Voltando para São Paulo…
Finalmente, depois de não sei quanto tempo filando boia na minha casa e fugindo dos veteranos, o chato resolveu ir embora, achando que já havia passado tempo o suficiente para a Marla resolver procurá-lo na Rússia (especialmente porque ele pagara a um tradutor para especialmente escrever algumas coisas em russo num cartão postal que ele forjou, enviando para sua família, de modo que a sua noiva o leria – já que ela tinha a chave da casa dele – e rapidamente correria para um vilarejo a 50 léguas de Moscou). Era quarta-feira, e nós fomos para a Rodoviária, onde ele pegaria o famoso Cometão, nosso Busão especial para trajetos Soroca-Sampa e de volta outra vez.
– 10,80 para gastos internos… Mais 40 centavos do seguro e 18 centavos do pedágio… Mais não sei o que e não sei o que lá, dá 14 reais… Ei, moça, e se eu não quiser pagar o seguro? – começou ele.
– Como assim?
– Assim, ó, e se eu não quiser pagar o seguro? Pagar só treze e sessenta.
– Mas por quê?
– Pra economizar dinheiro. Eu quero dizer, pra que eu vou pagar seguro? Primeiro, as chances de acontecer um acidente em um trajeto tão pequeno em um horário como esse, três da tarde, são praticamente nulas.
– Senhor, o pagamento de seguro é obrigatório. Nosso ônibus não pode sair sem que os passageiros tenham pago…
– Pagado.
– Pagado a taxa de seguro. São normas internas.
– Mas você não entendeu, eu não quero seguro. Não preciso de seguro.
(Além do mais, se o ônibus bater e eu me ferir, eu sempre posso processar a empresa, então, pra quê?, adicionou ele para mim, enquanto eu suspirava e olhava para os combos nas lanchonetes, extremamente baratos para uma boa quantidade de comida [isto é, se os preços normais já não fossem insuflados e aquele fosse o preço verdadeiro]).
– Meu senhor, são normas da empresa. As pessoas não podem viajar sem seguro! O seguro serve justamente para pagar caso algum dano aconteça!
– Sim, mas eu não quero o seguro, eu não pretendo que nenhum dano aconteça!
– De um modo ou de outro, a empresa não faz viagens sem seguro! – exclamou a moça do caixa, cansada. Eu simplesmente abanava a cabeça, dizendo que era inútil. – Senão, a empresa teria de pagar todos os custos, e é justamente pra isso que ela paga o seguro!
– Mas eu não preciso de seguro!
– Me desculpa, senhor, mas eu não posso vender um bilhete sem seguro.
– Então pra que tem a separação no painel?
– Pras pessoas saberem o que tão pagando. É como os ingredientes na embalagem de iogurte…
– Se tem a separação, eu posso me recusar a pagar uma parte…
– Ai, meu Deus! – exclamei, cansado. – Eu pago a droga dos 40 centavos!
– Não, você não me entendeu, o problema não é mais os 40 centavos, eu posso pagar isso…
– Então pra que toda essa discussão?!
– …O problema agora é do meu direito como consumidor!
O problema agora é tudo uma questão de chatice. Só pra encher o saco!
– Gente do céu, paga logo o seguro! É mais… Seguro!
– Mas eu não quero! – exclamou o chato, veementemente. – Escutaqui, moça, eu…
De repente, a atendente por trás do balcão baixou o gradeado de proteção, assim como todas as cabines do lado.
– As vendas foram suspensas por superlotação.
– Superlotação? Mas não tem ninguém lá fora esperando o ônibus!
– Exatamente. Tá todo mundo lá dentro.
– Ah, pelamordedeus! – exclamei. – Eu quero uma passagem, com seguro.
A da cabine ao lado, não completamente fechada, imprimiu uma passagem e me entregou, o meu companheiro de viagem ao lado com a mais profunda cara de perplexidade.
– Você também vai pra São Paulo?
– Não – respondi ao chato, pagando e entochando o papel no bolso da camisa ridiculamente pequena dele. – Você vai. Como cortesia minha.
– Ora, vejam só, já que você insiste…
A saída do ônibus era só às três e meia, o que nos deu uns quinze minutos para ficar esperando por ali; depois de chafurdar pelas revistas e não encontrar absolutamente nada interessante, cumprimentar o barbeiro que tantas vezes já me raspara o cabelo, o chato resolveu ir ao banheiro, e eu nunca vi banheiro tão apertado quanto aquele. Era apenas uma pequena porta, com uma pia, uma privada e nada mais, tudo tão apertado que seria difícil para até mesmo eu me mover, imaginem vocês, então, o chato, cuja circunferência era maior que a altura.
Espremendo-se no cubículo como um rato por entre as barras de ferro de uma gaiola, o chato conseguiu, de algum modo sobrenatural, entrar. Agora, fechar a porta seria um problema, especialmente porque a trava estava com defeito.
Ele puxou a maçaneta, mas nada adiantava, a lingueta não entrava e a porta ficava abrindo o tempo todo, especialmente quando a sua bundona encostava nela; depois de muito esforço, conseguiu bater a lingueta para fora e prender a maçaneta. Depois, com um chute e um par de socos, fechou a tranca, mas com tanta força que acabou escorregando e caindo com tudo no chão imundo do toalete.
Completamente enojado, tentou se limpar, mas a pia era minúscula; jogava água para cá, jogava água para lá, no final acabou com 105% do corpo molhado e as roupas ensopadas. Como se não bastasse, obviamente, seus óculos caíram na privada e o celular (daqueles super-hiper-master-blaster pequenos) escorregou pelo ralo da pia, perdendo-se para sempre no sifão. Irritado, praticamente berrando (do lado de fora, era como se caçadores houvessem prendido um urso com hemorroidas em uma caixa [sem furos] e tentado mandar para Botsuana), ele desatarrachou o sifão e começou a procurar pelo celular, bolos e mais bolos de cabelos das mais diferentes cores enrolando-o, ao saírem da pia entupida. Logo seu corpo estava inteiro perdido em mais cabelo do que ele já tivera em toda a sua vida. ]
E o mais nojento ainda foi quando ele achou uma camisinha (usada) no meio deles, e ela quase foi parar na sua boca. Foi mais ou menos no momento em que eu ouvi um uivo, um rangido muito forte de metal retorcido, o barulho de cerâmica de segunda sendo quebrada e o som de água escorrendo. Pela porta, um pequeno riacho escorria, molhando todo o chão (poucos minutos depois, um velho escorregaria e seria ajudado por alguns passantes, jurando que ia processar o lugar por deixar o piso molhado sem a placa. Junto dele, logo vieram os filhos, jurando seguir com o processo, os netos, prometendo lutar na justiça para seguir com ele, e as bisnetas jurando ter filhos para estes poderem ter filhos que, um dia, iriam conseguir ganhar o processo na justiça brasileira).
– ISSO É UM ABSURDOOOOOO! – berrava ele do lado de dentro, o som nem um pouco abafado pela porta de papelão.
– Ah, David! Oi! – exclamou uma voz excessivamente conhecida atrás de mim. Um frio percorreu minha espinha e, antes mesmo de me virar, eu (suando frio) já sabia quem era.
– Marla! – secofalengoli. Do lado de dentro do banheiro, a situação se aquietou e os olhos do chato se arregalaram, já injetados.
– Engraçado, eu tinha certeza de que ouvi a voz do meu noivo por aqui… Você acredita que eu fui prum vilarejo lá nos quintos dos infernos da Rússia e ele não tava lá?
– Você sabe como é, né, se você fica parado na Rússia por muito tempo, corre o risco de congelar… Mas o que cê tá fazendo aqui?
– Então, eu vim justamente perguntar pra você se você sabe onde ele tá.
Do lado de dentro do cubículo, o chato deixara o cabelo de lado e a camisinha pendente para encostar a orelha à porta e tentar entender o que acontecia.
– Pelo que ele me disse, ele ia pro Tibete, tentar clarear as ideias com os monges budistas.
– De novo??
Fiquei surpreso com tal fala (como que ele já usara aquela desculpa???), mas mantive a calma.
– Ah, você sabe como é, ele teve a última iluminação, mas foi demais pra cabeça dele e a lâmpada explodiu… Agora ele colocou uma fluorescente e quer ver se consegue acender de novo.
De algum modo sobrenatural, Marla riu daquela piada estúpida.
– Bom, tudo bem, eu vou…
Mas o que ela iria fazer, eu não viria a descobrir. Só sei que, de repente, ouvi um baque no chão (provavelmente o chato escorregando de bunda e sentindo a camisinha cair dentro da camisa, todo embromado em cabelo) e um grito de ira, e um ser rósea, gigântico, irrompeu do banheiro.
Era o bizarro-rulque, mas não era; seu corpo crescia anormalmente e pêlos radioativos (sim, verdes brilhantes) nasciam por todos os cantos; em questão de segundos, o bizarro-rulque havia sofrido transformações que o tornariam…
O Bizarro-Congue!
O ser verde de seis metros de altura, andando de quatro pela rodoviária, tomou Marla em suas mãos e saiu correndo para fora da cidade. Eu, por minha vez, corri pelo portão para acompanhá-lo (com os olhos) correndo desenfreado pela cidade com a mulher na mão gigante e peluda.
O que aconteceu depois, só se vocês lerem no Bom-Dia Sorocaba de amanhã.
Nota do autor, setembro de 2021: sim, o banheiro da rodoviária era bastante apertado e a porta realmente não fechava, mas não, não era tão nojento assim. Bem, não sei, eu nunca abri o sifão…
Ah, sim, na época estavam na moda os celulares tão minúsculos que pareciam do tamanho do seu polegar. Mal sabíamos nós que depois eles se tornariam tão grandes que você não conseguiria diferenciar de um tablet.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais