Imortais?
Certo dia fui com os meus amigos para o Autibéqui, um dos melhores lugares que há para se ficar conversando sem ter de gastar muito, uma vez que, por menos de cinco reais, você pode tomar quantos refis de refrigerante ou chá quiser. O que, em tempos de lei seca, é a coisa mais segura a se fazer. Sem mencionar que, se você pedir, eles ainda trazem aquele delicioso pão australiano com manteiga de leite de canguru (será?).
Conforme a conversa ia e vinha, acabamos, de alguma forma, entrando no assunto da imortalidade. Provavelmente devido a alguma conexão perdida ligando células-tronco e transplante ao caso da Eloá, banhada a muito chá preto e coca-cola.
– Imaginem como seria se nós fôssemos imortais – começou um, não saberíamos dizer quem, no final da noite.
– Bom… Não teria fim – respondeu outro, dizendo a coisa mais óbvia do mundo.
– Acho que seria ótimo – comentou um terceiro, mais ambicioso. Era um amigo meu um tanto materialista. – Imaginem a quantidade de coisas que conseguiríamos fazer em uma vida só? Eu quero dizer… Viver pra sempre… Dá pra você fazer muita coisa.
– Será que não cansa, não? – opinou uma amiga.
– Talvez, em algum momento, fique repetitivo – arrisquei.
– Acho que não – voltou o materialista. – Se você cansar, é só mudar. Quer dizer, você não vai ter preocupações na vida, se for imortal.
– Tá, mas você quer dizer imortal que nem o Railander, ou imortal que você envelhece até o inferno e não adianta que não morre?
– Como assim?
– Vai ficando velho até não dar mais, sem conseguir respirar, nem se mexer, nem nada, mas não morre.
– Não, imortal com saúde. Seria meio insustentável assim e totalmente contra a ideia das células tronco! – peremptoriou. – Você poderia trocar de profissão quando quisesse.
– Eu teria. Se as pessoas fossem imortais e não tivessem problemas de saúde nunca, eu não teria com o que trabalhar. Só os politraumatizados… E provavelmente aumentaria a incidência de acidentes. Imagina se todo mundo soubesse que pode andar a 300 por hora que não vai morrer no acidente?
– Ia precisar de mais policiais, isso sim. E radares – imaginou o que iniciou a discussão.
– Imagine os traficantes do Rio de Janeiro. Se já se acham os bam-bam-bans porque não são pegos nunca, quem diria se não morressem nunca?
– Quer parar de ver o lado ruim das coisas? – disse o materialista.
– Então traga alguma vantagem para a mesa.
– Quer benefício melhor que saber que você não vai morrer? Só isso já deve tirar 90% das neuroses de todo mundo. Acho que a sociedade seria mais pacífica.
– Seria uma sociedade meio insustentável – opinou a nossa amiga. – As pessoas teriam de ser proibidas de ter filhos, se não, a Terra ia explodir!
– Será que a Terra ficaria tão pesada com a hiperpopulação que iria atrair o Sol e o sistema solar inteiro explodiria? – comentou aquele outro, que já dissera a coisa mais óbvia do mundo e agora dizia a coisa mais sem nexo do sistema solar.
– Não – disse, rispidamente, provavelmente o único que se relevava a respondê-lo (e talvez até mesmo escutá-lo).
– Acho que ia ter gente se adotando mutuamente, já que não poderiam ter filhos. Imagine, você poderia ter um filho mais velho que você e um avô mais novo que você e o seu pai! – comentou o primeiro da discussão.
– Acho que os casamentos não durariam – disse o materialista. – Imagine ser casado pela eternidade com a mesma pessoa? O lado bom é que você poderia trocar sempre…
– E aquela história de as pessoas se amarem por toda eternidade até que a morte os separe, quando casam? – redarguiu a moça.
– Foi pro saco, pelo jeito – falei.
– Afe, todo dia acordar do lado da mesma pessoa pelo resto da eternidade? Não ia aguentar. Aliás, acho que não iam nem me aguentar – opinou o primeiro.
– Seria uma evolução do ficar. As pessoas casariam temporariamente. Aliás, acho que nem se casariam, talvez só vivessem juntas. Não poderiam mais ter filhos, de qualquer forma, então não vejo por que casariam… – joguei a ideia.
– Talvez pela igreja. Por certas… Convenções – a ideia veio da moça.
– Rá, que com certeza já não durariam mais! Imagine, por quanto tempo você se sustenta mantendo essas suas “convenções”, sendo que você não vai morrer e, portanto, não vai pro inferno nunca? – disse o materialista, que já não acreditava em inferno de qualquer forma, fazendo questão de sinalizar as aspas com duas batatinhas.
– Aliás, existiria religião?
– Acho que não – comentei. – Perderia sua função primordial, que é achar uma explicação confortável para o que vem depois da morte. Talvez existissem novas religiões específicas para manter as pessoas sãs por toda a eternidade em que viveriam.
– Traz mais uma rodada – pediu ao garçom aquele das ideias esdrúxulas, na primeira coisa útil que falara até então.
– Haja psiquiatra num mundo desses!
– Até que ponto será que você guardaria suas lembranças, ehm? Será que você começaria a esquecer as coisas recentes, ou esqueceria as coisas do começo da vida?
– Boa pergunta – disse a moça.
– Mas seria legal, você poderia enriquecer cada vez mais..,
– Será que seria tão importante enriquecer? Será que as pessoas conseguiriam se manter ricas? Por quanto tempo você conseguiria manter seu status? Aliás, até mesmo o seu emprego – comentou o primeiro. – Será que alguém aguenta trabalhar com a mesma coisa pela eternidade toda, além de Deus?
– Acho que em algum ponto as pessoas talvez cansassem de ter as roupas da moda e carros da moda. Talvez passassem ciclicamente por períodos de riqueza e de pobreza, né? – opinei.
– E se elas cansassem? Como fariam para acabar com tudo? Como uma pessoa imortal faz pra morrer? – voltou a moça.
– Se mata! – desnecessário dizer o genitor do comentário.
– Como, se ela é imortal? – respondi, não sei por quê.
– Ah.
– Será que a vida não iria perder o valor, em algum ponto? Quero dizer… Imagine algo que você sabe que nunca vai acabar. Como o bigui bróder ou o Silvio Santos… Alguém dá valor pra isso? Você daria algum valor pra sua vida se soubesse que ela nunca vai acabar?
– E desde quando saber que ela vai acabar te faz dar mais valor? Faz dar mais aflição, isso sim – opinou o materialista.
– Não sei. Acho que as pessoas só valorizam a vida porque sabem que um dia ela vai acabar. E, por isso, fazem questão de aproveitar ao máximo. Dizem até que os ateístas são mais certinhos e aproveitam mais a vida do que os mais religiosos, que acreditam que, depois que morrerem, vão ter uma outra vida no céu – falei.
– Mas, se Deus não existe, tudo é permitido – comentou o primeiro, com ares de sábio.
– Ai, biscoito da sorte – zombou o materialista.
– Mas, sem Deus, não tem ninguém para olhar por você. E não vai ter nada depois do fim. Então, por que não se esforçar para viver ao máximo e aproveitar a vida que tem?
Não houve uma resposta para isso; neste ponto, a conversa meio que morreu.
A moça pegou sua nova caneca de chá, tomou um gole e tremeu, como se tivesse um calafrio.
– Não gostaria de viver para sempre – bufou. – Que coisa horrível.
– Nem eu – respondi.
Os outros concordaram, erguendo suas canecas.
– À morte e todos os seus amigos! – terminou o primeiro, e todos brindamos.
– Mas, e se a gente só vivesse o dobro do esperado pra raça humana? – opinou o materialista.
– Com ou sem saúde?…
E assim morreu a conversa sobre imortalidade. Nota do autor, setembro de 2021: é, esses pensamentos filosóficos continuam permeando toda a nossa sociedade ainda hoje. Mas, gostaria de lembrar, existem duas coisas: o imortal, que não morre nunca, mesmo, e o amortal, que não morre por causas naturais, mas, se for atropelado, por exemplo, pode morrer. Há expectativas da ciência de que os homens alcancem a amortalidade – mas eu tenho as minhas dúvidas. E você? Gostaria de ser (a/)imortal?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais