Racismo
– Tem uma coisa que eu não consigo compreender em vocês.
– Só uma, Vanusa?
– Não, tem várias. Mas tem uma que tem me incomodado mais.
Como estava frio, especialmente em Cotia, que é sempre mais fria que São Paulo, eu estava no clima para tomar um chá. Enquanto o saquinho infundia, a antropóloga interplanetária apareceu, com uma caneca totalmente preta.
– Diga.
– Racismo.
– Mas é para incomodar, mesmo.
– Eu não entendo como vocês podem ser racistas. Não faz o menor sentido!
– É, eu sei, Vanusa. Não faz, mesmo.
– Ainda mais em um país tão miscigenado quanto o Brasil!
– Aliás, você sabia que o Brasil é miscigenado assim, porque a intenção era “branquear” as pessoas? Fim do Século XIX, começo do XX, eles achavam que daria para “diluir a cor”, por assim dizer. Tem até um quadro famoso representando isso. Não só isso! As pessoas faziam de tudo para não serem consideradas negras, então, surgiu um negócio chamado “colorismo”: pardo, café-com-leite, escurinho, mulato, enfim… Qualquer termo que você possa usar que não seja “preto” ou “negro”. Por que, isso? Porque a pessoa tinha, e ainda tem, muito mais chance de sucesso na vida se não fosse negra.
– Mas, de onde isso tudo começou?
– Olha, eu não sei dizer ao certo. Eu imagino que tenha relação com a escravidão, é o que faz mais sentido. A escravidão no nosso planeta não começou com os negros; eram com os povos conquistados, geralmente brancos, lá da Europa, mesmo. Com a Idade Média e o feudalismo, tinha mais servidão do que escravidão, acredito. E, aí, em algum momento, conseguiram meio que criar uma indústria escravizando os negros da África. Do mesmo jeito que havia escravidão na Europa, havia lá também, e fizeram algo em grande escala. Negros e brancos caçavam negros e vendiam para brancos levarem para as colônias; eles eram mais resistentes e mais acostumados à cultura europeia do que os índios. Só que, para isso se sustentar e não acharem absurdo, mas “natural”, qual seria a desculpa perfeita?
– Desumanizar os negros.
– Exatamente. Dizer que os brancos eram superiores. E usaram das mais diversas coisas para dizer isso, como religião, forma do crânio, força muscular, fosse o que fosse. E isso era tão arraigado na sociedade, que quando eu estava na faculdade, eu tinha um professor de obstetrícia que ainda fazia esse tipo de comentários, fazendo essas comparações esdrúxulas. Acredita?
Vanusa apenas balançava a cabeça.
– Daí, com o fim da escravidão, os negros foram deixados de lado, tendo de sobreviver nos seus ajuntamentos, nas favelas. A mão de obra contratada e remunerada, ainda que muito mal, passou a ser de imigrantes europeus; e a divisão foi se estruturando no Brasil. Aqui, mais de 50% da população é negra; os brancos são a minoria! Ainda assim, a grande maioria dos pobres é negra, e a grande maioria dos ricos é branca.
– Isso explica que é racismo mesmo, e não preconceito contra outra classe social?
– Exatamente. Já vi gente tentando dar essa desculpa. Bom, primeiro que preconceito contra outra classe social é como se fosse racismo do mesmo jeito. Algo como uma injúria, sabe? Mas, não só isso, as duas coisas coincidem, pobreza e cor de pele, então, como separar?
– Mas tem gente que diz que não existe racismo no Brasil, justamente porque a população é toda misturada…
– Isso é puro negacionismo. O nosso racismo é tão estrutural, que a gente nem mesmo percebe. Basta ver o comentário que saiu na mídia esses dias, de algum político aí. “Isso é coisa de preto”. Fala sério! Não dá para a pessoa falar “falei sem querer”, ou “força do hábito”. É um tipo de expressão que não pode existir! É um tipo de pensamento que não pode passar pela cabeça de ninguém! É a mesma coisa que eu falar “Isso é coisa de judeu”, ou “Tinha que ser árabe”, ou “Esses olhos-puxados…”. Tudo isso é racismo.
– Estava vendo aqui que tem diferença entre racismo e injúria racial…
– Sim. Um crime é inafiançável, o outro, não. Injúria prescreve, racismo, não. Então, o que muitos fazem é tentar “mudar” o crime de racismo para injúria e, assim, cair no limbo.
– E o que você acha que pode resolver isso?
– Fazer o que estamos fazendo. Educar. Não basta não ser racista, tem de ser antirracista. Isso é verdade. Temos de erradicar esses pensamentos absurdos. Além disso, cotas. Pense comigo: como vou conseguir explicar para o meu filho que negros e brancos são iguais, se eu basicamente não tenho nenhum amigo negro? Nenhum colega de trabalho negro? Nenhum aluno da faculdade de medicina negro? As cotas vão ajudar nisso.
– Mas o pessoal fala tanto da meritocracia…
– Isso é outro papo furado, Vanusa. Não existe meritocracia quando um é sustentado pelos pais e não faz nada além de estudar, e o outro não só é arrimo de família, como nem sequer tem energia elétrica, comida ou o material de estudos. Para ser meritocracia, tem de começar de condições iguais, e as cotas vão nos ajudar até chegar a este ponto.
Ela ficou parada, pensativa.
– Acho que eu falei demais – comentei.
– Não, eu gosto de como você vê as coisas. Acho que fica bem… Equilibrado.
Eu a encarei por alguns instantes.
– E em Vênus? Vocês têm esse tipo de coisa? Existem venusianos, sei lá, verdes?
– Não, venusianos, não. A gente usa marcianos. Ô, racinha, viu? Eles têm mais é que continuar trabalhando.
Eu pisquei.
– Vocês escravizam marcianos? – questionei.
– Não, escravizar é uma palavra muito forte. Eles trabalham, têm direito a comida, casa, roupas, descanso semanal…
– Mas eles… Recebem dinheiro? Podem gastar com o que quiserem?
– Gastar? Eles têm tudo! Você fala umas coisas engraçadas, de vez em quando!
– Mas…
– Deixa eu ir agora, que eu quero pegar opiniões sobre isso também em outro lugar – ela falou e desapareceu.
Fiquei pensando comigo mesmo: os marcianos não estavam todos extintos? Será que ela falava isso só para me provocar? Ou será que ela estava falando sério?
Tirei o saquinho de infusão e provei meu chá; estava horrível. Precisava parar de inventar, brasileiro foi feito é para tomar café.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais