas, mas chegamos sãos e salvos ao quarto, onde, em pleno dia das mães, tomamos um banho e dormimos, ignorando totalmente a música ao vivo que tocava logo abaixo.
Nossa verdadeira surpresa, contudo, não ocorreu nem durante a noite, quando fomos jantar, nem no passeio pela praia de areia branca; foi no dia seguinte, quando entramos no ônibus. Alocamo-nos logo à frente, para poder ver e ouvir tudo o que a guia do citi tur grátis nos oferecia, quando sentimos um tranco no ônibus. Não podia ser! Simplesmente não podia!!!
– Você!! – gritei, em um misto de ódio e desespero.
– Eu – ele me respondeu, com um enorme sorriso.
Era o Chato. E, pior ainda, ele não estava sozinho, estava com a senhora dos Chatos, a progenitora de toda a chatice do mundo, a origem do mal: Chatus Mamicus Maximus.
Ambos, contudo, estavam muito mais gordos do que pareceram em meu casamento; o que havia acontecido?
– Tive de tirar a cinta, não estava aguentando – ele admitiu.
– Quer dizer que…
– É – ele respondeu, meio envergonhado. – A cirurgia não deu muito certo. Eu engordei quase tudo de novo.
– Mas você engordou mais do que eu – completou a chatãe. – Eu estou enxuta.
Como um mamute, pensei.
Dois exemplos vivos de que cirurgia bariátrica não servia para nada sem o correto acompanhamento psicológico e nutricional.
– Mas como você conseguiu isso? – indaguei.
– Bom, eu descobri que eu consigo comer se a coisa for pastosa. Então, eu só comi coisas pastosas, como leite condensado e doce de leite. E, quando enjoei disso, descobri que dá para comer até lanche do McDonalds, se bater no liquidificador.
Balancei minha cabeça, inconformado.
– E, para não ter dumping – completou a mata -, que é aquela sensação horrorosa de quando você come doce demais, sabe, porque a glicose chega rápido demais no duodeno e…
– Mãe, pare com isso, ele é médico, você sabe, você não precisa ficar explicando esse tipo de coisa.
– Ah, é verdade! Será que você não me conseguiria uma receita de…
– Mãe! Ele tá de lua de mel!
– Ah, sei lá, de repente…
– Mãe!
– Enfim, para driblar o dumping, eu tive a grande ideia…
– Quem teve a ideia fui eu, acompanhando o Dr. David em uma das visitas domiciliares de um paciente com câncer!
– EU tive a ideia de colocar uma sonda nasoenteral que fosse além do duodeno. Genial, não? Aí, a gente podia comer quanto leite moça e doce de leite quisesse!
A coisa era muito mais profunda e bizarra do que parecia!
Para nossa sorte, porém, nossa guia turística – que não era lá muito esbelta – entrou no ônibus, viu os dois mastodontes ocupando o corredor e soltou:
– Vixi Maria, pela primeira vez eu não sou a pessoa mais gorda deste ônibus! Ótimo, porque, se a gente ficar preso numa falésia, não vou ser a primeira a servir de comida!
Todo mundo riu, se não pela graça, de propósito – pois a mera presença do Chato já era suficiente para irritar, imagine então associado à sua mãe.
– Desculpem o comentário, mas eu fiquei realmente impressionada.
Nosso primeiro tur pela cidade, não preciso dizer, não foi nem um pouco fácil com o Chato ao nosso lado. Queria parar para comprar coisas, queria tirar fotos em todos os lugares, queria nadar onde não podia, reclamava em alto e bom tom sobre o calor da cidade… Consumia garrafas de água aos borbotões, jogando as embalagens no chão, sem dar a menor importância para o meio ambiente – ele não morava lá, era visitante, mesmo – e, quando fomos todos à praia, a dupla logicamente ficou de roupa o tempo todo e ainda entrou no mar de camiseta, para não mostrar as pelancas, o que obviamente não ajudou em nada para encobrir o show de horrores.
Na hora do almoço, buscaram alguém para dividir a comida, comeram 90% do prato, deixaram os outros com fome e só pagaram metade da conta. Recusaram-se a visitar o cajueiro gigante, esnobaram o artesanato local, e só não ficaram colados na gente o tempo todo, porque entramos no mar e deixamos a corrente nos levar para longe deles (pesadíssimos, eles mal conseguiam se locomover).
Na hora de fechar os passeios da semana, eles se recusaram – não iriam com guia, alugariam buggy ou carro e fariam o próprio passeio. Na hora de ir embora, obviamente demoraram, referindo terem esquecido algo e tendo de retornar – três vezes.
Por se recusarem a fechar o pacote, nossos outros passeios foram muito mais tranquilos. No hotel, praticamente nunca veríamos o Chato ou sua mãe, pois era enorme, repleto de atividades, e os dois não gostavam da piscina – tinha muita gente – nem dos shows – não gostavam de reggae nem de samba – e muito menos das crianças correndo para cima e para baixo. Só iam ao restaurante, fazendo fila para o lanche da tarde, logo que abria para o jantar, e quinze minutos antes de fechar. Com isso, nós efetivamente só víamos suas sombras passando, ouvíamos suas reclamações quase diárias no lobby à distância, e os guinchos do elevador, tentando puxar todo aquele peso, já que ambos sempre insistiam em ir juntos para cima e para baixo.
Finalmente chegou a quarta-feira, o dia do passeio mais esperado: o Buggy de Genipabu. O famoso buggy que fazia as dunas, levava para passeios de camelo, aerobunda, esquibunda e muito mais.
Fomos com outro casal – graças a Deus não os Chatos – e, esperando em quarteto do lado de fora, aguardávamos sermos chamados pelo nosso bugueiro.
Muitos passaram na nossa frente, e eu já estava imaginando que ele não viria, quando, ao longe, pude ver um buggy rosa se aproximando, perigosamente inclinado para o lado, como se os pneus da esquerda estivessem murchos.
Quando ele estacionou, eu não acreditei.
– Você? Mas… Como?
– Eu fiz um curso à distância de bugueiro, Agora eu sou um bugueiro oficial!
Ele mostrou a carteira da Abubra (Associação de Bugueiros do Brasil) e, de fato, lá estava seu nome e sua foto. Impressa no computador, de qualidade duvidosa, eu me peguei perguntando se era de fato de verdade.
– E como você conseguiu isso? O curso de bugueiro leva anos! Tem horas e horas de prática!
– Fiz as aulas no simulador online – ele respondeu. – E, realmente, estou fazendo esse curso há um tempão.
Foi neste momento que me perguntei há quanto tempo ele já não estava prevendo isso – será que sempre soubera que algum dia eu iria viajar para algum lugar que precisasse de um bugueiro? E o que mais ele já não estava planejando, com seus cursos a distância? Ah, se o Chato usasse toda a sua capacidade para algo efetivamente útil para a sociedade…
– Todos a bordo! – ele chamou. E lá fomos nós.
Fui obrigado a me sentar no banco do passageiro da frente – por pedido dele – e, com isso, ele foi me contando tudo o que já havia acontecido.
– O que você está achando do hotel? Eu estou achando um lixo! Não tem um dia que eu não tenha de reclamar por algum motivo. No primeiro dia, tudo o que eu queria era tomar um belo banho, mas não tinha água; ficamos dois dias sem água! Depois, o ar-condicionado estava ligado outro dia, mal e mal dando conta do calor, quando, de repente, estourou e jorrou um monte de água por todo o quarto! E o pior, eles demoram uma vida para trocar a roupa de cama, as toalhas ficam mofando no banheiro…
Só posso dizer que, para mim, estava indo tudo ótimo. Impressionante como com o Chato tudo dava errado!
– Eu pedi um quarto com vista mar, e eles me colocaram no único com vista para um coqueiro! É verdade, pode olhar, tem um coqueiro bem na minha varanda, eu não enxergo nada! E a comida então? Ontem minha mãezinha comeu os pratos brasileiros, hoje está com um piriri, que você precisa ver, tá o dia todo no banheiro, mal consegue sair de lá, o quarto tá empesteado…
Preferi olhar para a orla da praia, tentando não imaginar a cena.
– Deixe eu te perguntar uma coisa. Eles já arrumaram a suíte de núpcias para vocês?
– Na verdade, a gente nem pediu, por quê? O que tem de bom?
– Ah, eles colocam uma colcha vermelha, umas pétalas de rosa e arrumam umas toalhas para parecerem dois cisnes e um coração. Uma coisa totalmente cafona. Minha mãezinha e eu…
Foi aí que a ficha caiu. Minha mãezinha e eu? Para conseguir uma suíte de núpcias, eles tinham de estar com uma cama de casal, portanto…
– Você tá dormindo na mesma cama que a sua mãe?! – interroclamei.
– Ué, qual é o problema?
– Ai meu Deus do céu!!!
Nos bancos de trás, o barulho do vento (e do motor, para conseguir carregar todo o peso do Chato) era tanto, que ninguém conseguia ouvir o que estávamos falando. Só viram minha tentativa de me afastar o máximo possível do Chato, quase me jogando para fora do Buggy.
Ele passou o resto do passeio tentando me convencer de que aquilo era normal. Eu preferi ficar quieto. Na primeira oportunidade que tive, troquei de lugar e fui para o lado da minha esposa; lá na frente, o Chato não falava com ninguém, apenas grunhia enquanto dirigia.
Durante o passeio, o buggy sofreu; nas dunas, apenas com dificuldade fez as manobras, e eu jurei que iria afundar, atolar ou capotar, mas, miraculosamente, sobrevivemos.
Apesar de tudo, não havia como não se divertir naquele lugar, e tentei ignorar a chatice o máximo possível durante o passeio. Impressionantemente, quando fomos almoçar, o Chato não se juntou a nós na mesa, mas foi pelos fundos do restaurante, onde comeu com os outros bugueiros. Logicamente, como não podia deixar de ser, eu o ouvi brigando por algum motivo – pelo que entendi, ele achou um absurdo que os motoristas não tinham direito ao sorvete de palito, que custava duas vezes mais do que em qualquer outro lugar. No retorno, graças a Deus o outro homem quis ficar na frente, pois sofria de lumbago e quase tinha morrido nas dunas, de modo que fiquei a salvo. Saindo do carro, achei melhor nem me despedir do Chato – ele até tentou me perguntar em que quarto eu estava, mas eu fiquei quieto, fingi que não ouvi, e na recepção fiz eles me prometerem que não contariam a ninguém, mesmo que pagassem caro.
Na sexta-feira, acho que finalmente percebendo a idiotice que fizera em escolher os passeios por si próprio, pois fora ludibriado por absolutamente todos, tendo buscado os mais baratos, que não fizeram nada além de lhes mostrar praias próximas, que poderiam ir a pé, barracas duvidosas e bancas de artesanato fajuto, ele foi conosco para a barra do Cunhaú, onde eu cacei caranguejo e ele ficou atolado no manguezal, tendo sido necessário chamar uma grua para retirá-lo, só no dia seguinte pela madrugada.
Mesmo assim, ele chegou a tempo de ir conosco para o mergulho. O tempo estava meio fechado, e ele e sua mãe reclamaram disso o caminho todo, mas, mesmo assim, estava muito agradável. Entramos no parque aquático, cruzamos, pegamos os snorkels e fomos no barco em direção à plataforma de alto mar. Os chatos ficaram na frente, querendo ver tudo em primeira mão, mas tudo o que conseguiram foi saírem encharcados e reclamando. Na plataforma, mamãe chata fez o maior escarcéu quando entrou no mar e um cardume de peixes a rodeou (devem ter imaginado que era uma daquelas baleias, das quais eles podiam mordiscar os dentes para pegar os restos de alimento)e se recusou a ficar dentro da água. Enquanto isso, fui nadando ao redor dos corais. Quando cheguei perto do outro barco, ouvi um disparo e sirenes, barcos vieram em minha direção e me puxaram para dentro; logo atrás de mim, a guarda costeira circundava uma forma rotunda, que tentava afastar a todo custo.
– Senhor, por pouco o senhor não foi pego por um raro tubarão baleia! Sua sorte é que ele encalhou nos corais.
Olhei para trás: lá estava o chato, desesperado, debatendo-se com o pé preso em um dos corais, e o snorkel a poucos milímetros da superfície, só o suficiente para que respirasse.
– Aquilo não é um tubarão, mas sim um homem-baleia! – exclamei. – Ajudem ele a se soltar!
Os guarda-vidas saltaram na água e, com muito esforço, soltaram o pé do Chato. Neste meio tempo, equipes de reportagem e biólogos marinhos já haviam se reunido para relatar uma nova espécie de baleia – cetaceus homo obesus – encalhada nos corais. Pulei no mar, nadei de volta e deixei o Chato por lá.
Na minha plataforma, minha esposa, desesperada, estava preocupada.
– O que aconteceu? – ela indagou, assustada. – Achei que tinha acontecido alguma coisa, os repórteres estavam lá rodeando…
– É que acharam uma espécie nova de baleia lá nos corais…
Do outro lado da plataforma, um grito (“Meu filhinho!!”), um jorro de água, e a Chaticus Mamicus Aquaticus estava nadando atrás de seu bebê. Encalhou a poucos metros da plataforma…
De volta a São Paulo, sãos e salvos, ouvimos apenas uma notícia no jornal nacional.
– Na costa de Natal, Rio Grande do Norte, foram encontrados dois exemplares de uma espécie nova de baleia. Os cientistas estão intrigados com estes novos seres, que foram encaminhados ao…
Nota do autor, setembro de 2021: gente, não é gordofobia. É chatofobia, mesmo! Ninguém merece esse chato!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais