Vanusa, a Venusiana, em: Vagas Especiais
Estacionar em shoppings e supermercados antigamente era uma coisa relativamente fácil. Eu, ao menos, não me lembro até hoje do meu pai tendo dificuldades para parar o seu carro em qualquer um destes lugares, quando eu era pequeno. Entretanto, parece-me que, recentemente, a coisa está ficando cada vez mais difícil. Que o diga quem nunca tentou parar o carro no Shopping Morumbi no domingo às 14h.
O que era justamente o que eu estava tentando fazer quando a Vanusa surgiu no banco de trás do meu carro, e por pouco eu não acertei um poste.
– Pelo amor de Deus, Vanusa, você não pode, sei lá, fazer um barulhinho, alguma coisa antes de aparecer? Que nem mensagem de celular, sei lá?
– Eu posso até tentar… Mas, por quê?
– Porque cada vez que você surge do nada eu dou um pulo!
Ela riu. Sempre soube que era de propósito.
– Sabe uma coisa que me intriga? – ela perguntou.
– O fato de humanos não poderem ficar invisíveis?
– Não, isso só me dá dó – ela respondeu, na culatra. – Mas, o que me intriga é a respeito dessas vagas especiais do estacionamento. Você viu a dificuldade que foi para achar o lugar? E, enquanto isso, dezenas de vagas dirigidas para idosos, gestantes, deficientes físicos, e agora até mesmo para aqueles com carros flex, ficam aí, vazias.
– Bom, faz parte da constituição…
– Constituição?
– Sei lá, faz parte das regras de alguma coisa importante em algum lugar importante que os lugares públicos têm de ter vagas reservadas para pessoas portadoras de necessidades especiais.
– Eu sei, mas eu estava olhando meus gráficos aqui… – ela falou, mostrando tudo no seu IPad Mini. – E veja como vêm crescendo as vagas especiais. Escute o que eu estou dizendo, pelas minhas projeções, daqui a pouco, e por daqui a pouco eu quero dizer em 2024, vão ter vagas reservadas para pessoas sem requisições especiais, e os outros 90% vão ser para todo o resto: idosos, crianças, mães com bebês, deficientes físicos, estrangeiros, gente com animal, aqueles que reciclam…
– Nesse dia, acho que vou ter de começar a vir ao shopping a pé – respondi.
– E sabe o que é o pior? Outro dia, quando você estava no supermercado, eu vi uma vaga de deficientes com cones em cima. Quer dizer, qual a ideia de acessibilidade com isso, se você coloca cones em cima?
Preferi não responder; estava mais entretido em estacionar o carro, tentando ignorar o cabeção azul dela no retrovisor.
– Sem mencionar a mesa de deficientes que eles têm, reservada em um lugar lá no shopping, com fitas em volta, quase como se fosse uma quarentena ou sei lá. Não parece um pouco… Preconceituoso?
Prossegui manobrando.
– Outra coisa que me revolta também são as filas. Caixas exclusivos para isso, filas especiais para aquilo… No supermercado, é impossível comprar qualquer coisa, fica o caixa exclusivo vazio, e todo mundo lá parado nos outros. Por que eu não posso usar, se está vazio? – me peguei imaginando ela na fila do supermercado com um pacote de salgadinho e dois potinhos de iogurte, pacientemente esperando. – E, sabe o que mais? Eu não entendo a fila dos idosos no banco. Fica aquela filona gigantesca para apenas um caixa, enquanto, na fila normal, para uns cinco, seis caixas, o pessoal vai super rápido. Não é mais fácil o vovô ficar na fila normal?
– Vanusa, você está revoltada por eles, ou pelo fato que isso atrapalha a sua vida?
Pela primeira vez, ela ficou quieta, pensativa. Ah-há! Encurralei!
– Se é por sua causa… Realmente acho que você deveria ir procurar os seus direitos e requerer vagas e direitos especiais para venusianos. O que acha?
Ela considerou a possibilidade… E desapareceu. Neste momento, acho que está lá no meio do Senado, provavelmente atrapalhando a dosimetria do Mensalão, para fazer esta requisição.
E, quando voltar, tenho certeza de que estará muito mais revoltada com a política brasileira do que com a falta de vagas em lugares públicos.
Nota do autor, setembro de 2021: pois é, isso reflete algo incrustado na nossa sociedade: caso você esteja revoltado com vagas e cotas, a sua revolta é porque o(a) afeta diretamente? Ou não? Fica a reflexão.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais