E o vento me levou para viajar na maionese
Era uma vez um singelo garoto, de não mais que dezesseis anos e não menos que quinze. Seus olhos estavam cerrados, piscavam rapidamente como em um sonho, seu nariz entupido ressonava como em uma ópera com o ronco gutural que sua boca gigante provocava. O garoto fungou, fungou mais uma vez, se virou e caiu da cama. Xingou o mundo e, de olhos meio fechados, seguiu para o banheiro. Estranho. De olhos abertos, via o mundo de um modo diferente. Tudo parecia mais alto. Havia ele diminuído?
Quando chegou ao banheiro, encarava a porta do armário sob a pia. “Uhm, o que fazer?”, pensou. E usou uma patinha marrom para coçar sua antena direita. E uma outra para a esquerda. E mais duas para a barriga. Uma dupla piscada o fez perceber no que havia se tornado: “Meu Deus, eu sou uma barata!”, guinchou. Desesperado, correu para lá e para cá, agitou-se e conseguiu se apoiar na pia, sobre a qual havia duas pílulas. Uma azul e uma vermelha. Por reflexo engoliu a vermelha. Nem ele sabia por que o fazia.
Olhou-se no espelho e coçou a cabecinha. Era uma barata. Mas seu reflexo tremia. O que estava acontecendo? Com uma patinha cutucou o espelho, que, com um líquido prata, cobriu-o inteiro e o sugou. Olhou em volta. Um coelho branco com um relógio corria assustado. O homem-barata o perseguiu e saltou com ele para dentro de um poço. E virou uma mosca. Uma mosca grande e gorda, verde e nojenta. Mas, pelo menos, poderia voar.
Seguiu por um lugar cheio de árvores esquisitas. E viu uma bicicleta. Sentou-se nela, já como um homem, e começou a pedalar freneticamente. Um dedinho brilhante se esticou pela cestinha, e a bicicleta voou, seguiu adiante, cruzando a lua e formando uma sombra.
Uma manada de gnus corria pelo chão pedregoso. Havia um leão caído e um pequeno leãozinho ao seu lado. “Acorde, papai, nós temos de ir”. A bicicleta se desfez e o pobre garoto sem asas caiu, caiu, até que mergulhou em uma enorme piscina de gelatina. Foi puxado para fora por um ninja grande e gordo, loiro, com um quimono branco.
“Surpreso em me ver, senhor Anderson?” perguntou. “Mas que diabos é isso?”, indagou o coitado. E um bichinho do tamanho da sua cintura, peludo de cabelo encaracolado o chutou. “Tome o anel, você deve ficar com ele!”. E o garoto pôs o anel no dedo. Tudo estava escuro, com apenas algumas sombras brancas. E o adolescente foi andando, até bater em alguma coisa coberta por uma capa, que se descobriu no mesmo momento em que o garoto tirou o anel.
“Você viu a pedra filosofal?”, perguntou um garoto franzino, com cabelo em forma de cuia, óculos quebrados e uma cicatriz no meio da testa.
“O quê?”, tentou dizer o outro, mas o anel em sua mão havia se transformado em um guarda-chuva e o levava flutuando, até uma banheira gigante no alto de uma casa, onde ficava um homem vestido de capitão, girando um leme. O garoto saltou para baixo, escorregando por uma construção em forma de bota, cheia de janelinhas e uma portinha, para dar de cara com um burro.
“Ou, olha o respeito”, começou, mas um ogro verde e gordo o tirou do caminho. “Ignore o burro, ele é muito mal-educado”, retrucou o ogro, antes de berrar, seu bafo podre soltando pedacinhos de comida contra o garoto, que correu desesperado para uma lanchonete. No banco sentavam-se um palhaço de pés gigantes e cabelos vermelhados para o lado, fumando um charuto, enquanto um homem de topete, um tanto gordo, comia três x-burgueres com milquisheiquis. “Não, eu não morri”, disse. O garoto se sentou a uma mesa, assustado, e olhou para os lados. Reparou no homem à sua frente. Ele era esquisito, fazia umas caras amalucadas. Tirou uma colher da boca, pouco antes de um vento forte entrar pelas portas, e a sopa de tomate à sua frente se separar em duas partes.
O garoto gritou. O homem todo poderoso gritou. E um raio caiu sobre o pobre jovem, um raio verde, brilhante, cilíndrico, que o puxou para cima, para cima, para cima, e por fim para dentro de uma nave espacial. Ele olhou em volta. Sentadas em inúmeras cadeiras, com vários botões, vacas com aquários nas cabeças, alguns ainda com água, mugiam. O disco rodou, e o garoto pôde ver um velho pelejando para amarrar um peixe enorme em um barco muito pequeno no mar logo abaixo. Depois seguiu e viu uma fazenda na qual porcos fumavam charutos e animais tentavam construir um moinho. E a nave subiu mais ainda, antes de deixá-lo em uma rua feita toda de leite, com paralelepípedos de queijo. Um rato magro e alto e um baixinho e cabeçudo andavam por ele. O magro cantava que gostava de queijo, enquanto outro planeja conquistar o mundo. O garoto se virou; uma garotinha com um leão, um homem de lata e um espantalho pediam carona para um caminhão que passava. Este era dirigido por um porco falante, atrás de um pára-brisa com a frase Beibe, o porcão. O caminhão passou devagar, levando os amigos atrás, na carroceria, onde havia uma centena de gaiolas com homens presos. E um pêssego gigante com um garoto e um grupo de insetos se projetando para fora rolou ao lado. O adolescente na rua ia ser atropelado!
Uma pedra apareceu no meio do caminho, fazendo com o que o pêssego voasse e voasse para cima, parando na boca de um dinossauro gigante, que pisava sobre o Japão logo abaixo, onde um bichinho amarelo de rabo em forma de raio soltava trovões e gritava algo como “Piqueachu!”.
Um rabo se projetou para cima e se enrolou no garoto lívido, puxando-o de volta para a terra. Um monstro de pescoço longo e rabo ainda mais longo o encarava, enquanto um pato ganancioso e mais outros patinhos pensavam em como ganhar dinheiro com isso. E uma baleia branca gigante pegou o pobre garoto, levando-o para as profundezas. O jovem, de madeira, com um nariz que crescia e diminuía, olhava em torno de si, dentro do estômago da enorme baleia. E algo de ferro se projetou para dentro, sendo seguido pelo resto de um submarino, que o puxou por uma portinhola para dentro de si, onde se encontrava um homem que insistia em se chamar de ninguém. Isso foi demais para o pobre garoto, que desmaiou. E ninguém o levou para a casa, e ninguém o deixou na cama.
No dia seguinte, o garoto acordou assustado. Três porcos estavam em torno de si, e um lobo soprava a porta da casa. E a casa caiu. Isso acabou com toda a paciência do pobre garoto. Ele saltou do texto do Word, saiu da tela do computador, e ameaçou matar o autor se ele não parasse com isso. Depois retornou para a estória. E o autor, temendo por sua vida, terminou o texto com um “E ele viveu feliz para sempre”.
E ele viveu feliz para sempre.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais