O tempo que já foi
1972. Um ano de enormes revoluções, a Guerra do Vietnã, os hippies, muitos ideais. Foi neste ano que o pequeno Will nasceu. Era, sem dúvida, um garoto adorável: sua cabeça grande e careca, os olhos esbugalhados, azuis de um bebê recém-nascido, um corpo gordo e vermelho, coberto de sangue. Era a magia da vida na ativa.
1985. Faltava muito pouco para, quem diria, a caída do muro do Berlim, o fim da Guerra Fria, a derrubada definitiva de um regime totalitário. Apesar de nada disso ter muito a ver com a história aqui contada, foi neste ano que um terrível acidente de carro levou o garoto Will, com seus treze anos, olhos azuis, cabelos negros como a noite, encaracolados, a um estado profundo de coma.
A noite era fria, chuvosa, e a família de Will voltava de uma festa. Entretanto, do caminho contrário, um carro veio com grande velocidade e bateu com toda a força contra o pobre automóvel vindo na direção contrária. A família por algum milagre sobreviveu, segurando-se no painel, mas a criança no banco de trás voou para frente e atravessou o vidro.
Quando chegaram ao hospital, o garoto estava inconsciente, sangrava muito, mas conseguiram salvá-lo. Ou quase. Apesar de todos os esforços, o coma foi inevitável.
1993. O que houve de tão inacreditável nesta época? Nada muito incrível, talvez a implantação do real, algo assim. A guerra do Iraque já fora, Vietnã era uma mancha na história estado-unidense e a Guerra Fria, assim com o movimento hippie, ficara para trás. Entretanto, para a família de Will, foi um dia mágico. Pela primeira vez, depois de oito anos, ele abriu os olhos e parecia estar consciente do mundo ao seu redor.
Um exame médico posterior mostrou que Will, apesar de com um corpo de uma pessoa de vinte e um anos, ainda tinha a mente de um garoto de treze.
– O que vocês devem fazer é levar a vida como está. Finjam que ele tem apenas treze anos, para que não entre em choque mais uma vez. Seu estado é delicado demais para corrermos este risco. Vamos mudar sua certidão de nascimento e ele vai voltar para a escola. Mas, lembrem-se: nunca contem nada para ele.
E ele levou sua vida adiante. Claro, era um tanto difícil escapar dos olhares dos outros, por ele ser um tanto – digamos uns vinte centímetros – maior que todo o resto da classe, mas ninguém nunca chegou a mencionar nada. Obviamente houve aqueles que riam da cara do pobre gigante, mas bastava encarar a sua altura de perto que todos ficavam quietos e misteriosamente voltavam para casa para jantar.
Mas a vida foi seguindo, e Will, supostamente com 18 anos, se formou na escola, entrou na faculdade, cursou engenharia, casou-se, comprou uma casa, um carro, teve filhos, sobrinhos, netos, até que, por fim, chegou aos setenta anos de idade, acometido de uma febre muito grande, deitado na cama, sem nada poder fazer.
Nesta época, pouco antes de morrer, a sua esposa arriscou e lhe contou o terrível segredo, com medo de que ele morresse sem saber – um segredo que a sogra havia lhe contado no leito de morte, mas pedido para que não dissesse a ninguém.
Demorou para Will entender, mas finalmente percebeu que, realmente, ele não tinha 70 anos – tinha 78.
– Oito anos da minha vida? Vocês esconderam de mim oito anos da minha vida? Vocês sabem o que eu poderia ter feito nestes oito anos?
Arrependimento de não ter feito o que poderia, de ter gastado tempo com coisas à-toa vieram e tomaram o pobre moribundo.
– Eu quero meus oito anos de volta – dizia.
Pouco antes de morrer, seus netinhos e filhos entraram no quarto, encarando-o com pena. A única coisa que o pobre e velho Will pôde murmurar, em seu último suspiro, foi:
– Aproveitem a vida enquanto podem. Nunca se sabe quando se perderam oito anos à-toa.
E Will, com setenta anos de vida e oito de coma morreu.
Do mesmo modo, houve um homem, Jorge, que teve uma experiência semelhante em esquisitice. Estava voltando de carro para casa, no ano de 1993 – o que tem de tão especial neste ano? – quando o mundo à sua volta pareceu parar. Nada se mexia. Ele piscou os olhos, freou o carro e saiu, andando pela avenida, onde todos os carros permaneciam parados, o céu congelado, as aves estancadas em pleno voo, tudo como se fosse uma pintura.
O que havia acontecido? O mundo havia parado, simplesmente? Ele era o único que ainda estava se movendo? Como um ser em uma pintura?
Sem saber o que fazer, o confuso homem de vinte e cinco anos correu para a sua casa, que não estava longe, para encontrar a esposa congelada, alimentando o seu bebê de alguns aninhos apenas.
– O que está acontecendo? – gritou, tentando se beliscar para acordar de um sonho; mas não acordava.
A cidade estava totalmente parada, as cenas da televisão congeladas, o rádio continuava em uma estática infinita, as vozes no telefone, paradas. Todos haviam parado completamente de se mexer – menos ele.
Primeiro ele entrou em negação e em todos aqueles estágios de desespero, até, por fim, chegar à aceitação. Se o mundo estava totalmente parado, então ele poderia fazer tudo que sempre quis.
Andou pelas ruas dos ricos e famosos, tirou um Porsche da loja, circulou pela cidade fumando os mais finos charutos nas mais finas roupas, cruzando faróis vermelhos, chutando inúmeras vezes alguns políticos e comendo comidas já prontas – mas que nunca estragariam – em restaurantes tão exorbitantemente caros que se precisaria do imposto de renda de uma população inteira ser desviado para se comer lá. Aproveitou que não havia filas em lugar nenhum, aproveitou para ir a parques sem ninguém perturbar, para andar pela cidade sem nenhum flanelinha no farol, para passar com calma pelos buracos, poder levar quanto tempo quisesse para ir de ponta a ponta sem nenhum pentelho incomodando com a buzina atrás.
Por alguns meses ele aproveitou a vida como nunca – havia umas desvantagens, claro, como o fato de estar sempre sol (pelo menos ele ficou super bronzeado) e de não haver vento, nem frio, nem calor, nem as ondas se quebrarem na praia – mas era suportável. Até que por fim não aguentava mais.
Dez longos anos se passaram, e o homem se sentia louco, maluco, pirado de vez. Olhava em volta e tudo estava congelado, como sempre, a mesma coisa. Quando algo iria acontecer, meu Deus?
Até que, finalmente, lá em cima, nas nuvens, São Pedro voltou com uma bacia de pipocas e se sentou do lado de Deus, entregando-lhe uns refrigerantes.
– Muito bem, pode tirar da pausa.
E a vida voltou a se mexer.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais