Vanusa, a Venusiana, em: Com Deus ou não?
– E pensar que nunca mais estas coisas vão ser assim…
Na primeira vez em que Vanusa apareceu atrás de mim e falou alguma coisa no meio do público, eu dei um pulo. Achei que todos a tinham visto, também, mas, aparentemente, só eu – pelo menos, não vi ninguém dando pulos junto comigo. Por isso, tive de fingir que tinha pisado em um caco de vidro, fucei no sapato, falei que não, tudo bem, não precisava de ajuda, e coloquei aquela loja na lista das quais eu nunca mais voltaria.
Desta vez, porém, como eu disse, eu já estava acostumado; dei um sorrisinho para o vendedor, um libanês que, estranhando, sorriu forçadamente de volta, guardei o troco na carteira, coloquei o fone bluetooth na orelha e saí da loja. Assim, poderia falar com Vanusa, e todos achariam que eu estava ao celular.
– Do que você estava falando afinal, Vanusa? Que coisas?
Nem me dei ao trabalho de falar para ela parar de me assustar. Era perda de tempo.
– O dinheiro.
Vanusa andando no meio da multidão era uma coisa engraçada. Mais de uma cabeça mais alta que qualquer um, azul, ela permanecia invisível, mas as pessoas instintivamente desviavam como um cardume de peixes desvia de um coral. Interessantíssimo. Algum dia lhe perguntaria como fazia isso.
– O que tem o dinheiro? Você está falando a respeito do cartão de crédito?
– Não, embora eu me pergunte o que Karl Marx diria a respeito do cartão de crédito, em comparação ao dinheiro.
– Ahm?
– Karl Marx dizia que o dinheiro tinha tanto valor quanto o número de vezes pelo qual ele era utilizado no dia. Uma nota de dez reais, ou melhor, dez rublos, que passasse pela mão de dez pessoas, ao final do dia valeria cem rublos.
– Ah, isso é o que ele queria dizer com Mais Valia?
– Ahm… Não. Mais Valia envolve o valor do produto com relação ao trabalho e custos envolvidos na sua elaboração.
– Ah… Para uma pessoa que pregava o socialismo, ele pensou bastante sobre o dinheiro, não?
– Você sabe, é preciso conhecer o seu inimigo para poder combatê-lo.
– É o que você está fazendo comigo, Vanusa? – chutei.
– Vamos voltar ao dinheiro, que era o meu comentário anterior – assuntomudou ela. – Eu disse que nunca mais será igual, porque estão com a ideia de tirar a frase “Deus seja louvado”.
– Parece que foi o Sarney que fez colocarem a frase lá, não é?
– Isso. Provavelmente, imitando os EUA, que dizem “In God we trust”.
– Tá bom, Vanusa, mas e daí?
– E daí que eles falam isso porque o Brasil é um país pluralista. Aceita todos os credos. Mas, na realidade, quando se faz o censo, o Brasil é um país principalmente católico. Na tentativa de respeitar todos os credos, agora eles querem tirar essa frase das notas. Agora… Considerando que a maioria do país crê em Deus, porque os outros haveriam de se sentir ofendidos? Do meu ponto de vista, é a mesma coisa que escolher presidente; a maioria escolhe um, mas o resto não se sente ofendido, nem tenta impeachment. Além disso, para ser totalmente correto, eles também teriam de tirar todas as cruzes que estão em prédios públicos. E por aí vai.
– É…
– E eu vi no facebook um comentário interessante… Tirar a frase eles querem, mas os feriados dedicados a santos ninguém quer, né?
Eu ri de leve.
– É uma coisa a se pensar…
– Fora que… A ideia de colocar o nome de Deus em notas em frases como essas, do meu ponto de vista, é um jeito de dizer que Ele é superior a tudo isso. Como o ápice da pirâmide na nota do dólar.
Fiquei impressionado; nunca vi Vanusa falar tanto sobre religião.
– E vocês, Vanusa? Você está falando tanto disso… Vocês acreditam em algum Deus lá em Vênus?
Ela riu.
– Só falo tudo isso porque acho muito interessante a fé de vocês. Só isso.
E, com isso, desapareceu. Chegaria algum dia que Vanusa me contaria algo a respeito dos venusianos?
Nota do autor, setembro de 2021: no final, não só não tiraram a frase das notas, como nosso atual presidente tem o bordão “Deus acima de tudo”. Brasil é um país laico, pero no mucho. Laico à brasileira.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais