Cotas
– Estava ouvindo no rádio sobre as cotas raciais que vocês têm aqui no seu planeta – comentou Vanusa.
Desta vez, Vanusa apareceu à mesa do meu consultório, com um pacotinho de drip coffee – ou, ao menos, era isso o que eu imaginava – pingando na sua caneca. Havia até, na realidade, uma chaleira com água quente, que ela apoiava sobre a mesa e periodicamente despejava um pouco de água no seu pacotinho.
– Eu não sabia que você tomava café.
– Uma das poucas coisas boas do seu planeta é café – ela respondeu, com uma certa indiferença. – Mas, agora, falando sério. Parece que metade da população aprova o sistema de cotas para universidade, e um terço desaprova. O que você acha?
Parei e me inclinei na cadeira; tenho a impressão de que Vanusa, de alguma forma, sabia quando eu teria ou não teria pacientes. Será que ela ficava ao lado, esperando uma janela na minha agenda? Bom, já era melhor que o Chato, que várias vezes fingira ser paciente só para ter um horário comigo…
Pensando bem, não sei o que é pior.
– Bom, Van-Van, acho que, sem dúvidas, o sistema de cotas ajudou muita gente. A gente meio que já comentou a respeito quando falou de racismo, não é?
– Por favor, me ilumine.
Eu acendi a lanterna do celular e apontei para a cara dela; ela me encarou, sem entender.
– Essa expressão funciona melhor em inglês. Em português, só parece que eu tenho que acender uma lanterna na sua cara.
– Ah! – exclamou ela, caindo em si, e riu. – Verdade. Então, por favor, explique.
– Bem, após o fim da escravidão, os negros tiveram muita dificuldade de ascensão social, daí formaram as comunidades e tudo mais. Já falamos disso. Para entender o sistema de cotas, você tem que entender uma premissa: você nasce em uma determinada classe social e tende a permanecer nela até o fim da vida. Os casos de ascensão são raros. E, quando acontecem, normalmente não são da classe baixa para a alta, mas talvez da média para alta, ou da alta para mais alta. A mobilidade social, por assim dizer, é, na realidade, uma farsa. Aquelas histórias de filme são raras.
– Certo.
– Outra premissa que você precisa entender é que a meritocracia é fake.
– Como é? – respondeu ela, surpresa, terminando de passar seu café e jogando o saquinho no lixo debaixo da minha mesa.
– As pessoas acham muito lindo falar de meritocracia, porque é muito legal uma história de superação e coisa e tal, mas, vamos comparar: o aluno usual de uma universidade pública e o aluno que, se não fosse pelas cotas, não entraria.
– Certo.
– O aluno usual: vem das melhores escolas particulares, porque, para entrar em uma universidade pública, precisa ter as melhores notas. Mora com os pais ou em um apartamento sustentado pelos pais; não precisa trabalhar para se sustentar; muitas vezes tem um carro; tem tempo para estudar; e por aí vai. Este é o padrão; claro que há exceções, mas este é o mais típico. Agora, vejamos o outro lado: aquele que entrou por cotas. Fez escolas públicas, ou seja, sua educação certamente é deficitária. Muitas vezes, está trabalhando desde cedo, 16, 14, 12 anos. Não tem quem o sustente, muitas vezes é arrimo de família, pega o transporte público e gasta horas do seu dia, em que deveria estar estudando, indo de um canto a outro da cidade. No seu tempo livre, está trabalhando, então também não pode estudar, e por aí vai. Você até pode dizer que, se ele se esforçasse, ele conseguiria, mas você vê como o aluno típico precisa de muito menos esforço? Porque o básico para conseguir um estudo de qualidade ele já tem?
– Sim.
– É como se, em uma corrida de cem metros, ele já largasse na metade do caminho. Lógico que o outro poderia alcançar, mas ele teria de correr, no mínimo, duas vezes mais rápido!
– Faz sentido. Mas, e o que dizem de que as cotas deveriam não ser por raça ou etnia, mas por condições socioeconômicas?
– Infelizmente, no Brasil, as coisas se misturam. A maioria dos ricos é branca. A maioria dos pobres é negra. É possível que uma coisa ajude a outra, inevitavelmente, mas o que você precisa pensar é: o que eu quero fazer? Eu quero aumentar a representatividade dos negros na sociedade? Porque, afinal, eles são a maioria da população brasileira, mas, veja ao seu redor: quantos negros há entre médicos? Advogados? Entre os estratos mais ricos da sociedade?
– É verdade.
– Não sei o suficiente sobre isso, mas penso que uma coisa levaria à outra. E que o objetivo das cotas é aumentar a representatividade negra, para compensar o tanto que estragamos nos últimos 500 anos.
Vanusa ficou pensativa, bebericando seu café.
– E, infelizmente, a coisa não acaba aí, porque, após a faculdade, um branco tem muito mais empregabilidade que um negro. As dificuldades continuam. Como disse, a meritocracia é um conceito muito falho.
Ela balançou a cabeça.
– O que foi? Não vai falar nada?
– Como disse antes… Uma das poucas coisas boas do seu planeta é o café.
E desapareceu no ar, assim como a fumaça do café.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais