Igualitário
– Você de repente já pensou em trabalhar em outro país?
– Por que essa pergunta agora, Vanusa?
– Eu só estou… Avaliando uma coisa dos humanos. Vamos lá, responda a minha pergunta.
– Bom… Já pensei algumas vezes – respondi. – Tem um amigo meu, inclusive, que revalidou o diploma e está trabalhando no País de Gales.
– Que perdeu fragorosamente na copa.
– Pois é… – respondi, dando de ombros.
– Mas, bom que você falou sobre isso, porque era justamente da Europa que eu queria falar. Lá, os salários são muito próximos, independentemente da profissão, não é?
– Bom, eu acho que sim. Ao menos, é o que ouço falar por aí.
– Por outro lado, nos países da América em geral, tem uma desigualdade enorme de quanto ganha, por exemplo, um médico e um auxiliar de enfermagem.
– Sim – falei, tentando entender aonde ela queria chegar.
– Mas isso não se restringe só à saúde, você também pode pensar em diretores de grandes corporações, gerentes, funcionários públicos, enfim, inúmeros assalariados que têm uma diferença enorme entre eles de pagamento.
Fiquei em silêncio, esperando que ela continuasse.
– Agora, isso certamente influencia na hora de escolher uma profissão, não?
– Bom, não é só isso. Tem o sonho da pessoa, a sua aptidão, a dificuldade de entrar ou cursar a faculdade… Tem vários fatores.
– Vamos supor que empacotador de supermercado ganhasse, sei lá, vinte mil por mês. Não ia ter um monte de gente querendo? Não querendo desvalorizar os empacotadores, claro.
– Ah, eu tenho certeza de que sim, até porque tem brasileiro que não ganha isso em um ano de trabalho. Mas aí, tem várias coisas ligadas, Van-van. Não precisa de faculdade, ou seja, quase qualquer um pode se candidatar, não exige tanto fisicamente da pessoa quanto, por exemplo, um gari que precisa correr para cima e para baixo o dia todo, ou, sei lá, psicologicamente como um diretor de multinacional que precisa tomar dezenas de decisões difíceis todos os dias. Mas, sério, Vanusa, eu não estou entendendo aonde você quer chegar.
– O que eu estou pensando é: como seria o seu mundo, se o salário de todos fosse igual?
– De todos? Todos, mesmo?
– Sim. Sem diferença nenhuma. Médico, engenheiro, advogado, político, jardineiro…
– Mas, e os profissionais liberais?
– Não existiriam. Todos receberiam a mesma coisa, controlado, digamos, por um governo central.
– Isso está me soando meio comunista…
– Talvez, mas não importa, só continue o pensamento. O que você acha que aconteceria?
– Puxa, eu não sei, Vanusa. A gente resolveria a questão da fome e da desigualdade? Mas, ainda assim, seria estranho, não sei… As pessoas receberiam as mesmas coisas, mas gastariam de forma diferente, não? Quer dizer, em um celular, ou em uma viagem, ou livros, ou sei lá…
– Como você acha que seria a escolha das profissões?
– Nossa, Vanusa, sério, o que você anda botando no café?
– Só pense comigo. Se o salário fosse o mesmo para todo mundo, você escolheria sua profissão baseado em quê? No que gosta de fazer? No que é bom em fazer? Na disponibilidade de vagas? Você mesmo, você trocaria de profissão?
– Você poderia acumular mais de uma profissão? – questionei. – Porque eu, por exemplo, sou médico, professor e escritor.
Ela riu de escárnio na hora que eu falei escritor, como de costume.
– Você poderia dividir suas horas nisso? – prossegui.
– Não, você teria de escolher uma. 40 horas de trabalho por semana, é assim que trabalham aqui no Brasil, não é?
– Puxa, Vanusa, não sei, que pergunta difícil! Como seria o mundo, assim? Sei lá! Melhor ou pior ou igual? Os artistas, todos, seriam assalariados? Poderiam dedicar sua vida à arte? Sem precisar ficar com subempregos até fazerem sucesso? Acho que teríamos muitos mais artistas, tem várias pessoas que sequer tentam porque não veem um futuro. Alguém escolheria ser, sei lá, varredor de rua, porque gosta de varrer? Gente, que complexo! Está dando um tilt na minha cabeça.
Ela balançou a cabeça azul dela.
– Humanos e suas mentes limitadas…
– Como é em Vênus? Vocês têm salários diferentes? Ou todo mundo recebe igual?
– Todo mundo recebe igual – ela respondeu.
– Então! Você não precisa me perguntar, você tem a resposta. Como é? É melhor que aqui? É pior? Os venusianos são mais felizes? Por que você escolheu ser antropóloga espacial?
De repente, um apito (que, sinceramente, pareceu muito ser um assobio da Vanusa).
– Ih, olha só, a Kim tá me pedindo ajuda de novo. Deixa eu ir! Bom conversar com você!
E ela desapareceu no ar, na sua saída à venusiana. Repensando, talvez eu devesse começar a cobrar para escutar baboseiras espaciais de venusianas enxeridas… Eu estou sofrendo bullying interplanetário!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais