Medicina do Futuro – Baseada em Evidências
Anos atrás o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro foi criado com o intuito de levar a saúde para toda a população da nossa nação. Entretanto, mesmo anos após a sua implantação, os pacientes ainda continuavam insatisfeitos com o serviço. Fazia parte dos princípios que regem o SUS a universalidade, integralidade e equidade; todos seriam atendidos, desde a prevenção até a reabilitação, com todos os gastos necessários para tal, e direcionando os maiores cuidados aos mais necessitados.
Contudo, ao mesmo tempo, a medicina do Século XX (e especialmente a do Século XXI) evoluiu com a chamada “Base em evidências”. Isto significa que tratamentos só serão creditados e utilizados na população em geral após a sua validação científica. Grandes estudos epidemiológicos são usados como base para as mais diversas coisas. E uma mania – a chamada “Febre do P” – se disseminou.
Febre do P quer dizer que o médico apenas fará o tratamento se o P do estudo for significativo – ou seja, se o tratamento avaliado no estudo for melhor do que o outro tratamento, ou o placebo, ou o controle, de modo estatisticamente significativo, ou melhor do que apenas as chances de isto acontecer espontaneamente na natureza. A Febre do P já se mostrou um erro fundamental em inúmeros estudos que não precisam sequer ser citados – basta lembrar a célebre frase, “O P não é um substituto para um cérebro”, ou seja: um simples número não representa tudo na vida. Especialmente quando se trata de estudos de eficácia, que avaliam uma minúscula parte da população e tentam criar os ditames para o resto dela. Comumente ignorando os idosos.
É como as pesquisas pré-eleitorais: amostras ínfimas da população, o equivalente muitas vezes a quatro pessoas em um estádio de futebol lotado, servem de referência para os nossos prováveis futuros governantes.
O que vem ocorrendo nos últimos anos, contudo, foi a elevação ao extremo desta medicina baseada em evidências, associada à saúde pública, a chamada “Medicina do Futuro”, que se esqueceu do humanismo para se basear em números. Devido ao rombo do INSS e a insustentabilidade da saúde pública, fomos levados a cortar custos. É revoltante de se pensar nisso; nós, médicos, pelo governo, somos obrigados a esquecer o juramento de Hipócrates, abdicar do nosso Código de Ética Médica e seguir as novas recomendações do SUS – que tenta copiar países de primeiro mundo e foi atualizado pela lei 8080/20 (Nova Lei do SUS), ironicamente de mesmo número que a lei originária do SUS, 8080/90. Vou dar apenas exemplos do que aconteceu nos últimos meses, para que os senhores fiquem a par:
- Transplante renal: muito popular foi a notícia de uma juíza que, seguindo as recomendações da Nova Lei do SUS, proibiu o transplante de um senhor, mas permitiu a de uma senhora; vou explicar por quê. O primeiro era um gari, sem nenhuma doença de base, em insuficiência renal crônica, que pretendia entrar para a fila de transplantes. Entretanto, para tal, precisava de avaliação e permissão judicial. A avaliação da juíza foi de que, infelizmente, os gastos com os medicamentos imunossupressores e as complicações daí advindas não poderiam cobrir a sua contribuição monetária para a sociedade. Eles poderiam disponibilizar um aparelho de diálise peritoneal – que vem barateando gradativamente nos últimos anos – mas nada além disso. Sua expectativa de vida ficou reduzida de 10 a 20 para 2 anos, aproximadamente. Um grande ganho, do ponto de vista de gastos, não? Contudo, logo em seguida, foi avaliado o caso de uma médica, portadora de síndrome metabólica e já usuária de diversos medicamentos para diabetes, com insuficiência renal crônica; como seus ganhos como cirurgiã plástica ultrapassavam, e muito, os gastos governamentais com medicamentos imunossupressores, ela foi agraciada com a honra de participar da fila de transplantes. Ah, sim, para não dizer que a juíza foi má: ela deu ao gari a possibilidade de arcar com a diferença entre o seu salário e os custos do medicamento. Como? Não importa. Mas que ela deu a chance, ela deu.
- Transplante cardíaco: mais um caso interessante: em outro estado, um juiz permitiu a um garoto de dois anos entrar na fila para transplante e receber o medicamento do governo, contanto que os pais se comprometessem a fazê-lo seguir alguma carreira com amplo salário, como, por exemplo, advocacia ou medicina. Talvez pudesse seguir carreira política, eu penso. Por que não?
- Transtorno somatoforme: uma decisão inédita, baseada em evidências (desnecessário dizer que duvidosas; sou levado a crer que nos últimos anos temos uma indústria de dados falsos de saúde, como a que se implantou já há décadas nos Estados Unidos, confundindo todos sobre fatos inegáveis como o aquecimento global) de que pacientes portadores de transtorno somatoforme recorrem ao médico 95% por queixas pouco importantes e de baixíssima morbimortalidade, levou à decisão de revogar o direito destes ao atendimento médico. Sim! Mas abriram uma exceção para certas emergências, descritas na Nova Lei do SUS. Por outro lado, se os infelizes destes pacientes aparecerem no serviço com três queixas de emergência que se mostrarem não ser emergências verdadeiras, seu atendimento público seria imediatamente negado – ad eternum.
- Esquizofrenia: aos esquizofrênicos, apenas o tratamento com haloperidol foi liberado, por ser o antipsicótico mais barato da rede. Nada de alto custo, a menos que as famílias possam pagar, ou o salário do paciente for o suficiente para cobrir. As aposentadorias por invalidez foram revogadas. Se o paciente for esquizofrênico residual e não mais contribuir para a sociedade, será deportado. Provavelmente, para Cuba.
- Infartados: pacientes que infartam e têm comorbidades têm direito a apenas um atendimento. Se continuar: a) obeso; b) dislipidêmico; c) hipercolesterolêmico; d) hiperglicêmico; e) tabagista depois do tratamento deste primeiro infarto, com ou sem stent, revascularização ou uma simples trombólise, não receberá mais tratamento custeado pelo governo. Nem em caso de emergência. Todos os métodos de tratamento não-medicamentosos das comorbidades são estimulados. E ai do paciente se não cumpri-los.
- Usuários de drogas: terão direito a uma desintoxicação. Se prosseguirem usando, não receberão mais atendimento. Se engravidarem em vigência do uso, serão deportados.
- Malformações: mães de malformados identificados previamente no pré-natal serão convidadas ao aborto profilático. O governo não vai gastar cuidando deste problema.
- Cirróticos: por alcoolismo: sem tratamento. Por hepatite adquirida por transfusões antes de 1990 ou acidentes com materiais biológicos, tudo bem. Por contaminação sexual ou por uso de drogas injetáveis, novamente, sem tratamento. Afinal de contas, é para isso que o governo gasta milhões em campanhas de prevenção e vacinação.
Pelo exposto acima, fica claro que a medicina está caminhando para a desumanidade. Quero aqui expor o meu manifesto de oposição ao absurdo que se tornou a chamada “Medicina do Futuro” e a decisão conjunta de todos os médicos deste país de tratarem todos os pacientes seguindo os antigos preceitos do SUS, até que todos os recursos acabem. E, quando estes acabarem, declararemos greve, até que o governo restitua a nossa antiga lei 8080/90.
Contamos com a colaboração de todos nesta luta pela humanidade!
David G Nordon
Nota do autor, setembro de 2021: escrevi esta crônica em 2011 e publiquei no jornal da faculdade, como uma crítica aos caminhos aos quais a ciência nos leva. Na época, vários colegas vieram perguntar se era verdade, apesar do claro absurdo e desrespeito aos direitos humanos. De qualquer forma, nunca imaginei que, 10 anos depois, estaria lutando para que as pessoas acreditassem na ciência, em vez de a ciência ter nos desumanizado!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais