A cada quatro anos
– Então, deixa eu entender. A cada quatro anos vocês têm um evento que mobiliza o país inteiro?
– Sim – respondi. Eu estava aqui, assistindo ao jogo da copa Japão X Costa Rica, quando ela apareceu. – Quer um café?
– Mas claro – ela respondeu, provou o café e fez uma cara tenebrosa.
– O que foi?
– Que café horroroso – ela disse.
Dei de ombros.
– Foi o pó que a gente conseguiu aqui em Floripa…
Ela deixou a caneca de lado.
– Enfim, é um evento que mobiliza o país inteiro e tem repercussão mundial.
– Sim.
– Do qual muitos participam, mas apenas um pode sair vencedor.
– Sim.
– Que mudará os rumos do país…
– Bom, acho que não precisa ir tão longe assim.
– Cujos resultados podem ser manipulados por gente de muito dinheiro.
– É, tem denúncias disso aí, também.
– Muita politicagem, muito jogo do tapetão.
– É, o espírito esportivo não é mais o mesmo.
– O Brasil inteiro para por ele.
– É verdade.
– E normalmente acontece no mesmo ano que outro evento, ainda mais importante, que mobiliza ainda mais a população, tem mais repercussão mundial…
Parei para pensar.
– Sim, é verdade.
– E, normalmente, um influencia o outro. Especialmente, se o seu país ganha um, as pessoas tendem a pensar menos no outro e fazer besteiras de escolha. A verdadeira política do pão e circo que vocês têm desde a Roma Antiga.
Eu parei e a encarei.
– Vanusa, do que raios você está falando? É da copa?
– Não, eu estava falando das eleições! E, depois, eu fui falar dessa competiçãozinha, aí.
Eu pisquei, tentando compreender o que ela tinha falado, relembrando tudo.
– Você quer dizer que a copa é mais importante do que as eleições?
– Pro brasileiro comum? Claro que sim! Vocês ficam malucos na copa. Nunca vi nada igual! Ficam tão malucos, que ninguém nem lembra mais quem ganhou as eleições ou o que estão aprontando lá no governo de transição. Vai, fala: alguma proposta de ministro da economia? Algum projeto para tirar o Brasil do buraco?
– Er…
– Alguém tá lembrando dos casos de Covid subindo? Da guerra na Ucrânia?
– Então…
– Agora, quanto foi o resultado do primeiro jogo do Brasil?
– Essa é fácil! 2 a 0! Golaaaaaço do Richarlisson, o pombo! Você viu? Foi demais, meu celular estava adiantado, eu vi o gol antes de todo mundo e…
– Tá bom, entendi. E, já que você tá vendo o da Costa Rica, quanto foi Espanha e Costa Rica?
– 7 a 0! E o Japão também ganhou da Alemanha! Acredita nisso? Que zebra!
Ela cruzou os braços e me encarou. Suspirei.
– Tá certo… Mas é bom a cada quatro anos poder esquecer todas as desgraças aqui do Brasil.
Ela se sentou ao meu lado.
– É aí que tem um cara chamado Goku, que faz aquela bola de energia com as mãos?
– Não, isso é um desenho. Ela chama Genki Dama, a bola.
Ela observou por mais alguns instantes.
– O objetivo é enfiar a bola naquele negócio com a rede?
– Exato! O gol. É assim que você faz ponto.
– E o que é esse cara de amarelo?
– É o juiz. Ele aplica as faltas e mantém a ordem do jogo. Olha lá, ele trabalhando, acabou de dar um cartão amarelo.
– O cara pisou no pé do outro! Deve ter doído!
– Pois é.
– Que coisa selvagem. Eu não sei como vocês gostam disso…
Pouco depois, Vanusa estava erguendo as mãos para ajudar na Genki Dama que levaria forças aos jogadores do Japão. Eu olhei para ela, em reprimenda.
– Vai ser bom esquecer todas as desgraças do mundo por alguns dias… – disse, por fim.
E, no jogo do Brasil no dia seguinte, ela apareceu com camisa oficial e tudo mais. Aparentemente, a copa tinha repercussão não somente mundial, mas sim por todo o sistema solar!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais