Vanusa, a Venusiana, em: a febre de celulares multifuncionais
– Que notícia curiosa, não?
Novamente, eu dei um pulo e, por muito pouco, não me sujei inteiro. Estava no banheiro, fuçando no meu celular, lendo as notícias da manhã, quando surgiu a Vanusa ao meu lado.
– Vanusa, pelo amor de Deus! Eu estou no banheiro!
– E daí? Não tem nada aí que eu já não tenha visto.
Parei uns segundos, piscando; achei que era melhor não prosseguir com o assunto.
– Você não pode pelo menos me deixar me limpar e sair daqui?
– Mas eu quero comentar agora.
Balancei a cabeça, inconformado.
– Tá bom, o que foi?
– Essa notícia de que as pessoas se sentem mal e envergonhadas por terem bléquiberris. Você não achou interessante?
– É, é realmente interessante o fato de que uma pessoa pode se sentir deslocada por ter um celular que antes era o top, mas, e daí?
– E daí que a sociedade humana alcançou um ponto nunca antes visto, não acha? Estão fazendo búlim por terem celulares ruins.
– Tecnicamente ele não é tão ruim, ele só é lerdo.
– É disso que estou falando! Pense comigo: doze anos atrás, como era a internet?
– Eu ainda usava a discada.
– E quanto tempo levava para carregar uma página?
– Muito, às vezes, cinco minutos.
– Então. E os celulares?
– As telas eram de monocores e o máximo que tínhamos era o joguinho da cobra.
– Hoje temos telas em HD, com jogos equivalentes aos de videogames de verdade. Temos câmeras fotográficas semiprofissionais, gravadores de voz, gravadores de vídeo, rádio, internet rápida…
– Sim, Vanusa, mas qual é o seu ponto, afinal?
– Eu entendo que é algo realmente impressionante e muito útil, mas sou a única que acha estranha essa obsessão por celulares? Os brasileiros estão em 10º lugar no mundo em gastos de celulares, gastando mais de 7% da renda. Você sabe o que é isso? Se uma pessoa ganhar 600 reais ao mês, ela gasta quase 500 reais por ano só de celular. E mais; isso é sem contar os gastos com compras de aparelhos e coisas do tipo. Tem gente que fica meses pagando, chega a gastar dois, três mil reais em um mísero aparelho.
– É, mazelas da sociedade atual.
– E chegaram ao ponto de fazer búlim com aqueles que não têm celular. Quem não tem Aifone, não conta. É quase um apartheid tecnológico. E a necessidade de ficar conectados o tempo todo? Isso não faz bem.
Foi neste ponto que tive um insaiti; virei para Vanusa.
– Vanusa, que mal me pergunte, onde você leu esta notícia?
– Ah, no meu Aifone 5 que comprei nos Estados Unidos.
Eu apenas a encarei; eu, segurando o meu Nokia de 3 anos atrás, com a tela quebrada e que as pessoas sequer notam a existência; ela, com o celular mais requisitado do mundo. Não precisei falar mais nada; ela desapareceu, e eu pude terminar o que estava fazendo.
Nota do autor, setembro de 2021: ah, saudade da época em que o celular top custava 3.000, e não 15.000…Note: 15.000 é basicamente o que uma pessoa ganha por ano, considerando-se um salário mínimo mensal. É, pois é. Antes era 7% do salário; agora chega a 100%.
De qualquer forma, o búlim continua até hoje, especialmente entre crianças! Se você não tem o melhor… Pobre coitado. Bem, se bem que, antigamente, o búlim era por outras coisas, como tênis e assim vai. Uma coisa é fato: o búlim permanecerá sempre.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais