O Processo
Alguém deve ter caluniado José K., porque, certo dia, ele se viu recebendo um e-mail indicando que estava convocado para uma pré-reunião. Pré-reunião de que, ele não sabia, mas elas eram famosas por serem bastante, digamos, peculiares.
Passou a semana confabulando com seus colegas e se questionando a respeito de que seria a tão famigerada pré-reunião, e por que ele, um reles funcionário na linha de produção, seria tão importante para uma pré-reunião. Seria um acordo de classes? Iriam notificá-lo com uma advertência, talvez? Mas, o que fizera de errado? Ora, talvez fosse, então, uma promoção, afinal, em 20 anos de trabalho naquela empresa, nunca dera problema algum, nem faltara ou pegara atestados. Mas, por outro lado, queria ele ser promovido? Promovido a quê? Teria de controlar os outros funcionários, vistoriá-los, certificar-se de que estavam trabalhando adequadamente? Por que criar inimizades? Não, não tinha intenção alguma deste tipo de coisa, talvez fosse melhor, ao chegar à tal pré-reunião, já dizer logo de cara que não tinha a menor intenção de aceitar uma promoção, não, de forma alguma, não poderia sujeitar seus colegas ao seu jugo, não se julgava digno, não, não…
Poderia ser uma transferência, também, para alguma outra unidade, o que seria, indubitavelmente, ruim. Havia acabado de pagar sua casa, financiada em trinta anos, não tinha a intenção de se mudar e se enfiar em outra dívida, não neste momento da sua vida. Mas, talvez, fosse em uma unidade não tão longe, era possível, talvez fosse acessível de metrô, era uma possibilidade, ou, quem sabe, a própria empresa não pagasse pela transferência? Mas, daí novamente, por que ele, um reles trabalhador da linha de produção, que não faria a menor diferença para a grande engrenagem que mantinha aquela empresa funcionando?
Achou melhor parar de pensar a respeito e simplesmente esperar.
Assim, no dia determinado, ele compareceu ao terceiro andar, sala 303, na sede da sua empresa, no horário especificado, e se sentou à enorme mesa de reunião, que tinha mais de doze cadeiras, sentindo-se quase um apóstolo. Melhor não me sentar bem no meio, considerou, e ficou bem no canto.
Os ponteiros do relógio da sala se moviam continuamente, e ele ficava lá, parado, pensativo; o que fazia lá? Quem seriam os outros da pré-reunião? O que viria a acontecer, finalmente?
Com cinco minutos de atraso, outras pessoas começaram a chegar; havia de todos os tipos, dos mais variados níveis e funções, alguns de uniforme, outros de terno, todos com crachás. Conforme chegavam, iam se assentando, cada um a um canto, os primeiros indecisos pela grande disponibilidade de lugares, os próximos já mais direcionados, pois os lugares escasseavam. Ninguém falava absolutamente nada; estavam todos curiosos com o que havia acontecido para serem chamados para tal evento, mas nenhum deles se conhecia, embora todos trabalhassem exatamente no mesmo lugar, e ficaram quietos, mexendo em seus celulares ou terminando alguma tarefa.
Sobrou, afinal, a última cadeira, à cabeceira da mesa, e, com quinze minutos de atraso, um homem de terno e óculos, portando uma maleta, entrou.
– Bom dia.
Todos o saudaram de volta.
– Imagino que estejam todos curiosos por que os chamamos aqui. Pois bem. Marcamos esta reunião para podermos agendar a data da reunião – ele puxou o celular do bolso, moveu o dedo pela tela e falou, sem olhar para eles –, que será, se todos puderem, na próxima quinta-feira, às dez horas da manhã, na sala 505. Todos de acordo?
Os funcionários se entreolharam e, como ovelhas, concordaram.
– Está certo, então, nos vemos lá. Pré-reunião encerrada. Voltem aos seus trabalhos.
E, com isso, o homem de terno voltou por onde veio.
Uma tosse, um arrastar de cadeira, alguns olhares indecisos. Por fim, alguém se levantou e, em um sincício, todos saíram da sala de reuniões, todos com a mesma pergunta: o que ocorreria na próxima quinta-feira? E por que agendar uma pré-reunião para agendar uma reunião, sendo que eles poderiam simplesmente fazer isso por e-mail?
Devia ser algo sério, algo muito sério, sério o suficiente para, justamente, requerer uma pré-reunião para se certificar de que todos estariam presentes na próxima reunião! Pela empresa, os rumores corriam e todos se perguntavam: o que os participantes daquela reunião tinham em comum, o que os unia o suficiente para poderem participar daquela pré-reunião? Bem, só poderiam descobrir participando da reunião!
Assim, na próxima quinta-feira, às dez horas da manhã pontualmente, estavam todos os 12 presentes na sala de reunião 505. Os ponteiros se moviam lentamente, arrastavam-se, e todos olhavam para os lados, para a mesa, para as mãos, para os celulares, ansiosos, sem saber o que esperar. O que haveria naquela reunião? O que aconteceria agora?
Por fim, o mesmo homem enternado e de óculos apareceu, com a sua mesma maleta, após dez minutos de atraso.
– Senhoras e senhores, muito obrigado por comparecerem a esta reunião. Sei que estão todos muito atarefados neste momento e que certamente foi difícil separar na agenda um horário para nos encontrarmos. Justamente por isso, serei breve.
Ele tossiu e ajeitou os óculos; todos se ajeitaram nas cadeiras e o encararam. Finalmente, iriam descobrir o motivo daquela pré-reunião que levara à reunião!
– Próxima terça-feira, às 10:45 da manhã, estariam todos disponíveis?
Todos se entreolharam; próxima terça-feira? O que aconteceria lá?
Uma moça levantou timidamente a mão.
– Eu… Tenho médico, mas posso remarcar.
– Excelente. Muito obrigado pelo seu comprometimento, não será esquecido. Todos podem, então?
As doze cabeças se moveram em assentimento.
– Perfeito. Nos vemos na próxima terça, às 10:45, na sala 202. Até lá, pessoal.
E voltou por onde entrara.
Os funcionários se olharam, abismados; um tossiu, outro riu, alguns balançaram as cabeças, outros deram de ombros. E, assim, ainda mais curiosos com o que estava acontecendo, eles simplesmente se levantaram e seguiram porta afora.
Eles estavam brincando com eles, não era possível, imaginou José. Não tinha como ser outra coisa; duas reuniões para agendar uma terceira reunião? Mas, e a moça que quase perdera a terceira reunião, por causa do médico; será que era isso? Um teste? Estavam vendo quem resistiria até o final do agendamento das reuniões? Seria uma competição? O que essa pessoa ganharia? O mistério perdurava, e José perdia o sono, a fome, a energia conjecturando o dia inteiro: para que serviam aquelas reuniões, e o que queriam dele?
Na terça-feira, às 10:40 as pessoas já estavam do lado de fora, esperando uma funcionária vir destrancar a porta da sala 202. Às 10:44, todos entraram e se assentaram, em um silêncio macambúzio, resignado; estavam lá. Por que estavam lá, não sabiam, mas estavam lá, e assim fariam, se fosse necessário.
Desta vez menos atrasado, às 10:50, o homem de terno, óculos e maleta mais uma vez entrou.
– Senhoras e senhores, muito obrigado mais uma vez pela sua disponibilidade. Tentarei ser o mais breve possível nesta tão importante pré-reunião.
Pré-reunião? Então, estavam em outra pré-reunião? Será que ele marcaria uma nova reunião, como da última vez?
– Estão todos presentes aqui, correto?
Os treze se entreolharam; estavam todos lá. Naquele momento, já se conheciam por nome e haviam conversado vez ou outra na sede da empresa, elucubrando sobre o que estava acontecendo.
– Muito bem, estando todos presentes à pré-reunião, vamos à reunião.
Ele fuçou no celular mais um pouco.
– Quarta-feira da semana que vem, às 13:33. Estarão todos disponíveis?
Um homem ergueu a mão.
– Eu… Entro de férias nesta sexta-feira.
– Uhm – retrucou o homem, simplesmente.
– Mas eu posso tentar mudar minha passagem…
– Perfeito – disse ele, simplesmente. – Quarta-feira, 13:33, sala 413. Até lá.
E, com isso, saiu da sala. Os funcionários se encararam, algo enfurecidos, sem compreender em absoluto o que estava ocorrendo. Você vai mesmo mudar suas férias só por causa disso?, questionavam ao colega. Não sei, não sei… Provavelmente só marcariam mais uma reunião, por que atrapalhar suas férias? E, além disso, se reagendasse outra para dali uma semana, ele ainda estaria de férias, não adiantaria nada. Mas, e se, justo na semana que vem, eles falassem algo importante? Só poderia ser um teste, era isso, algo que eles não estavam entendendo. Não podiam deixar de participar das reuniões, simplesmente não podiam. Tinha de ser algo importante. Tinha de ser. Ninguém gastaria o tempo de treze pessoas assim, à toa, não é?
Não é?
Os meses se passaram; toda semana, uma nova reunião, pré-reunião, ou fosse o que fosse, para agendar a próxima reunião. Aos poucos, os outros funcionários foram desistindo, até que sobraram apenas José K. e Francisco, ambos funcionários antigos, com poucas funções e agenda livre o suficiente para sempre comparecerem. Não sabiam qual era o motivo das reuniões, mas não iriam deixar de participar. Em suas mentes, calculavam: devia haver algum prêmio, alguma coisa, para quem chegasse ao final.
Até que por fim, em uma reunião, o homem de terno fez algo diferente.
– Seu Francisco… – ele falou, mexendo no celular.
– Sim! – o outro respondeu, prontamente, emocionado. Finalmente, algo diferente! Finalmente, ele diria para que estavam lá! Agora, era a hora tão esperada! Ele havia ganhado! Tirado a sorte grande!
– Aqui diz que o senhor se aposentou há dois meses e parou de trabalhar nesta empresa.
– Sim… – ele concordou. – Mas, demonstrando minha dedicação a esta empresa depois de tantos anos, continuei vindo às reuniões!
– Sim, sua lealdade e sua dedicação são certamente notáveis. É muito bom saber que temos funcionários tão bons quanto o senhor. No entanto, se está aposentado, não é necessário que venha mais às reuniões, seu Francisco. Gostaria de pedir, assim, que o senhor se retirasse, por favor.
José K. se controlou para não rir, nem comemorar. Francisco, por sua vez, algo decepcionado, afastou a cadeira e se levantou; estava aposentado, não tinha absolutamente mais nada para fazer, poderia continuar vindo às reuniões para agendar reuniões pelo resto de sua vida, mas não teve energia para dizer isso ao homem diante de si. Não. Aquele processo havia acabado para ele. Chega. Hora de voltar para casa e fazer outra coisa da vida.
Quando ele se retirou, José olhou esperançoso para o homem diante de si. Era isso. Ele havia ganhado o desafio! Agora, era a hora de saber qual seria o seu prêmio.
O homem de terno o encarou e ajustou os óculos com um sorriso.
– Senhor José K. Que bom que o senhor nos acompanhou até o final.
Ele se empertigou na cadeira, ajeitando-se. Era isso. Fora o único que resistira até o fim. O único que viera ao longo daquelas 37 intermináveis reuniões para agendar reuniões. Era um teste e ele havia ganhado. Era este o momento, este o momento de saborear sua vitória. Uma promoção? Um prêmio? Uma aposentadoria adiantada? Uma viagem paga para as ilhas Maldivas? O que seria?
– Próxima sexta-feira, às 8:40, o senhor estará disponível?
Ele sentiu seu interior afundar. Mais uma reunião?
– Sim – respondeu.
Apesar do desânimo, não iria desistir tão cedo. Fazia parte do teste, certamente. Uma última reunião, somente com ele. Devia ser isso, o teste final.
– Nos vemos lá, então. Sala 137.
O homem saiu da sala; José, incerto, levantou-se e saiu.
Pela empresa, todos já sabiam que Francisco tivera de sair antes de a reunião terminar e que apenas José restara; todos queriam saber o que o homem dissera, mas, no final, tudo o que José tinha para contar é que haveria uma nova reunião?
E o que vai ter nessa reunião?, perguntavam todos, ansiosamente.
Ninguém sabia. Mas, José K, em seu íntimo, já imaginava.
Seria uma reunião.
Para agendar uma reunião. Afinal, este processo era a vida, não era?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais