De Mochilas, Entradas e Saídas
Era sábado, estava nublado, não muito quente, nem muito frio, um certo clima indefinido que em São Paulo penderia para o frio e em Sorocaba, como de costume, pende para o quente. Estava eu na Padaria Real, morgando um pouquinho depois da aula de inglês, tomando uma xícara de (adivinhem!) café com leite grande, quando observei, à entrada, um homem com uma mochila. Assim que ele passou pela porta, a moça que entrega os papéis pediu que ele deixasse a mala ali, uma vez que não poderia entrar com ela.
Ele não reclamou; deixou a mala, pegou a sua carteira e foi para o balcão, pedir (adivinhem! Adivinhem!!) uma coxinha, como também é costume dos sorocabanos (elefantas, as coxinhas da Real são tão famosas que eles fazem elas às barcas, trazendo umas 100 de uma vez).
Pouco tempo depois, estava pagando no caixa e voltou pelo lado de fora para pegar a sua mochila. O que ele não contava, porém, era que a mulher tinha memória de peixe (também conhecido como Dorius memorius falhosus), o que fazia com que ela esquecesse tudo em questão de segundos.
– Senhor, para entrar você precisa pegar uma ficha!
– Mas eu só quero…
– Não importa!
Ele pegou a ficha entochada na mão e depois se virou para pegar a mochila. Tudo bem, ia com ela até o caixa, entregava a ficha e ia embora.
– Senhor, não é permitido entrar na loja com mochilas!
Ele olhou para ela, inconformado.
– Ahm?
– Por favor, deixe a mochila aqui.
– Mas eu nem consumi nada, eu só quero entregar a ficha…
– Então entregue a ficha e depois pegue a mochila!
Ele foi até o caixa, entregou a ficha e falou que ia voltar, por dentro mesmo, só para pegar a mala e sairia pelo outro lado.
Foi o que fez. Mas a moça virou e…
– Senhor, a saída é por ali!
– Mas eu acabei de…
– A saída é por ali.
– Mas eu não estou nem com a ficha! Eu só vim para pegar a minha mochila!
– Não se pode entrar na loja de mochila, ou mala, ou qualquer coisa. E como o senhor não tem ficha?
– Eu entreguei ela na saída…
– Mas o senhor não saiu!
– Não. Por isso, eu voltei pra cá…
– Mas como o senhor pode ter entregado a ficha e não saído? Aliás, como o senhor pode ter entrado sem a ficha, se todo mundo tem de passar por mim, e eu não me lembro do senhor?
– Olha, eu só quero pegar a minha mala…
– Não, esta mala é de um outro senhor que veio comer uma coxinha… Ele era alto como o senhor, acho que careca como o senhor, tinha até os mesmos óculos… Mas definitivamente não tinha a mesma roupa. Não, não… Ele tinha bom gosto para roupa, usava uma camiseta da M. Officer… Ah, que nem a sua, não, aliás, era verde, não azul, e…
O homem queria pular de ódio, mas se controlou.
– Olha, eu vou pegar uma coxinha. Quem sabe você não se lembra de mim assim?
– Como, me lembrar do senhor?
– Nada, esquece.
– Esquecer o quê?
O homem foi até o balcão, bateu a mão na mesa e disse:
– Eu quero uma coxinha.
– Mas onde está a sua ficha?
– Ai, droga, deixei no caixa, porque eu ia sair para pegar a minha mochila…
– Então o senhor não pode pedir nada; vai ter de pegar uma ficha para poder pegar uma coxinha.
Ou seja, ele precisava sair para entrar para pegar uma ficha para pegar uma coxinha para a mulher lembrar dele e deixá-lo pegar a sua mochila.
E foi o que ele fez; saiu, pegou a ficha, passou pela mulher com um olhar triunfante, bateu a mão no balcão e pediu uma coxinha. Depois, enquanto dava uma enorme mordida nela, muito embora cheio, acenou para a moça da entrada.
– Por que ele está acenando? – perguntou um homem para ela.
– Não sei. Acho que ele é meio retardado, coitado…
Depois, foi andando com a coxinha até a moça e pediu para pegar a sua mala, triunfante.
– Não, esta mala é de um senhor que estava usando… Bom, não me lembro exatamente do que ele estava usando, só sei que não tinha barba e não tinha óculos. Coitado, se perdeu dezenas de vezes com a história da ficha, gostaria de saber o que se fez dele…
O outro praticamente pulou de raiva. Daí, partiu para a violência; jogou a coxinha no lixo, foi para o caixa, pagou por ela (afinal, ainda era honesto), foi para o lado de fora e, de um ímpeto, entrou na loja só o suficiente para capturar a maldita mala e correu para longe.
– Guardas!!! – berrou a mulher, contudo, e, do nada, quatro seguranças altos, tipo armário, 4X4, voaram em cima do pobre homem, derrubando-o no chão.
E, desesperado, ele começou a chorar, um dedo na orelha e outro sendo chupado, enquanto os guardas levavam a mochila de volta para a entrada.
Eu, inconformado, saí do lugar, pagando o meu café com leite, depois fui calmamente para a mulher, que já havia recebido o item roubado de volta, e pedi:
– Posso levar a minha mochila?
– Ah, é sua? Pode levar, lógico – falou ela.
Depois disso, fui até o homem, coloquei-o de pé e caminhei com ele até virar a esquina; depois, entreguei-lhe a mala.
– Pronto. E vê se nunca mais entra aqui de mala – comentei e me fui.
Ele ficou olhando sem entender. E, até onde peguei a história, nunca mais voltou para a Real de mochila ou nem mesmo com uma carteira. Só ia com o dinheiro na mão; R$ 1,60 para pagar o café grande. Coxinha, nunca mais.
Nota do autor, setembro de 2021: não preciso dizer que essa história nunca aconteceu (até a última vez que fui à Real, não tive problemas em entrar com uma bolsa ou mochila), mas foi uma ideia engraçada que tive enquanto tomava um café no intervalo das aulas de inglês que eu dava na época. O que me surpreende, sempre, é o valor das coisas, tantos anos atrás. Éramos felizes e não sabíamos!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais