Trabalho Informal
Eu estava no farol, observando os vendedores passando ao lado, oferecendo as mais diversas coisas, quando a Vanusa apareceu no banco ao meu lado.
– Interessante esse aquecedor de banco – comentou ela, apertando um botão. – Acho que vou mandar colocar na minha nave. Já diria Elton John, o espaço é um lugar frio.
Eu a encarei de lado, enquanto dirigia.
– Eu queria entender por que vocês gostam tanto de aquecedor de banco. Meus filhos adoram, também.
– Ah, é gostoso! Esquenta as costas, melhora as dores… E esquenta o bumbum! Isso é demais!
Não entendo por que alguém gostaria de ter um bumbum quente, especialmente no Brasil, mas enfim, quem sou eu para discutir com gostos venusianos?
– Mas você não apareceu aqui hoje para discutir sobre aquecedores de banco, né?
– Ah, não. Eu queria falar sobre esses pobres trabalhadores informais.
Avançamos mais um pouco no farol, e lá vieram eles de novo, colocar balas penduradas no retrovisor, enquanto outro se oferecia para limpar o vidro, embora eu recusasse com veemência.
– Você não fica com dó?
– Vanusa, tem vendedor de tudo daqui até meu consultório. Se eu for comprar coisas de todos que eu encontrar no caminho…
– Mas, não são coisas inúteis! São balas!
– Eu não como balas.
– E tem os carregadores de celular!
– Já tenho um.
– Suportes de celular?
– Não uso.
– Bonecos de time?
– Não torço.
– Você é um chato – disse ela, por fim.
– Mas, apesar disso, ou, talvez, por causa disso, você continua me perseguindo – respondi.
Ela suspirou, e eu comemorei uma pequena vitória interplanetária em minha mente.
– Mas, e esses limpadores de para-brisa?
– Ah, Vanusa, você também vai ficar dando pitaco sobre eles?
– Por quê? Quem mais fica falando sobre isso?
– Um amigo meu, o… Ahm… Chato.
– O nome dele é Chato?
– Não.
– Então qual é o nome dele?
– Eu não sei – pois é, depois de 18 anos, eu ainda não sei o nome do Chato. Deve ser algum nome diferente, do tipo Astrogildo.
– Como você pode chamar ele de amigo, se você nem sabe o nome dele?
– Ele não é bem meu amigo… É só uma pessoa que eu suporto.
– Ah, tipo eu e você.
Touché.
– Mas, o que seu amigo Chato disse?
– Eu fiquei chateado, porque não tinha moeda para dar para o cara, mas o Chato me disse que isso era meio que uma extorsão, sabe?
– Você queria que ele limpasse seu vidro?
– Não.
– Você pediu para ele limpar seu vidro?
– Não.
– Ele usou de violência para você dar dinheiro?
– Definitivamente, não. Ele só desenhou um coração no vidro e fez uma cara de gato de botas.
– Então, talvez seja chantagem, ou coerção, mas não extorsão. Mas, o que eu não compreendo é por que um gato usaria botas, e qual a cara dele.
Eu não soube muito bem o que responder a isso. Mesmo mostrar a foto do gato de botas ainda deixaria muitas lacunas na explicação.
– Mas, você não queria que ele limpasse seu vidro, não é? – prosseguiu ela.
– Não precisava de verdade, eu tinha acabado de limpar, e tinha vários outros carros por aí…
Ela ficou em silêncio por uns instantes.
– Bem, ao menos ele está tentando ganhar dinheiro de uma forma honesta – comentei. – O chato é quando você não quer o serviço, mas eles insistem em oferecer.
– Isso é tipo um operador de telemarketing de farol?
– Exatamente, Vanusa. Boa comparação.
Eu a encarei.
– Vocês têm trabalhadores informais em Vênus?
– Ah, não. A taxa de desemprego lá é zero.
– Sério mesmo?
– Sim.
– Mas não tem ninguém no farol limpando os vidros das naves de vocês?
Ela riu.
– Seu bobinho… Nem consegue imaginar como são as coisas por lá, né?
– Não, mesmo.
– Seus trabalhadores aqui estão apenas tentando se sustentar… Já que o governo claramente não se importa o suficiente para garantir emprego a eles. É uma atitude louvável, melhor que sair por aí roubando.
– Mas isso é desculpa para eu comprar ou pagar por coisas que não quero?
– O governo falho é o seu, não o meu – ela retrucou. – Faça o que achar melhor.
O farol abriu; o limpador se afastou de mãos abanando, já que não só eu não queria que ele limpasse os vidros, como eu não tinha nem uma moeda. E, depois de alguns instantes de silêncio, Vanusa disse:
– Será que esse seu aquecedor de banco não chega a uns 300 graus, não? Sério, isso aqui está mais para um resfriador de banco, para os padrões venusianos… E desapareceu, deixando ainda por cima o botão ligado.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais