Plantão
Eu atualizei a tela e me apareceram mais quatro pacientes. No canto superior direito, indicava que ainda faltam 9 com senha na mão, esperando pela recepção para abrir a ficha.
Suspirei. Segunda-feira: o dia mais cheio em todos os hospitais. Sempre.
Só que, de repente, um nome me chamou a atenção: Vanusa.
Não! Não é possível… Será? Será mesmo?
Chamei a paciente, na maior expectativa e não é que, logo à minha frente, surgiu…
– Vanusa!
– Eu mesma!
– O que você está fazendo aqui?
– Ué, eu vim passar em consulta!
– Eu sei que eu falo isso nas minhas aulas sobre os princípios do SUS, mas nunca imaginei que, realmente, quando a gente fala que o SUS é universal, ele realmente atende alienígenas!
– Aliás, isso é impressionante! E eu não preciso pagar nada por isso?
– Absolutamente nada. Sai tudo dos impostos que os brasileiros pagam.
– Se a moda pega… – ela falou, mas depois olhou ao redor. – Se bem que os métodos de tratamento de vocês são meio rudimentares… Não sei se o pessoal viria aqui passar em consulta.
Eu olhei feio para ela e me recostei na cadeira.
– Tá bom, Vanusa, o que você quer?
– Me diz uma coisa. É verdade que vocês atendem basicamente só gente procurando atestado?
– Como é?
– Eu falei com outro médico outro dia…
Ela deu uma pausa dramática, talvez para ver se eu iria ficar com ciúmes de ela ter outro médico de estimação.
Nem um pouco.
– E ele me disse que, especialmente na segunda-feira, está cheio de gente querendo atestado.
Eu suspirei.
– Pois é. Isso é meio que um problema mundial. Tenho um amigo que trabalha no País de Gales, e ele me disse que, depois que eles autorizaram o que se chama de Sick leave, ou seja, a pessoa pode se “auto-atestar” por um determinado número de dias em caso de doença, o número de atendimentos caiu vertiginosamente.
– Sério?
– Sim. Claro, tem gente que vem aqui para atendimento sério, mas também tem muita gente com queixas que poderiam resolver tomando um remédio em casa.
– Mas, eles não vêm aqui para pegar remédio?
– Ah, sim, no SUS, sim. Mas, pense no pessoal que vai para os hospitais de convênio. Eles não vão receber remédios de graça, vão receber os mesmos medicamentos que comprariam sem receita nenhuma.
– Mas, não é melhor passar com um médico primeiro?
– Tem coisas que não, Vanusa. Isso é um trabalho de educação da população. Por exemplo: febre em crianças por menos de três dias, uma dor nas costas que começou agora, depois de pegar peso, um resfriado comum, uma dor de cabeça que acabou de começar, ressaca, diarreia ou vômitos que acabaram de começar… São todas coisas que você pode tratar muito bem em casa, sem precisar do médico, e a maioria melhora sozinha, com ou sem remédio. Mas, infelizmente, tem gente que aproveita para vir aqui, pegar um atestadinho, prolongar o fim de semana… Infelizmente, tem muita gente que finge que está doente. E eles acham que a gente não sabe. Só que a gente sabe. Que nem você.
– Eu não estou fingindo! Eu realmente precisava passar em consulta aqui!
– Ah, é? E por quê?
– É que eu não fui trabalhar e precisava levar um comprovante pro meu chefe…
– Vanusa!
– Brincadeira! Mas, pelo menos, eu estava sendo sincera! Só vim curiar, mesmo. E aumentar a sua fila de atendimento. Enfim, depois dessa, fui!
Encarei a ficha de atendimento à minha frente. Pensei em escrever assim:
Paciente alienígena proveniente de Vênus vem para fazer indagações sobre a nossa cultura e métodos de tratamento médico. Oriento que o hospital é lugar para doentes, não para curiosos, e ela vai embora.
Só que iam achar que eu estava louco, então, achei melhor escrever, simplesmente:
“Paciente afirma que veio exclusivamente para pegar atestado para o chefe. Oriento que só podemos emitir atestado em caso de doença, e paciente vai embora”.
Só me faltava essa. Já não me bastam as atestadites brasileiras, ainda tenho de acatar as venusianas?

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais