A Fantástica Indústria dos Sonhos
– Chega! Eu não aguento mais! Eu peço demissão!
– Merda! – xingou o diretor, baixinho. – Corte para cena de queda!
O cameraman prendeu a câmera rapidamente em uma corda, que a deixou suspensa no ar e, depois, deixou que caísse no chão. Não precisou de muita coisa, e todas as luzes do estúdio se apagaram, acendendo apenas as luzes vermelhas de emergência.
O diretor saiu de sua cadeira e foi até os bastidores, onde o ator principal estava sentado em uma daquelas cadeiras dobráveis, tomando um café frio.
– O que está acontecendo?
– É sério. Eu não aguento mais isso! Não quero mais fazer isso!
O diretor, sentado diante dele em uma cadeira também dobrável, apoiou os cotovelos sobre os joelhos e se inclinou para frente. A semelhança entre ambos era tão notável, que poderiam ser irmãos gêmeos.
– Você sabe que não dá para sair deste trabalho.
O outro bufou.
– Mas não dá para me escalar para outra coisa, então?
– Você é o homem de ação. Você é perfeito no seu papel!
– Mas, será que eu não posso, sei lá, mudar de ares? Ir para um romance?
Eles olharam para o camarim ao lado, onde outro homem muito semelhante a ele, porém, mais magro, mais forte e mais bonito, estava de paquera com uma moça.
O diretor balançou a cabeça.
– Sinto muito.
– E que tal para a sessão de terror? Olha lá, ele já tá de boa há, sei lá, uns 20 anos!
Olharam para o outro lado; no camarim do homem do terror, havia uma pessoa muito parecida com ele. Entretanto, depois de tanto tempo parado, sua barriga havia crescido, assim como a barba e as unhas, e teias de aranha se multiplicavam em sua cadeira. Aquilo, sim, era qualidade de vida! A última vez em que o vira se mexer fora no ano passado, quando tentara lhe pregar uma peça, aparecendo com um boleto com vencimento naquele dia. Ele ficara bravo.
– Fora do expediente, não! – ele gritara.
Depois, sentara-se na cadeira de seu camarim, puxara os joelhos para o peito e os abraçara.
– As coisas que eu vi… – ele repetia. – As coisas que eu fiz…
Ficou neste transe por uns seis meses, até cessar completamente de se mexer.
– Sério, não é possível que você ache melhor viver naquele poço de estresse pós-traumático! – exclamou o diretor.
– Estresse pós-traumático é o que eu vou ter daqui a pouco!
– Eu conheço vários que matariam para estar no seu lugar!
– Pois me substitua! – o outro retrucou.
– Não posso! Você sabe! O trabalho é vitalício…
– Olha, cara, eu só quero descansar – ele disse. – As horas de sono não estão dando. Eu sou convocado para trabalhar toda noite. Toda noite! E não são coisas fáceis! Quer dizer, ontem mesmo eu tive de manobrar um carro de marcha a ré em um estacionamento cheio de curvas enquanto ele descia, sem freios! E, para completar, bem na cancela do estacionamento, tinha uns mafiosos me esperando! Sorte que interrompemos antes de eu conseguir ver o final!
– Veja bem, eu sei que…
– Pensa na insalubridade! Insalubridade! Outro dia eu tive de segurar a respiração por sei lá quanto tempo no meio do oceano! Imagina se eu não aguento? Se eu engulo água?
– Eu sei que…
– E eu não me esqueço, sério mesmo, não me esqueço daquela vez, dois anos atrás, da jangada mágica, do dragão no subterrâneo do metrô…
– A gente pode tentar te escalar menos, mas, sério, essas ordens vêm de cima…
– Sabe o que me deixa louco? Sério mesmo, sabe o que me deixa louco? – disse ele, aproximando-se do diretor com um olhar ensandecido. – O fato de não saber o que vai acontecer. Sério, a cada tomada, algo totalmente inesperado! E, sabe o que é o pior?
Ele estava tão perto do diretor, que dava para sentir a sua respiração.
– Aquelas cenas quentes, sabe? As únicas que valem a pena? Quando eu estou quase, quando eu estou a isso aqui… Vocês cortam!
– Ah, nem vem com essa, já teve mais de uma vez que a gente fez a cena completa!
– Mas daí não sou eu! É ele! – exclamou o outro, apontando para a versão romance que estava em seu camarim, se pegando com uma das coadjuvantes. – Nas minhas cenas, sempre aparece a mãe dele ou coisa parecida!
– Me chamou? – disse uma senhora de setenta anos.
– NÃO! NÃO, MESMO! – gritou o outro.
– Ai, você sempre me maltrata… – ela respondeu com um muxoxo, e foi embora dos bastidores depois de enfiar três sanduíches na bolsa.
– E as vezes que eu tenho de fazer o número dois em público? Ou então, aquelas cenas em que eu pulo um montão?
– A gente usa cordas e faz com toda a segurança…
– É, mas quantas vezes as cordas não se romperam?
– Já faz um bom tempo que isso não acontece…
– Mas e as vezes em que já aconteceu?
– A gente sempre te segurou com um colchão…
– Olha, sério, eu realmente preciso…
De repente, um alarme. O diretor se ergueu.
– Todos em suas posições! Vamos lá, está saindo o novo script… Rápido, cenário! Preciso de um deserto! Agora! Cuidadores de animais, camelos! Três! Coadjuvantes, preciso de três beduínos montados, mais três, cada um com a rédea de um camelo! Figurino…
– Eu não vou entrar? – perguntou o nosso protagonista, esperançoso.
– Ah, vai… – respondeu o diretor.
Pouco depois, ele entrava em cena, montando um avestruz que queria roubar o ouro dos beduínos, uma câmera presa à sua cabeça, para dar a sensação de visão em primeira pessoa.
– Merda – ele murmurou.
Aquilo não era uma vida. Trabalhava, trabalhava, quando chegava o horário de descanso, ele ficava preso em seu camarim sem poder sair. Não podia constituir família, não podia beber por aí, não podia fazer nada.
Teve uma ideia.
– Socorro! Me ajude! – gritou ele, balançando os braços e olhando para cima.
Os beduínos o encararam, incertos; nos bastidores, o diretor e a equipe olhavam o script que aparecia no teleprompt. O que ele estava fazendo?
– Estou sendo mantido refém, aqui! Por favor, me ajude! Você precisa me libertar desta prisão! Noite após noite…
Um beduíno pensou rápido e deu um tapa no lombo do avestruz; ele empinou e jogou o protagonista para trás.
– Temos de improvisar! Mude de cena para romance!
Subitamente, as luzes e as câmeras mudaram; começaram com uma cena quente, em um banheiro de hotel.
– Excelente! Excelente! – exclamou o diretor. – Mais vapor!
O protagonista ficou deitado no chão do deserto, no escuro.
O avestruz lhe bicou as pernas.
– Típico.
Entretanto, logo todos do estúdio ficaram ligadões na cena de romance: a melhor coisa que podia acontecer – e, infelizmente, não acontecia com tanta frequência quanto de costume – era isso: o protagonista do romance, uma atriz famosa, uma cena no banheiro cheia de vapor…
O diretor bebericou seu café, esquecendo o surto psicótico do homem de ação.
– Isso, agora, vai lá, subindo a mão…
O outro, por sua vez, aproveitou o momento e desapareceu por uma das várias portas secretas do set. Ninguém percebeu.
O diretor acompanhava o teleprompt para os próximos passos, passando as informações com sinais. Era isso! Estava na hora do vamos-ver! Agora é só…
– Isso, muda a câmera para primeira pessoa e…
O protagonista de romance ativou a câmera que ficava entre seus olhos, dando a impressão de ação em primeira pessoa.
– Cara, não tem como ficar melhor que isso! – exclamou o diretor, olhando para uma tela auxiliar que demonstrava o que estava se passando na mente do Homem.
Subitamente, no entanto, o estúdio todo tremeu.
– O que está acontecendo?
O nosso protagonista havia saído dos estúdios (Hypocampus SKG) e seguido por um caminho tortuoso até a famosa Sala de Penfield. Ele sabia que aquele era o momento ideal de fazer isso: a sala de comando dos movimentos entrava em hibernação enquanto o Homem estava dormindo, e todos os comandos ficavam desativados, exceto, é claro, pela respiração.
Assim, ele silenciosamente abriu a porta da Sala de Penfield e a trancou por dentro. Na sequência, ativou o teclado novamente e…
Pôs-se a controlar o Homem!
O único problema é que normalmente aquela tarefa era feita por diversas pessoas, e ele teria de controlar tudo sozinho. Mas, tudo bem; ele era um homem de ação, ele conseguia fazer qualquer coisa!
Assim, apesar da tela toda escura, fez o Homem se sentar.
– Mas, que droga! Cadê… Ah, achei!
Puxou uma alavanca, e a cobertura dos para-brisas levantou, permitindo que ele enxergasse o quarto na penumbra.
– Cadê… Aqui, comandos automáticos! Ficar de pé…
Do outro lado da porta, uma luz vermelha piscava e soava um alarme; pouco depois, dezenas de funcionários, sonolentos e desesperados, acotovelavam-se à porta, batendo para que o ator a abrisse.
– Saia daí!
– O que você está fazendo? Ele está dormindo!
– Você não pode fazer isso! É perigoso!
O Homem começou a caminhar pelo quarto, batendo o pé na borda da cama; ele nem sentiu.
No estúdio, o diretor se segurava em sua cadeira, enquanto tudo balançava.
– O que está acontecendo?
– Notícias da sala de Penfield! – veio um auxiliar avisar. – O homem de ação quis dar uma de Tom Cruise e invadiu a sala!
– Sacré Bleau! – exclamou o diretor. – O que ele quer?
– Ele quer vingança… – disse um homem saído das sombras.
O diretor o encarou e sentiu calafrios em sua espinha. Era o homem do mal!
(Que era exatamente igual a ele, exceto por um bigode enrolado nas pontas e um olho direito mais arregalado.)
O homem enrolou o bigode com as pontas do dedo e arregalou ainda mais o olho.
– Eu sabia que este momento chegaria! O momento em que ele se tornaria ninguém menos do que… Eu! – disse ele e soltou uma risada maligna.
Todos no estúdio sentiram um frio na espinha, até a moça que contracenava.
– O que está acontecendo? – questionou o homem do romance. – Está tudo bem?
– Está – ela respondeu. – Continue…
O homem do mal ficou diante do diretor, impedindo que ele visse a cena. Ele era realmente mau!
– Só temos uma opção, diretor.
– Qual?
– Precisamos acordá-lo.
– Mas, como?
Ele esfregou as mãos, sorrindo malignamente.
– Chame a Mamma.
– Sacré Bleau!
Enquanto isso, na sala de Penfield, o homem de ação fazia o corpo se mover. Estava com alguma dificuldade, mas conseguiu pegar a chave da casa e estava tentando abrir a fechadura de entrada.
– O que ele vai fazer? Vai sair pela rua? – exclamou um dos trabalhadores.
– Isso é perigoso! – exclamou outro.
– Ele vai sair só de cueca?
– Ah, isso é como um sonho ruim! Alguém me belisca? Ai!
Ainda que isso fosse contra todos os seus instintos, porém, o diretor convocou a Mamma. E, como num passe de mágica, ele substituiu a atriz.
– O quê? – exclamou o homem de romance. – Argh!
Um alarme soou no estúdio e as luzes piscaram; subitamente, todas as luzes se apagaram e ficaram apenas aquelas vermelhas de emergência. Todos comemoraram. Tinha dado certo! Ele havia despertado!
– Sabia que meu plano maligno funcionaria! – exclamou o homem do mal.
Na Sala de Penfield, o homem de ação viu uma luz verde piscando. Logo acima estava escrito “Consciência”, e uma série de comandos começou a surgir na tela. Ele ignorou todos eles.
Pôde ouvir, então, uma voz no alto falante, que reverberava por todo o cérebro:
“Ué? O que está acontecendo? Por que não estou conseguindo… Minha mão! Está se mexendo sozinha! O que estou fazendo?”
De repente, um movimento do outro lado da Sala de Penfield: homens de preto, barbudos e de óculos, portando um aríete e alto falantes, chegaram.
– É o S.U.P.E.R.E.G.O¹! – exclamou um dos trabalhadores. – Estamos salvos!
– Seu meliante! Largue imediatamente o que está fazendo! – disse o líder dos homens de preto em seu alto falante. – Ponha as mãos para o alto e se afaste do painel de controle!
O homem de ação ignorou tudo e continuou tentando abrir a porta, mas as suas mãos pareciam meio bobas. Quem diria que era tão difícil controlar cinco dedos e o punho ao mesmo tempo?
– Tem que ter um botão automático – disse ele, caçando entre os infinitos botões brilhantes que havia em um painel. – Ah, deve ser esse!
De repente, o homem se virou, abaixou a cueca e se preparou para fazer xixi.
– Não, não! Esse não!
– Você não nos deixa escolha! – exclamou o líder de preto. – Derrubem esta porta! Vamos levar esse salafrário para o I.D.², que é onde ele merece ficar!
– Oh! – disseram os trabalhadores, surpresos.
Com o aríete, eles derrubaram a porta e, em poucos segundos, estavam dentro da sala de Penfield, algemando e levando o homem de ação – que, apesar de ser um excelente ator, na vida real mostrou que não sabia lutar, nem correr, nem… Bom, nem nada.
Os trabalhadores comemoraram e, após a polícia, invadiram a sala como lemingues desesperados para tomar as rédeas da situação. Levaram o homem de volta para cozinha, fizeram-no tomar água e fazer xixi (desta vez no lugar certo), ainda no automático, antes de deixar que ele tomasse controle da situação.
“Acho que ainda estou meio dormindo”, reverberou pelos alto falantes.
“Isso mesmo”, disse uma segunda voz, mais suave. “Que tal tentar dormir novamente?”
“Quem sabe eu consigo voltar para antes da minha… Argh! Mãe aparecer… Por que isso sempre acontece? Deve ser culpa do Freud…”
As coisas no estúdio voltaram a normal; quando as luzes se acenderam novamente, indicando que ele estava entrando em um estado idílico, o diretor ordenou que reprisassem um sonho antigo.
– Não tem problema. Precisamos de tempo para reorganizar!
Ele não acreditava que ele teria de fazer testes para o papel de ação.
De novo.
Isso sempre acontecia; sempre as coisas começavam a subir à cabeça e os atores se achavam melhores do que realmente eram.
O diretor bufou. Quanto tempo mais até ele ir para o sono eterno (e sem sonhos)?
Enquanto isso, o nosso pobre homem de ação foi trancafiado em uma cela, com outros diversos exatamente iguais a ele.
– Quem são vocês? – ele exclamou, surpreso.
– Eu falei! Eu falei! – gritou outro para um terceiro. – Não deu nem dois anos! Eu sabia que ele não ia durar, sabia!
O terceiro, bufando, entregou-lhe uma colher de plástico como pagamento.
– O que você tentou fazer? – indagou outro. – Tomar controle dele durante o sono?
– É…
– Clássico.
Ele olhou em volta de si, depois para os seus inúmeros clones, cada um deles com as suas cicatrizes do serviço.
– Eu tenho um plano… Vamos derrubar essas barreiras… E mostrar para ele do que nós somos capazes! – disse, dando uma risada maligna e considerando deixar crescer um bigode.
– Ih, certeza que ele é um dos nossos? – questionou o segundo.
– Relaxa, que já, já o S.U.P.E.R.E.G.O. dá um jeito nele.
– Quer apostar?
– O dobro ou nada! – exclamou ele.
No estúdio, o diretor gritou:
– Agora solta aquela musiquinha de abertura de desenho que ele ouviu quando tinha cinco anos de idade! Isso vai deixar ele encucado por uns três dias…
[Zoom no diretor; tela vai se fechando em túnel, de fora para dentro. O diretor pisca; o círculo se fecha. A tela fica preta. Sobem os créditos com música de fundo]
¹ Super Ultra Poderosa Equipe de Recuperação Estratégia e Governança Ordeira.
² Incrivelmente Desonroso, é a cadeia da mente. Alguns dizem que, na verdade, o nome vem de IDiota ou IDeia, mas é, de fato, apenas este acrônimo.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais