A troca de carros
– Sabe, Vanusa, tem um fenômeno muito interessante que eu acho que você deveria estudar.
– Como é?
– Uma coisa que acontece aqui na Terra – eu comentei.
Estava tomando meu café da manhã antes de sair de casa, e o sol não tinha nem nascido, notem, quando ela apareceu por motivos aleatórios.
– Tem muitas coisas interessantes que acontecem aqui na Terra que eu quero estudar.
– Estou falando especificamente de carros.
– Ah, a gente discutiu sobre carros faz um ano!
– Exatamente!
– E você disse que não se sentia tentado a trocar de carro, especialmente porque um carro grande seria muito visado.
– Isso mesmo – respondi. Vanusa tinha uma memória surpreendente; isso explicava seu papel como antropóloga espacial.
– Mas, no final, você trocou, certo? – ela comentou, com um sorrisinho como quem diz “Ah-há! Sabia que você ia se render ao sistema!”.
– Pois é. Estava realmente apertado demais para as crianças, péssimo para viajar… Estava na hora.
– E como você resolveu a questão do visado?
– É blindado.
– Oh! – exclamou ela. – Humanos e a sua mania de andar em tanques de guerra.
– Eu moro em São Paulo, todo cuidado é pouco.
– Pelo jeito, os livros estão dando dinheiro. Deve ter custado uma fortuna! – exclamou ela.
– Quem me dera! Mas ele é usado, saiu uns 30% do valor de um zero.
– Gostaria que fosse assim com as naves espaciais… – disse ela, com um muxoxo.
– De qualquer forma, Vanusa, o fenômeno que eu gostaria que você estudasse é o seguinte: no momento em que trocamos de carro, as pessoas começaram a nos tratar melhor.
– Como é?
– Exatamente o que eu disse. A qualquer lugar que eu vou, como agora eu não saio mais de um carro popular riscado e batido, mas de um carro que as pessoas acham que custa uma fortuna, imagino que todos pensem que eu sou muito, muito rico, embora não seja.
– Estou acompanhando.
– E, justamente por causa disso, imagino, começaram a nos tratar melhor. Estacionamentos, restaurantes, postos de combustível, qualquer lugar!
– Mas que coisa!
– Da mesma forma que nos tratam melhor os lugares quando entramos com uma roupa melhorzinha. Já cansei de ser colocado no fundo só por estar com crianças, ou porque a gente veio com aquelas roupas bagunçadas de quem estava fazendo algum esporte, ou roupas simples, mas confortáveis, de ficar em casa. Por quê?
– As aparências realmente importam muito para os terráqueos – disse ela, filosoficamente. – A ponto de serem mais importantes do que o que há no interior.
– Isso é terrível.
– Pois é. Eu acredito que seja algo evolutivo, sabe? Vocês precisavam fazer julgamentos rápidos de coisas e fatos, para definir se quem estava vindo era amigo ou inimigo e, com isso, criaram esses preconceitos.
– Mas, puxa, com tantos anos que a gente existe, tanta coisa e informação por aí, será que a gente não consegue evitar isso?
– É muito, muito difícil, mesmo. E, vou dizer, a sociedade de vocês não facilita, com toda essa desigualdade social, essa cultura do consumismo…
Suspirei.
– O que fazer, ehm, Vanusa?
– Eu te convidaria para passar um tempo em Vênus, mas lá é quente demais para você.
– E lá vocês não têm essas coisas?
– Ah, até que não.
– Por que não?
– Porque nós somos mais evoluídos – ela desconversou.
Sei…
– Agora, vem cá… Posso ver seu carro por dentro?
– Me surpreende que você simplesmente não brotou lá do nada enquanto eu dirigia. Você adora fazer isso… Curiosamente, Vanusa também começou a me tratar melhor, depois de conhecer meu novo carro velho…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais