Manifestações
– A democracia é uma coisa que, de fato, me surpreende – disse Vanusa, enquanto eu preparava um café espresso.
– Por que, Vanusa?
– Vocês falam dela com tanto orgulho, mas, na realidade, veja em que situação ela os colocou: tiveram de escolher entre dois bandidos para ser seu presidente.
Eu dei de ombros.
– Eu já fui mais revoltado com relação a isso, mas cheguei à conclusão de que, pelo jeito, a gente tem mesmo é que escolher o que rouba, mas faz. Ou, ao menos, o que atrapalha menos o país.
– Citando mais uma vez um filósofo de vocês, a democracia pode representar o desejo da maioria, mas não quer dizer que esta é a escolha mais correta.
– Pode não ser a mais correta, mas é a mais justa.
– Mas, se manipularam as suas escolhas… – ela prosseguiu, inconformada.
– Sempre é manipulada. É difícil não ser: eu não posso escolher qualquer pessoa para ser meu presidente, tem de ser alguém que está concorrendo. E tem uma boa filtragem para chegar a este ponto, acabam sendo políticos antigos, ricos, influentes… É, realmente, uma pena.
– Se vocês tivessem reis filósofos, como nós…
– E como você pode definir que isso é o mais correto, Vanusa? Correto sob a ótica de quem? Para quem? A democracia tem suas falhas, mas foi uma escolha feita pela maioria. Cabe a nós aceitar e, se não concordarmos, lutar para fazer valer nosso ponto de vista para as próximas eleições.
Eu transferi o café para um copo de viagem.
– Agora, eu preciso sair.
– Não está saindo cedo demais?
– O trânsito está impossível. Desde as eleições, tem apoiadores do Bolsonaro fazendo manifestações em tudo que é rodovia.
– Esta é a sua luta para fazer valer o seu ponto de vista?
– Não, isso é fanatismo puro e simples. Deveriam aceitar o resultado das urnas logo de uma vez.
– Uma coisa eu tenho de dizer: o sistema de vocês, de urnas eletrônicas, é realmente impressionante.
– Ah, é?
– Sim. Eu levei uns trinta minutos para hackear.
– Como é?
– Não, isso é um feito, sério mesmo. A maior parte das coisas de vocês eu hackeio em menos de cinco minutos com meu computador quântico. Este aqui eu tive que fazer meio old school.
Eu a encarei, sem acreditar.
– E, se isso me levou meia hora, quer dizer que para vocês vai levar uns 500 anos… De qualquer forma, os resultados saem na hora. Não dá para falsificar. É limpo e organizado… Enfim. Eu acho sensacional. E olha que é difícil eu elogiar uma coisa de vocês, ehm.
– Puxa, Vanusa, fico até emocionado.
– Agora, o que mata é o povo de vocês. Parecem criança do jardim de infância que não sabe perder…
Ela pegou o copo da minha mão e desapareceu.
– Ei, meu café!
– Lição para aprender a perder! – ela disse, em uma voz etérea.
– Mas não sou eu que estou fazendo manifestação! – exclamei de volta, em vão.
E agora? Daria tempo de fazer mais um café? Ou aqueles cinco minutos virariam cinco horas parado no trânsito?
Melhor não arriscar.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais