Aborto
– Se você tivesse um filho comigo, você gostaria que eu abortasse?
Eu literalmente cuspi o meu café quando ela falou isso.
Estava na padaria Real, em Sorocaba, tranquilamente aproveitando o meu triângulo de queijo com um espresso duplo (meu café da manhã tradicional há 4 anos), quando a Vanusa soltou uma dessas. Eu não consegui fazer outra coisa, se não cuspir o café de volta e tossir loucamente (o que foi um desperdício, porque o café é maravilhoso); ao redor, as pessoas achavam que eu estava com um ataque súbito de Covid e começaram a me olhar torto.
– Que história é essa, Vanusa?
Ela estava rindo.
– Desculpe, foi muito engraçado!
Eu tenho certeza de que ela treinava suas frases de abertura para ver qual teria maior impacto em mim. Terrível! Era pior que meus filhos!
– Mas, estou falando sério, você é a favor do aborto?
– Por que esse tipo de pergunta a essa hora da manhã?
– Estava ouvindo as notícias hoje de manhã e seus políticos estavam discutindo isso. Aquele lá, com nome de molusco…
– Sei.
– Falou que era a favor do aborto, e eu fiquei me perguntando se realmente era, ou se era só para se opor ao seu presidente, que é flagrantemente contra.
– Hoje em dia, não dá para saber. Tem muitas coisas que eles fazem só para serem o extremo oposto – comentei.
– Mas, e você, o que acha?
– Olha, Vanusa, é uma coisa complicada. Quando você pensa em saúde pública, você não pode colocar as suas crenças pessoais na frente. Então, pensando nas milhares de mulheres que morrem todos os anos por realizarem abortos em locais e de formas inseguras, eu acredito que seja obrigação do sistema público fornecer uma alternativa viável. Nós chamamos isso de “Controle de Danos”. É o mesmo princípio para certos drogaditos: não conseguimos evitar que usem heroína ou outros injetáveis, mas, ao menos, conseguimos evitar que não se contaminem compartilhando seringas.
– É tipo tapar o buraco?
– Exato. O ideal seria que ninguém tivesse gravidezes indesejadas, mas, como isso ocorre, diante não só dos riscos para a mãe, como também para a criança, que muito provavelmente vai sofrer de alguma forma, o ideal, do ponto de vista de saúde pública, é que deveria ser legalizado. Novamente, crenças pessoais à parte. Política não pode se misturar com religião – falei.
– E o que você acha, pessoalmente?
– Olha, Van-van, não sei. De verdade. Acho que a pessoa tem liberdade de agir como bem entender com seu corpo… Mas, temos outra vida em jogo. Agora, quando definimos que é outra vida? Quando está totalmente formada? Quando pode sobreviver fora do útero? O quão melhor é ter um filho indesejado, do que não ter? Entende o que quero dizer? Tantas pessoas que são moradoras de rua, ou usuárias de drogas, que têm filhos e não têm como cuidar… Vejo isso sempre. Esses dias conheci uma dependente química que estava na sétima gestação. Sétima! Mas não conseguia evitar, porque não conseguia fazer a laqueadura por dificuldades burocráticas, acredita? E, puxa, ela é usuária de drogas, não dá para cobrar que tome o remédio, né? E aí tem aqueles maridos que não usam preservativos de forma nenhuma…
Ela assentiu, anotando algumas coisas em seu tablet.
– Sua visão é muito interessante – ela falou.
– E como as coisas funcionam em Vênus? Vocês fazem abortos?
– Ah, não, em Vênus não temos este problema. O nascimento de crianças é totalmente controlado. Você só engravida quando quer.
– Isso quer dizer que a sua pergunta inicial foi totalmente sem sentido? Você só engravidaria de mim se você quisesse?
– É claro, seu bobinho. Até porque, antes disso, eu precisaria querer outra coisa com você, que eu claramente não quero!
E, com isso, ela desapareceu.
Por que começou com essa frase, então? Foi só para ver eu cuspindo café…
Sério, certeza que ela filmou e postou no Tik-tok…

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais