Surfistas da estrada
Desde que eu nasci, meu aprendi uma coisa: não saia de onde você nasceu. É, eu sei, é uma coisa meio… Esquisita. Mas faz sentido. Nossa vida é curta: com muita sorte, vemos em torno de 30 nasceres do sol. Isso significa que temos de fazer valer nosso pouco tempo: crescer, encontrar uma parceira, procriar, morrer.
Por isso mesmo, a coisa mais segura é esta: ficar exatamente onde nascemos.
Mas… Algo sempre me chamou a atenção. Muito embora minha mãe me pedisse para sempre ficar junto da minha família, para procurar por alguma garota perto de casa, para não ir para as flores mais longínquas, eu sempre tive um espírito mais… Aventureiro. Mesmo sabendo que abrir minhas asas demais poderia fazer com que minha vida acabasse nas garras de um pássaro.
E foi assim que eu descobri a estrada. Lógico, no começo, eu não sabia que era esse o nome; foi depois que me contaram. Eu sabia que, em uma determinada região, da qual, é claro, eu nunca deveria me aproximar, a floresta terminava e dava em um local onde monstros assustadores passavam. Sim, assustadores!
Monstros gigantescos, infinitamente maiores do que nós e infinitamente mais rápidos, que passavam a tamanha velocidade que, caso você não prestasse atenção, seria morto. Mamãe sempre me falava disso.
Aliás, talvez valha a pena eu explicar: eu digo mamãe, mas não faço ideia de quem é minha mãe. Ela certamente morreu muito tempo atrás, mas nós chamamos sempre a mais velha de nós, a nossa líder, de mãe. Ela é frequentemente substituída, mas, tudo bem. O importante é seguir as suas orientações: quais flores buscar, onde se esconder de outros animais, etc.
De qualquer forma, esses animais sempre chamaram a minha atenção: como eles poderiam ser tão grandes? Ou tão velozes? Pareciam meteoros vindos dos céus, quentes, rápidos e letais.
Foi um dia pela manhã, em que acordei mais cedo do que todos os meus outros irmãos, em que fugi para a direção da estrada. Eu queria saber: o que havia lá? E mais: o que havia do outro lado?
Voei para lá; naquele horário, ainda estava tranquilo, e eu vi alguns de nós, certamente tão rebeldes quanto eu, tentando cruzar para o outro lado. Explorando, descobrindo!
Eu parei ao lado da estrada e olhei: o que havia lá do outro lado? Ora, mais floresta, é claro! Mas, também… A garota mais linda que eu já vi na minha vida! Meu coração, se é que posso dizer que tenho um (acho que não tenho, mas fica no sentido metafórico), bateu mais rápido: era ela! Ela seria a mãe dos meus filhos que eu nunca veria, mas que levariam minha essência adiante!
Mas, para chegar lá, eu precisava cruzar a estrada, e isso seria certamente a coisa mais difícil que eu já fiz. Olhei para os dois lados: sem sinal de nenhum daqueles monstros. Alguns já cruzavam, e eu não deveria demorar, ou viriam me buscar, e adeus à chance de encontrar a minha amada!
Avancei, e, de repente, um estrondo! Um monstro veio do outro lado da pista, e pude ver levando consigo vários outros de minha espécie! E, pouco depois disso, eu fui arremessado de volta para a floresta por uma onda de vento como nunca senti antes. O que era aquilo?
Decidi aguardar mais um pouco; deveria haver algum padrão, algo que me desse uma certeza de quando os monstros viriam, alguma forma de conseguir escapar e passar para o outro lado.
Foi aí que percebi: havia outros no meio da estrada. Mamãe já tinha falado sobre eles: alguns os chamavam de corajosos, mas a maior parte daqueles que tinham noção os chamavam do que realmente eram. Malucos. Todo sol correndo o risco de morrerem.
Um monstro se aproximava, podia ouvir seu barulho; tentei voar em direção a eles, alertá-los, mas o monstro foi mais rápido e, quando percebi… Todos tinham passado! Ilesos! Não só isso: estavam todos rindo, comemorando, batendo as antenas! Eles tinham gostado. Para não dizer que haviam feito isso de propósito!
O que eles eram exatamente? Será que eram malucos, mesmo? Ou apenas corajosos?
De qualquer forma, se eles sabiam enfrentar e sobreviver aos monstros, eu precisava aprender para poder encontrar a minha amada do outro lado da estrada. Assim, quando percebi que estava tudo silencioso, fui ter com eles.
– Ei, pessoal! – chamei.
– Olha, um novato! – exclamou um deles.
– Cuidado para não ser atropelado na estrada, moleque! Isso aqui é pra gente grande! – disse outro.
Mas teve um mais velho, um dos que havia rido bastante quando enfrentara o último monstro, que veio em minha direção.
– O que você quer aqui?
– Quero aprender o que vocês estão fazendo. Para poder chegar ao outro lado.
– Garoto, se você quer aprender a antiga e mística arte de surfar na estrada… Seu objetivo deve ser somente este. O surfar. A estrada. Nunca um lado, nem um outro.
– É! A gente vive só pelas ondas, tá ligado? – disse outro, voando de ponta-cabeça.
– Mas eu…
– Prepare-se, moleque!
Ele prendeu sua antena na minha, e o barulho ensurdecedor de um monstro veio em minha direção; eu gritei.
– Sobe!
Ele e eu batemos as asas e, quando dei por mim, o monstro prateado com o gigantesco olho transparente estava basicamente na minha cara, só que fomos como se sugados… Para cima, e depois para trás, e, quando abri meus olhos novamente, o monstro havia passado, e eu e o velho fazíamos um looping pela onda que passou depois do monstro, ele gargalhando.
– Muito bom, garoto! Você tem talento!
Eu sorri, feliz; apesar de assustador, aquilo havia sido tão bom!
– Você agora é um surfista da estrada – ele falou. – Precisa só aprender a sentir o vento, saber quando o monstro está vindo. E, depois, acertar a altura. Veja, vem vindo um.
Ele me mostrou todos os truques, todas as manobras; como ir por baixo, por cima, pelos lados; como desviar quando ele estava quase me pegando, com um simples bater de asas; como passar por uma pequena fissura entre dois monstros, ou então, quando era um monstro mais alto, que tinha algo em cima da cabeça. Tinha uns monstros verdadeiramente gigantes, e estes eles falavam para eu evitar: precisava de muita, muita experiência para conseguir desviar de um deles.
O sol mudou de posição; a noite chegou. Voltamos para as flores perto da estrada, alimentamo-nos e nos preparamos para descansar. Com a escuridão, era mais difícil de surfar.
– Eles têm dois sóis, e eles atrapalham. Você precisa ser muito, muito bom para não ser distraído pelos sóis e morrer na estrada – disse o velho.
Fiquei pensativo, sentado em uma folha: o que deveria fazer, agora? Tinha vindo e aprendido algo novo, algo incrível, algo que nunca imaginaria; como poderia levar a mesma vida depois disso? Deveria voltar e contar para meus irmãos, para minha mãe?
– Nem adianta pensar em voltar para a sua família – disse o velho. – Eles não vão entender. Todos nós já fizemos isso; voltamos, contamos. Alguns foram expulsos; outros, ignorados. Ninguém deles nunca veio com a gente. Você, meu amigo, é um dos poucos que têm a verdadeira coragem de vir até aqui.
Pensei na garota que havia do outro lado; e a minha ideia de a encontrar?
– Muitos de nós vieram para cá pensando em cruzar a estrada e encontrar algo do outro lado. Mas a verdade é que encontramos o que queríamos exatamente aqui. Você pode até tentar cruzar para o outro lado, mas vai ver que, não importa o que há lá, também não vai satisfazê-lo, garoto. Uma vez que você descobriu isso aqui… Não tem mais volta.
É lógico que eu não ouvi o velho; primeiro, voltei para a minha família, contei para eles e, como previsto, fui expulso. Voltei envergonhado para os meus amigos da estrada, sem contar o que, exatamente, tinha acontecido, e ninguém me perguntou. No sol seguinte, tentei cruzar para o outro lado, surfando, e lá encontrei a garota pela qual havia me apaixonado. Consegui procriar, como todos nós devemos, claro, mas sempre com a cabeça na estrada. Quando julguei apropriado, contei a ela sobre as minhas aventuras, mas ela nem quis escutar: nada de sair dali. Nada de sair da floresta. Para quê? O que iria encontrar, além de monstros, na estrada?
Foi aí que decidi: meu lugar não era, definitivamente, lá. Depois de sair da escuridão da floresta e ver o sol da estrada, não podia mais ficar por lá. E, assim, poucos sóis depois de ter conhecido os surfistas da estrada, voltei a eles, para descobrir que o velho já havia morrido.
Mas, ele sabia que eu voltaria. Tanto que eu assumi o seu lugar.
Decidi contar essa história porque, justamente hoje, mais cedo, um garoto apareceu por aqui, querendo aprender a arte de surfar nas ondas da estrada. Ele me parece um cara legal, esperto, mas meio avoado, preocupado com a família. Não sei se vai ficar; mas, quem sabe?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais