Vanusa, a Venusiana, em: E nem com Enem?
Desta vez, eu não estava nem vendo filme, nem dirigindo, nem trocando a lâmpada; estava tranquilamente fazendo a minha barba, quando minha imagem no espelho começou a mudar. Inicialmente ficou meio embaçada, em seguida meio azulada; achando que era do vapor, tentei limpar o espelho, mas de nada adiantou. Quando dei por mim, não era meu rosto que estava lá, mas sim as feições avatarianas azuladas de Vanusa.
Pulei para trás, derrubando o aparelho de barbear, que logicamente se separou em dois, voando a lâmina sabe Deus para onde – mais uma que só encontraria quando me mudasse e esvaziasse toda a casa.
– Como você faz isso? – indaguei, ainda assustado.
– Prefiro não comentar – foi a resposta e, não sei por quê, sua voz me pareceu meio espelhada.
Tentei procurar pela lâmina de barbear, para ver se, neste meio tempo, ela decidia desaparecer, mas não rolou. Pacientemente ela esperou eu desgrudar do chão e voltar a encará-la.
– Não tenha pressa, pode procurar o quanto quiser – ela falou. Estava tirando com a minha cara?
Suspirei.
– Tá bom, Vavá, o que foi?
– Vavá?
– Sei lá, é pra variar um pouco.
– Vavá… Até que gostei – ela comentou. – Mas, deixe eu perguntar; você viu a notícia da mulher que foi prestar o enem, chegou depois do horário e foi fazer um BO porque não deixaram ela entrar?
– Vi.
– Mas não estava nas regras que não podia entrar depois do horário?
– Pois é.
– E como que ela ainda faz isso?
– Ah, é cada coisa neste Brasil…
– Mas minha curiosidade era outra, na verdade. Pelo que vi do Enem, agora é uma das formas de entrar na faculdade, não é?
– Isso.
– Então nós temos faculdades que usam o vestibular tradicional, e outras que usam o enem?
– Isso.
– E como elas definem?
– Não faço ideia. Só sei que a faculdade mais concorrida do país, a USP, vai continuar acho que para sempre com o vestibular.
– Então, tem lugar que usa só a nota do Enem, lugar que usa só a nota do vestibular, e faculdades particulares que têm vagas reservadas para quem usou o Enem?
– Sim, mas neste caso, a pessoa tem de ter cursado o colegial em escola pública.
– Mas, considerando que a prova não é igual para todos, já que alguns usam uma, outros outra para entrar, isso é justo?
– Aí a gente vai entrar em uma discussão sobre as dificuldades de ensino no Brasil, vagas especiais, políticas paternalistas e coisas que não são muito politicamente corretas de se ir contra.
– Viu, este é o problema do brasileiro, ele fica com essa história de politicamente correto, abaixa a cabeça, e discutir o que é importante, nada. Em vez de efetivamente reestruturar o sistema desde a base, eles vão tapando os buracos. Vagas especiais para isso, cotas para aquilo… Estou vendo o dia em que só 10% das vagas vão ser para meios comuns. Por que não fazem como nos Estados Unidos, com prova, avaliação do histórico escolar, currículo, e tudo isso conta em um processo único e para qual faculdade você quiser? Não seria muito mais justo?
– Talvez seja isso que o enem queira fazer no…
– Por outro lado, talvez eles fossem dizer que algumas pessoas da sociedade não conseguem fazer as mesmas coisas que outras, comprometendo o currículo, ou que certas escolas públicas não têm qualidade suficiente para competir com privadas, criariam cotas e ficaria tudo no mesmo!
– Mas, Vanusa, você não pode pensar assim, temos de achar que as coisas vão melhorar!
Ela bufou.
– Você e esse seu otimismo brasileiro!
E desapareceu.
Sem muito pensar, tornei a buscar a minha lâmina perdida, e estava realmente entretido procurando-a embaixo da pia, quando ouvi uma voz dizendo:
– Está lá, do lado da privada.
Com o pulo, bati a cabeça na pia. Mas tudo bem, pois vi, logo ali, a lâmina. Não teria de esperar até a próxima mudança para achá-la.
Nota do autor, setembro de 2021: o tempo passou, e os problemas continuam os mesmos… Agora, interessante como, relendo, Vanusa reflete alguns pensamentos mais conservadores. Tenho certeza de que muitos se veriam espelhados na Vanusa hoje em dia.
De qualquer forma, aos poucos o ENEM vem se tornando algo (quase) como um SAT. Acredito que, nos próximos anos, realmente teremos uma adaptação nesta direção, ainda que à brasileira.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais