Vanusa, a Venusiana, e a censura de Monteiro Lobato
Desta vez, eu estava dirigindo, quando a Vanusa surgiu ao meu lado, no banco do passageiro. Assustado, desviei para o lado oposto, entrando na pista contrária, e por pouco não fui acertado por uma kombi, da qual desviei a tempo.
– Vanusa! – gritei. – Pelo amor de Deus, não faça mais isso!
– Desculpe, não achei que fosse assustar tanto.
Balancei a cabeça, suspirando.
– O que foi agora?
– É que acabo de ouvir no rádio sobre uma nova censura que pretendem fazer a Monteiro Lobato, e fiquei meio em dúvida sobre isso.
– Então, me diga, o que você quer saber?
– Bom, uns anos atrás teve todo aquele bafafá por causa do Caçadas de Pedrinho em que a Nastácia é descrita como Preta de Carvão. Agora, não bastasse isso, estão discutindo por causa de Negrinha. Mas, me diga uma coisa: quando foi escrito este livro?
– Não sei dizer. Começo do século XX?
– Exatamente. E a abolição da escravatura no Brasil ocorreu extremamente tarde, só em 1888. Na época de Lobato, absurdos como o Apartheid e o Ku Klux Klan ainda existiam. E, em um país predominantemente pobre e analfabeto, quem poderia esperar que o preconceito não persistisse, se ele ainda existia nos países mais ricos do mundo?
– E o que você quer dizer exatamente, Vanusa?
– Eu quero dizer que as obras de Monteiro Lobato são um retrato da época em que foram escritas, e é um absurdo esperar que não haja uma imagem politicamente incorreta no meio da obra. Não que ele em si fosse preconceituoso, mas sim a sociedade.
– Eu entendi, mas…
– Veja, por exemplo – ela continuou, ignorando-me – a série Todo Mundo Odeia o Chris. Está cheia de preconceitos, mas retrata 1970, 80. Por que ela pode, e Lobato não? Só por que é de fora?
Ela estava revoltadíssima.
– É a mesma coisa que estipular vagas e cotas pela cor de pele da pessoa. Como se o povo brasileiro não fosse o mais miscigenado do mundo! Vai me dizer se isso não é um preconceito enrustido?
– Vanusa, acalme-se!
Do azul, que era sua cor natural, ela ia para o vermelho.
– Eu abomino hipocrisia! – ela exclamou e simplesmente desapareceu, deixando-me sozinho no carro mais uma vez.
Nota do autor, setembro de 2021: note que Vanusa estava entrando em uma briga de cachorro grande e conseguiu desaparecer antes mesmo de eu conseguir discutir com ela sobre o assunto (coincidência? Acho que não!). Acontece que Monteiro Lobato era, de fato, racista – e tem livros inteiros sobre isso, como “O Presidente Negro”. A discussão – que perdura desde 2012! – é se devem retirar todos os livros, ou simplesmente, com a Disney tem feito com algumas coisas, orientar no começo da obra, levando à discussão. É uma boa pergunta, para a qual não temos respostas, ainda. Excetuando-se os casos em que a obra é claramente racista, eugenista ou preconceituosa, até que ponto devemos punir o autor por suas convicções? Por exemplo: Richard Wagner era antissemita. Devemos todos parar de tocar uma das Marchas Nupciais que é de sua autoria? A marcha, em si, fez algo contra os judeus?
Entende o que quero dizer? Esta é uma discussão muito acalorada e que precisa de mentes frias e maduras.
Ainda, o argumento de Vanusa sobre “Todo Mundo odeia o Chris” acaba não se sustentando, pois a obra inteira trabalha com uma crítica clara ao preconceito – ao contrário da obra de Lobato, que o estimula. Enfim, pena que não pude discutir com ela. Entretanto, naquela época, eu sabia muito pouco sobre o assunto, então, não sei o quão profunda teria sido a discussão.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais