Botox
– Você aplica isso no rosto, também?
Eu parei e olhei para a minha assistente, que estava segurando a perna de uma criança com paralisia cerebral, enquanto eu aplicava a toxina botulínica.
– Você falou alguma coisa?
– Não – ela respondeu.
E, de repente, a Vanusa se materializou ao meu lado, o que não chamou de todo a atenção da minha assistente. Será que ela fazia de um jeito em que ficava visível só para mim?
– Porque, sabe, eu conheço algumas pessoas que iriam querer.
Ignorei, terminei o que eu tinha que fazer e voltei para a minha sala de atendimento, enquanto minha assistente colocava os curativos e arrumava a sala de procedimentos.
– Vanusa, quantas vezes eu já te falei para não aparecer do nada no meio de um procedimento? Algum dia, eu ainda vou errar e cortar alguma coisa que não devo por sua causa!
– Ah, mas você está ficando bom, você nem sequer moveu a sobrancelha dessa vez!
Eu bufei, enquanto me sentava.
– Respondendo à sua pergunta, não, eu não aplico isso no rosto. Só faço a toxina para pacientes com contratura muscular.
– Mas você está perdendo um mercado enorme aí, ehm!
– Eu não trabalho com estética. Não dou a mínima.
– Percebe-se – ela comentou, entredentes.
– Como é?
– Ah, olha esses pés de galinha aparecendo, essas marcas aqui entre sua sobrancelha, o bigode chinês mais demarcado… Você bem que podia fazer umas aplicações. Isso, sem mencionar esses cabelos brancos…
– Eles começaram a ficar brancos depois que eu conheci você, sabia?
– Uma coisa não tem nada a ver com a outra – ela retrucou. – Olha essa mecha branca do lado esquerdo! Falando sério, daqui a pouco você vai parecer o William Bonner!
– Sério, Vanusa, o que deu em você? Por que implicar com a minha aparência?
– Estou testando seu brio. Sua autoestima.
– Como é?
– A maioria dos humanos fica maluca quando falo isso.
Maioria dos humanos? Quer dizer que ela tinha contato com outros? Não sei se deveria ficar enciumado, preocupado ou aliviado (afinal, se ela falava com outros, eu não era doido. Ou, ao menos, não era o único doido).
– Qualquer coisinha falando da aparência… E vocês já ficam preocupados. Vocês têm um culto à juventude eterna. Se enchem dessas toxinas, de cremes, de coisas para manter a pele mais “jovem”, sem mencionar todo o charlatanismo que existe nisso, de cremes miraculosos a procedimentos infalíveis. E vocês caem. É toda uma indústria para vocês ficarem jovens eternamente. Será que vocês não percebem o truque? Como as pessoas criam um nicho e fazem você se tornar dependente dele imediatamente? Criar necessidades para vender seus produtos?
– Bem, eu não caio nessa – falei, algo orgulhoso da minha posição. – Vou envelhecer como deve ser. E, se quer saber, o cabelo branco até que me ajuda, ninguém confia em médico muito jovem. E esse pé de galinha? Sou quase o George Clooney.
– Ênfase no quase.
– Como?
– Queria ter um décimo dessa sua autoestima, sabia?
– Ah, mas vai me dizer que vocês não fazem esses procedimentos estéticos em Vênus? Não usam Botox?
– Nossa contração muscular não funciona da mesma forma que a de vocês. O Botox não funciona na gente.
– Mas, vocês não têm nada equivalente?
– Ah, a gente faz modificações genéticas. Estamos anos-luz à sua frente. Os venusianos não envelhecem. Ficam sempre com os cabelos azuis assim, e a pele perfeita, assim.
– Isso quer dizer que todos vocês já nascem com esses pés de galinha?
– O quê?
– Aqui, no seu olho direito. Ah, e agora que você franziu a testa, tem essa marca de expressão também, bem entre as sobrancelhas.
Ela levou a mão à testa.
– E será que vocês já nascem com alguns fios mais claros, quase brancos? Porque eu vi um brilho e…
– Ahhhhhhhh!!!!! – ela gritou desesperada e desapareceu.
Dei um sorrisinho de satisfação, enquanto preenchia o prontuário; olhei para o espelho atrás de mim. Pé de galinha estilo George Clooney. Isso aí. Mas, não quero nem ver quando a Vanusa voltar para se vingar…

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais