Indulto ou Insulto?
Quando a Vanusa apareceu naquela manhã do lado do meu carro, enquanto manobrava, eu já imaginei que coisa boa não era. Revirando os olhos, abri a porta para ela entrar.
– Por que você simplesmente não apareceu dentro do carro, como você sempre faz?
– Queria saber qual era a sensação de esperar alguém abrir a porta e me sentar de verdade – ela respondeu.
O mundo deveria ser muito simples quando você podia ficar invisível e se teletransportar…
– O que você tem a dizer sobre o indulto do seu presidente?
– Olha, em primeiro lugar, vamos parar com essa história de “meu presidente”. Ele não é meu. Eu nem sequer votei nele!
– Mas ele representa o seu povo!
– Parte dele.
Ela deu de ombros.
– Gostando ou não, é o que você tem. O que tem a dizer sobre o indulto dele?
– Olha, Vanusa, eu já disse para você que eu não sou a pessoa mais versada em política deste mundo…
– Vou dizer para você o que eu achei até agora – ela falou, ignorando-me. – Segundo a sua Constituição Federal, no artigo 84, inciso XII, o presidente da república pode dar indultos ou comutar penas.
– Eu não sei nem o que é comutar!
– Mudar penas. A ideia disso foi permitir que o poder executivo conseguisse escapar de eventuais perseguições do poder judiciário.
– É, faz sentido. Você pensaria que, uma vez que o judiciário definiu uma pena, eles estão corretos. Mas, como as leis, a ordem e a política são feitas por humanos, estamos sempre sujeitos a erros e parcialidades. Então, faz sentido um poder conseguir controlar o outro.
– A grande questão é se é correto o indulto ou não – comentou Vanusa.
– Pois é, temos discussões eternas sobre os indultos natalinos. Normalmente, ninguém concorda. Liberar os crimes de colarinho branco, ok, mas liberar aqueles que foram presos por furtar por estarem morrendo de fome? Esses ninguém lembra.
– Você chegou bem ao ponto que eu queria. Colarinho branco. Agora, me diga, o que você acha do artigo 53 da constituição?
– Evidentemente, é um número bonito, um número primo, eu acho, e…
Ela me deu um soco no ombro; a mão dela era bem ossuda! Doeu!
– Estou falando sério!
– Eu não faço ideia do que é esse artigo!
– É o artigo que diz que os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.
– Ah. É mais um daqueles artigos para proteger o poder legislativo de perseguições, certo?
– Exatamente.
– Nossa constituição foi feita depois de um golpe militar e uma ditadura, é natural que seja cheia destas proteções legais.
– Mas não quer dizer que a pessoa, só porque tem um cargo desses, pode falar o que quiser, não é?
– Acho que essa é a mesma discussão da liberdade de expressão. Você pode falar o que quiser, até determinado limite. Se um deputado difamar alguém, ou cometer injúria, não pode ser punido? Fica complicado.
– Ou, no caso, incitar à violência?
– Pois é, o termo “palavras” é amplo demais! Basicamente, o deputado ou o senador só pode ser condenado por suas ações, não é? Gravar um vídeo é uma ação ou são palavras? Fazer um discurso? Um post? Apenas sugerir que as pessoas, sei lá, invadam ou Capitólio, ou realmente convocá-las? Será que ele estaria protegido de absolutamente tudo? Gente, a lei é um negócio muito complicado. Muitos tons de cinza, como você gosta de falar.
Ela me encarou, franzindo a testa.
– Você não me ajudou em nada.
– Eu falei que não entendo de política, muito menos de direito.
– E do que você entende, afinal?
– Bem pouquinho de ortopedia pediátrica – falei. – Eu sei consertar pezinhos tortos.
Ela bufou e desapareceu.
Por que raios veio pedir minha opinião, então?
![](https://otrancarimas.drdavidnordon.com.br/wp-content/uploads/2021/09/Dr.-David-Nordon-Ortopedista-Infantil.jpg)
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais