Mau perdedor
– Vocês todos sofrem de um grande mal.
– Como é?
Eu me virei na cadeira; Vanusa estava do meu lado, tomando alguma coisa em sua caneca com um tuiuiú desenhado.
– Vanusa! Há quanto tempo não te vejo!
– Pois é.
– Feliz ano novo!
Ela deu de ombros.
– A Terra deu uma volta no sol em um momento que vocês arbitrariamente escolheram. Grande coisa.
– Nada, janeiro tem um grande significado, vem do deus Janus, aquele de duas caras, igual ao cavaleiro de gêmeos dos cavaleiros do zo…
Ela bufou.
– Mais um exemplo de como nada muda. A Terra pode continuar dando quantas voltas quiser, e você vai continuar igual.
– Nossa, Vanusa, como você está amarga! Não consegui nem falar sobre as vezes em que tentei contato com alienígenas lá na Chapada dos Guimarães!
Ela ergueu as sobrancelhas.
– Como é?
– Ué, dizem que lá é um lugar favorito de OVNIS e coisa parecida, então eu fiquei cantando a música de Contatos Imediatos de Terceiro Grau, sabe? Tã-nã-nã-nã-nãããã…
Ela bateu na própria testa.
– Como a sua esposa te aguenta?
– Por isso que eu digo, sempre faça um acordo pré-nupcial.
Ela bufou de novo.
– Você realmente achou que alguém do universo fosse entrar em contato com você só porque você cantarolou essa musiquinha horrível?
– Sei lá. Você fez contato por menos.
Ela ergueu a caneca para beber, só para esconder a cara que fez ao ter de admitir que eu estava correto.
– Mas, então, isso quer dizer que não adianta nada fazer isso para entrar em contato?
– Só quer dizer que não tem mais ninguém que queira falar com você.
Eu não ia deixar a amargura dela afetar meu bom humor de retorno de férias.
– Bem, ao menos, tenho você para conversar comigo.
Coitada dela.
Ela suspirou.
– Mas, de qualquer forma, o que você ia falar? Porque foi você que surgiu aqui.
– Eu ia falar que vocês todos sofrem de um grande mal. São todos maus perdedores.
– Como assim?
– Eu achava que era um fenômeno que se restringia somente aos jogos de futebol. Quando os perdedores iam para os vestiários do time e destruíam tudo, sabe?
– Sim.
– Mas, parece que não. Nos Estados Unidos, quando Trump perdeu, vários invadiram o Capitólio. E, dois anos depois, praticamente no mesmo dia, quando Bolsonaro nem era mais presidente, vários invadiram os prédios em Brasília e saíram destruindo tudo.
Eu dei de ombros.
– Graças a Deus já estava longe de Brasília quando isso aconteceu. Passei lá antes do Natal.
– Eu não entendo. Por quê?
– Eu também não entendo. Quer dizer, eu compreendo que existem pessoas que ficam com raiva de perder e tal, mas você esperaria que um adulto tivesse autocontrole suficiente, não é?
– E não foi nem logo depois dos resultados, foi meses depois! Eu não consigo entender isso! Por que vocês não podem aceitar o resultado? De que adianta sair destruindo patrimônio público? Por que não ajudar o próximo governo pelo bem do seu país?
– Talvez você pudesse conversar com algum deles, sei lá. Tem vários na prisão, não vai ser difícil de achar.
– É uma ideia…
– Não tem nada do tipo em Vênus? Essas brigas?
– Lá não tem eleições assim, né.
– Não, mas eu digo, com outras coisas. Jogo de futebol, final de Big Brother, sei lá.
– As pessoas lá são absolutamente educadas…
Sei.
– Mas, o que é isso de Big Brother?
– Sério que você não sabe? Sério mesmo? É um programa de TV. Eles colocam umas pessoas dentro de uma casa, filmada 24 horas por dia, e tem umas competições e umas coisas lá, e toda semana a gente vota para escolher quem sai… Até que, depois de uns três meses, tem a grande final.
– Vários sapiens dentro de uma casa? Filmados 24 horas por dia? Isso deve ser…
Lá vem ela zoar a gente… Como se ela não ficasse assistindo à gente 24 horas, como um Big Brother espacial!
– Simplesmente demais! – ela exclamou, com os olhos brilhando. – Em que canal passa?
– Ah, é na Globo, mas você pode assinar e ter acesso…
Mas, antes mesmo que eu pudesse responder, ela desapareceu.
De todas as coisas nesse universo, nunca imaginei que ela fosse se interessar justo por Big Brother!
Mas, pensando por outro lado, é bem a cara dela, né?

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais