Tapa na cara
– Você viu o Oscar deste ano?
– Não vi. Se bem que eu nunca vejo.
– Mas viu o tapa do Will Smith?
– Ô, se vi! – respondi.
Eu estava na estrada, voltando de Sorocaba, em uma subida, quando a Vanusa apareceu do meu lado. Foi interessante notar que o carro teve um pouco mais de dificuldade para subir, com ela a bordo, algo que, tive a impressão, até então não estava acontecendo. Ou seja: ela realmente existia e pesava alguma coisa. Eu fiquei mais aliviado (de vez em quando, eu achava que ela era fruto da minha imaginação fértil de escritor).
– Obliterou totalmente a cerimônia, né?
– Ninguém fala de absolutamente mais nada.
– Sabe, eu acho muito, muito interessante isso de vocês – ela comentou.
– O quê? O Oscar? Eu também acho meio bizarro, mas acho que é um estímulo para os cineastas e, para falar a verdade, uma grande farra para todo mundo…
– Não, não é isso! E eu disse interessante, não bizarro!
– Ah, geralmente são sinônimos – comentei.
– É? – perguntou Vanusa, confusa.
– Uma coisa bizarra geralmente é interessante, e coisas interessantes muitas vezes são bizarras.
Ela anotou algo em seu tablet.
– Enfim, não era disso que estava falando. Quis dizer da famosa “liberdade de expressão” e de como os humoristas usam isso.
– Explique melhor.
– Você sabe que, na corte, o bobo era basicamente o único que poderia dizer toda e qualquer verdade para rei, em nome do humor, certo?
– Sim, mas, se o rei não gostasse, tchau, bobo.
– Exato. Tenho a impressão de que os comediantes puxam essa função para si mesmos. São os bobos da corte da sociedade, falando coisas sem limites, aproveitando-se da liberdade de expressão para falar tudo e qualquer coisa, sem se importar em machucar, contanto que seja engraçado, e reclamando até mesmo que o “politicamente correto” não se aplica ao humor!
– É verdade, Van-van, vou ter de concordar com você. Acho que o humor tem um limite. Só pode ir até onde não está machucando ninguém.
– O problema é que eles sempre retrucam que alguém vai se sentir ofendido.
– Isso é verdade. Difícil agradar e gregos e troianos.
– Mas, eu vou lhe dizer, tem muitos e muitos exemplos de humoristas que não ofendem o politicamente correto, nem chateiam ninguém. E são humoristas muito bons!
– Sim, realmente. Imagino que seja difícil manter o equilíbrio. Eu mesmo às vezes tenho dificuldades com textos antigos meus em que não fui politicamente correto e que hoje me saltam aos olhos. E mais, que, na verdade, não eram nem um pouco engraçados, eram só humor barato.
– Eu me compadeci da Jada – prosseguiu Vanusa. – Já tive meus problemas com cabelo.
Olhei para ela; ela era toda azul, e aquela coisa atrás da sua cabeça poderia ser, bem, qualquer coisa, desde um braço ou uma cauda extra, até, de fato, um penteado muito estranho. Achei melhor não comentar.
– Realmente, afeta muito a nossa autoestima, e a piada foi de muito mau gosto – ela completou.
– Sim.
– Bem-feito para o Chris Rock, tomou gostoso daquele lindão que é o Will Smith.
– Como é que é? – perguntei, indignado.
– O quê? Ele é lindo, mesmo. Já viu ele de gênio no Aladdin?
Juro, acho que ela ficou até mais azul, e a temperatura no carro subiu.
– Mas, Vanusa! Você não pode ter achado certo ele ter respondido com violência à provocação!
– Não, eu achei másculo! O cavaleiro defendendo a sua donzela!
– Mas, Vanusa! – falei, novamente, ainda indignado. – A gente não pode responder essas provocações com violência! O mundo não pode ser regido pelo mais forte! É isso que instaura todas essas ditaduras e causa toda essa violência que a gente vê por aí. Os conflitos têm de ser resolvidos como pessoas civilizadas!
– Ah, meu idealista lindinho – ela falou, puxando minha bochecha. Sua mão era terrivelmente quente e de uma textura esquisita, meio reptiliana. – Acho tão meigo quando vocês, humanos, falam isso! Mas o Will Smith ainda ocupa um espaço maior no meu coração.
Revirei os olhos.
– Eu não acredito que vocês não condenam este tipo de violência!
– Ah, não – falou ela. – Em Vênus, não tem nada disso. Somos totalmente civilizados e uma atitude dessas seria punida com trabalhos para a sociedade. Mas eu sinto falta dos cavaleiros de antigamente, sabe? Lutando pela honra de suas amadas. Acho tão romântico!
Balancei a cabeça; acho que não conseguiria convencê-la nunca.
– Olha só, o Will vai dar uma entrevista! Deixe-me ver se consigo assistir ao vivo!
E, com isso, desapareceu do carro, que subiu a próxima ladeira com muito mais facilidade.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais