Propaganda enganosa
Vanusa estava com um hamburguer na mão desta vez; era a primeira vez que eu a via efetivamente comendo alguma coisa. Até onde eu sabia, os venusianos poderiam se alimentar apenas de líquidos, porque ela estava sempre com uma caneca na mão.
– Não vai me dizer que isso é um… McPicanha?
– Bem, é o que diz o nome – ela falou. – Agora, se realmente é de picanha…
Estava com o rosto sujo de molho, o que era engraçado. Achei melhor ficar quieto, só para continuar rindo por dentro.
– Com essa história de propagandas enganosas, eu decidi testar esses sanduíches de vocês. Tem esse de picanha, que não é de picanha. Tem o de costela, que não é de costela, de outra empresa. E tem o de frango, de outra empresa também, que é de soja.
Eu ri.
– Bem-vinda ao Brasil.
– Isso não é possível! Como vocês aceitam isso?
– Van-van, querida, eu venho de uma época em que a gente achava que o hamburguer deles era feito de minhoca. Eu só sei que não é, porque minhoca é caro demais. A gente fica é surpreso quando o produto é compatível com o anunciado.
– Sério?
– Sim. Camisetas que duram mais do que cinco lavagens. Suco que realmente contém frutas e não aromatizantes. Sabão em pó que realmente limpa. Carro que é realmente econômico. Eletrodomésticos que duram mais do que a garantia. Político que vai cumprir promessas…
– Mas, é assim no mundo inteiro?
– Não. Lá fora, as coisas funcionam melhor. Quer dizer, não no mundo inteiro, mas nos países do primeiro mundo.
– Como assim?
– Sério que você nunca viu essa divisão de primeiro, segundo e terceiro mundo?
– Não. O que é isso? Parece tão antiquado!
– E é. Os países do primeiro mundo são os países desenvolvidos, aqueles que estão quase todos no Norte. Estados Unidos, Reino Unido, Japão, por aí vai. Lá, os produtos e serviços são muito melhores que daqui e, possivelmente, o hamburguer de picanha é mesmo de picanha, as roupas duram mais, os sabões lavam direito e os eletrodomésticos não duram só um ano. Os de segundo mundo, antigamente, seriam os países que eram socialistas.
– Ah, dos da Ex-União Soviética?
– Isso. Mas, a gente não usa mais esses termos, no geral. Aqui seriam os países em desenvolvimento. O Brasil entra aqui. É nesses países que as coisas nem sempre são o que prometem, mas algumas vezes até que são, e você fica surpreso.
– Tá.
– E os de terceiro mundo são os subdesenvolvidos, principalmente os da África.
– Conseguem ser piores do que aqui?
– Opa. Se você conseguir um hamburguer desses por lá, vai estar com sorte. Não em todos os países, claro, mas você entendeu a ideia.
Vanusa balançou a cabeça.
– Como vocês conseguem viver com tanta desigualdade?
– Ai, Vanusa… Eu não sei. Se eu pensar demais nisso, não consigo levar a vida adiante. Só posso dar graças a Deus por estar aqui, onde estou, e não em um lugar pior. Tudo bem o negócio não ser de picanha de verdade, pelo menos, ainda tem o hamburguer. Acho que é assim que a gente leva a vida aqui. Cada dia, um novo 7 a 1. Mas, pelo menos, tem o 1.
Ela estava ainda mais inconformada, eu podia ver pela cor do seu rosto, que começava a mudar, enquanto tudo ao seu redor esquentava.
– Sabe, a propaganda enganosa se espalha pelo seu planeta inteiro.
– Como é?
– É, sim. Você vê lá do espaço, essa joia aqui, um planeta azul e verde, repleto de água e nuvens de água, temperatura amena, sem muitas variações térmicas, estações do ano… Ele promete tanto, mas tanto… E, aí, quando você vai ver… É decepcionante igual a este hamburguer. Totalmente fake.
Ela jogou o lanche no lixo e desapareceu.
Eu não sabia dizer o que isso significava, mas, talvez, valesse colocar um outdoor na lua: “Não somos o que parecemos. Vaze!”.
Se bem que, vai que os alienígenas conseguiriam resolver nossas questões de desigualdade? Por que não?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais