Meia Vida
Seu nome era Gideon. Pela escola inteira, desde que nela entrara – e isso fora com o quê? Cinco anos? –, sempre fora considerado um daqueles gênios de computador. Aquele cara da classe que andava por aí de óculos, o rosto enfiado em um gueime-bói (na época; ele progressivamente evoluiu até o PSP), gastando seus recreios nas mais diversas aventuras do Mário. Por ser de fato um gênio inegável da tecnologia, quando alguém tinha alguma dificuldade com computador, ia perguntar para ele, superando o medo de acessar aquele monge isolado do mundo virtual. Não que ele fosse mal educado – não, ele nunca foi, pelo menos, a seu ponto de vista –, mas o fato é que ele falava em uma linguagem quase ininteligível para humanos – ou pessoas que moravam fora da Matríquis.
No começo, seus pais não o deixavam brincar excessivamente no computador – isto é, até os quatro, cinco anos, quando se separaram e o esqueceram; a mãe cuidava dele durante a semana, embora cuidar, para ela, significasse deixar largado em casa com a babá enquanto ia trabalhar ou arranjava encontros com namorados trocados a cada semana; já o pai, um famoso empresário, ficava com ele durante os fins de semana, apesar de isto também ser apenas uma figura de linguagem, já que o mais perto que o filho chegava dele era ficar na torre que era o seu império, enquanto ele tinha reuniões na China, que funcionava aos sábados, e no Japão, onde domingo já era segunda, e ficar na casa dele durante a noite enquanto ele passeava com sua(s) namorada(s).
Não que Gideon reclamasse; para ele era uma ótima oportunidade de se perder no mundo virtual sem que ninguém o perturbasse, como costumavam fazer na escola.
O tempo passou; vieram os jogos na linha, os jogos de vários jogadores, os simuladores, os diversos RPG, mas, os que mais fascinavam o garoto, mais até mesmo do que Cáunter Istráiqui e Raguinaróqui (nos quais ele não via tanta graça assim, para dizer a verdade, julgando-os elementares e fantasiosos demais), era o Secondi Laifi, no qual Gideon poderia ter a vida que nunca tivera.
Ia para a escola de manhã, por falta de escolha; então, chegava à casa, sentava de frente para o computador e ficava lá, das duas à meia-noite. Trabalho duro.
Criou seu avatar, um homem de vinte e três anos, mas sem formação escolar nem nada assim; era um fri-lencer. Tirava fotos, vez por outra, para um jornal.
O tempo foi passando, e quando Gideon alcançou os 18, seu avatar, J.C., alcançou seus 30; a escola finalmente acabara, e o garoto tinha o tempo que quisesse para ficar em casa com o seu amigo.
Adotou, então, uma rotina puxada; acordava às três horas da tarde, e só ia dormir às sete horas da manhã; neste meio tempo, jogava no secondi laifi, e observava, satisfeitíssimo, o seu personagem favorito crescer.
Conhecera cidades; entrara em universidades; comprara carros, casas; ora, até mesmo voara! Era inacreditável o que conseguia fazer com aquele programa! Estava embasbacado com todas as possibilidades que a vida poderia lhe oferecer.
Chegava a hora do almoço, e a empregada o chamava, mas ele só comia se lhe fosse trazido para a mesa, coisa à qual ela já estava acostumada – mas nunca perdia as esperanças de arrancá-lo de seu cubículo. Chegava a hora da janta, a mesma coisa; a comida era trazida em um prato, ele engolia metade, sem desviar os olhos da tela, e o resto ficava lá, do lado, esperando para ser levado de volta.
O quarto era fechado, o ar-condicionado ligado, porque o frio fazia o seu cérebro pensar melhor, e as persianas cerradas para que não entrasse a luz do sol, que tanto atrapalhava causando reflexos na tela, nos momentos mais preciosos. Sua cadeira já havia sido moldada ao seu corpo, de um modo que, ao se sentar, podia ficar lá, sem se mexer, por horas; muitas vezes, por sinal, ficava tão confortável lá, que preferia dormir sentado nela a se deitar na cama (especialmente porque, nas poucas duas vezes em que andara no último semestre, sentira não só câimbras profundas nas pernas, como não conseguira mudar da posição em que estivera, de modo que podia parar no meio do caminho e pareceria estar sentado em uma cadeira invisível); suas mãos já estavam tão acostumadas ao teclado que, muitas vezes, seus dedos ultrapassavam a velocidade de seu pensamento, e ele se encontrava enrolando as palavras; os graus de seus óculos muito haviam aumentado, e bimestralmente ele mandava sua doméstica chamar o oftalmologista para examiná-lo em casa.
J.C., por outro lado, era extremamente ativo; todos os dias ia para o trabalho, voltava, ia para a academia, passeava com o cachorro, fazia compras, fazia o curso de inglês, francês e chinês. Com o passar do tempo, passou a desenvolver jogos de computadores e, em associação com mais três outros homens, lançou as bases para uma empresa de sucesso na área.
Encontrou o amor de sua vida e, entre tantos encontros fogosos e apaixonados, chamou a moça para morar em sua casa; ela aceitou, e, com o passar do tempo, pediu-a em casamento; em questão de três anos, já estava grávida.
A casa tinha vinte cômodos, com direito a hidromassagem gigante do lado de fora; cinco carros diferentes ficavam estacionados na garagem, e ele quebrava a cabeça, arquitetando um novo quarto, onde colocaria o seu iate.
Foi no vigésimo encontro com o oftalmologista que tudo aconteceu.
Veio um outro médico, novo na clínica, e, como de costume, trouxe todo o maquinário. Entretanto, talvez porque nunca fora instruído do contrário, trouxe consigo também um espelho – cuja entrada era terminantemente proibida naquele quarto –, parte essencial de uma certa máquina. Gideon o encarou, em um reflexo pela luz do computador, mas mal distinguiu sua face distorcida.
Um homem, de vinte e tantos anos, que mais parecia um velho; a barba crescendo em tufos mal feitos, o cabelo ensebado, esbranquiçado de todas as vezes que perdera ações nas bolsas virtuais, olheiras sob os olhos, a pele macilenta e mais branca que leite, os membros débeis, a coluna entortada, e uma pochete saindo por sobre a calça de moletom. Quem era aquele monstro que estava sentado na cadeira?
Ele olhou para os lados, tentando identificá-lo, mas não conseguia. Quem era ele? Havia apenas Gideon e o doutor na sala, logo…? O doutor era um moço jovem, de uns trinta anos, os cabelos pretos e a pele bem escura; não tinha como ser ele. E ele, Gideon, aliás, J.C., tinha seus trinta e cinco, trinta e seis anos, os cabelos castanhos, os olhos claros, o porte físico de um atleta, e a pele bronzeada de quem até há pouco saíra de férias da empresa. Logo, quem era o monstro refletido no espelho?
– O que foi, Gideon? – indagou o médico, assustado.
– Quem…? – murmurou ele, mas sua voz não saía já havia três anos ou mais.
Ao movimentar as mãos, associou os movimentos, e finalmente entendeu.
Pegou um máusi reserva, que tinha aos montes em uma gaveta ao seu lado, e debilmente o arremessou contra o doutor que, amedrontado com aquela figura asquerosa, não esperou outro momento para fugir.
Com esforço, Gideon rodou a cadeirinha até a porta do quarto e mais uma vez a trancou. Depois, ofegante, voltou para a frente do computador, dirigiu J.C. para uma loja de armas e, sem hesitar, fê-lo atirar em si mesmo.
J.C. morreu.
Estava livre.
Nunca sentira um alívio tão grande. Agora, podia fazer o que quisesse, podia começar do zero; nada mais de ser a sombra daquele homem asqueroso!
Era isso.
Ah, que alívio!
Agora…
Abriu a janela do programa mais uma vez e clicou em um ícone: Criar nova conta.
É isso aí! Ele vai se chamar… Dorian. G. Dorian G.
Nota do autor, setembro de 2021: esta é uma de algumas crônicas em que falo sobre os grandes perigos de se perder no mundo virtual. Lógico, com um pouco de exagero. Mas que poderá dizer que isso não vai acontecer, se não tomarmos cuidado?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais