O maior espetáculo da Terra
Um rebuliço percorreu toda a cidadela, conforme uma caravana passava, com seus inúmeros vagões, puxadas por quatro homens logo à frente, dois macacos batendo os chicotes para que avançassem mais rápido. A população toda olhava; o maior espetáculo da Terra se aproximava! Era o circo!
Dentro dos vagões era tudo coberto, então nada podia ser visto; o que repousava lá era puro mistério, que só atiçava mais e mais a curiosidade do público. A caravana passou e parou no meio da praça principal do vilarejo, onde a lona já fora montada, esperando por eles; um quarteto de elefantes dava os últimos retoques nas arquibancadas, enquanto os macacos já arrumavam tudo para a venda de ingressos; cavalos, porcos e ovelhas saíam por aí, anunciando a chegada do circo, a estréia para aquela noite, causando um rebuliço ainda maior. A cidadela explodia em excitação.
Pequeninos cachorrinhos corriam para lá e para cá, aflitos, e passarinhos travessos tentavam sobrevoar o local para descobrir quando poderiam todos, finalmente, ver o espetáculo.
A noite por fim caiu, e o circo abriu; todo o povo da cidade logo se amontoou para ver. Os elefantões, grandões, ficaram mais para o lado, lá no fim da arquibancada; cavalos levavam sobre si alguns macacos e outros animais baixinhos, para que pudessem ver o que acontecia; nas arquibancadas, os porcos, ovelhas, cachorros, gatos, galinhas e todos os outros tipos de animais existentes eram pura felicidade.
Ursos grunhiam em júbilo, felizes com o chou, ainda que tivessem de ficar em uma parte especial, para animais grandes, junto dos tigres. Até mesmo os hipopótamos, rinocerontes, as focas e leões marinhos fizeram de tudo para vir ver o incrível chou. Para os leões, os reis da floresta, as fileiras da frente foram reservadas, e lá eles se sentaram.
Nos bastidores, os animais para a apresentação eram preparados; suas patas eram friamente queimadas, não raro lhes batiam nas cabeças, para que prestassem atenção e não resolvessem se rebelar; correntes lhes prendiam os pescoços, para que não pudessem fugir, e ficavam todos confinados em jaulas pequeninas, do tamanho exato para um (sendo que ficavam dois em cada), sem ter o que comer, muitas vezes, por dias, para que estivessem ferozes para a apresentação.
Para que não reclamassem, muitos usavam focinheiras, panos nas bocas, às vezes até mesmo suas línguas eram cortadas; para que fosse seguro tirar fotos com os pequenos macaquinhos ou elefantinhos, até mesmo com os porquinhos, seus dentes eram arrancados, e às vezes cortavam um ou outro tendão para que não tivessem força suficiente nos dedos para atacar.
– Respeitável público! – gritou um orangotango enorme, no meio do palco, enquanto pássaros de todos os tipos se acomodavam nos galhos das árvores. – Bem vindos ao maior chou da Terra!
A introdução foi rápida, o público estava afoito; então veio o primeiro entretenimento. Uma pequenina criancinha, de não mais que cinco anos, vestindo um vestido de bailarina, dançando para lá e para cá, mas que coisa lindinha! Depois vieram mais três ou quatro, andando de bicicleta, e como se equilibravam! Ursos treinadores iam para lá e para cá, controlando-as. Depois, vieram três homens grandões, bem fortes, carregando sobre si preguiças equilibristas. Era incrível!
Então, uns gordões, daqueles de belos trezentos quilos, subiram em bolas, sob o som da tromba de dois elefantes treinadores, e começaram a circular por todos os lados; depois, subiram em banquinhos e um no outro, fazendo pirâmides. Eram incríveis!
Os animais no público iam à loucura! Como podiam fazer aquilo? Quanto treino seria necessário para que um homem aprendesse a fazer aquilo? Dez anos? Quanto? Sequer se imaginava.
No centro do picadeiro, por fim, vieram shows de mágica; um gorila tirou de uma cartola um bebê humano, e depois outro e mais outro; colocou-os todos de volta e, passando um pano por cima, de repente, saiu um homem inteiro de lá de dentro. Sua cara não era das melhores, parecia humilhado e triste, sim, e quem visse de perto provavelmente suas cicatrizes de treinos, mas ninguém ligava para isso; o importante era a mágica, e que mágica! Que seres bem treinados! Era incrível! O que uma boa chibatada não lhes fazia, pensavam os treinadores para si; ninguém sabia disso, mas os humanos eram abusados nos bastidores. Para se treinar humanos, aqueles animais ignorantes, irracionais, que não entendem o treino mais simples, toda a violência era necessária.
Por fim, veio o chou mais audacioso; um tigre andaria, dentro de uma jaula, munido apenas de uma cadeira e um chicote, por entre duas fileiras de dez humanos cada, ferozes, gritando e berrando. E ele ia, meu Deus! E como ia! Não tinha medo deles, daqueles animais horrendos! Ao som do seu destemido chicote, eles se sentavam e ficavam quietinhos, mansos; alguns ainda tentavam avançar, mas, rapidamente acertados no olho pela ponta de ferro do chicote, especial para esses casos, retrocediam, chorando.
Mas era, definitivamente, o maior espetáculo da Terra! Os animais pulavam de alegria, comemorando. Que chou, mas que chou!
No entanto, algo terrível aconteceu; um humano, grandão, ainda vestido de palhaço, conseguiu escapar, correndo para fora do picadeiro. O público gritou, desesperado. O que era aquilo? Era um perigo! O ser correu, sem tentar ameaçar ninguém, porém; queria apenas a liberdade. Desviou de tigres, ursos, leões, e conseguiu escapar da lona. Corria livre pela rua, quando, porém, dois elefantes avançaram contra ele e, sem piedade, o pisotearam.
Um bicho daqueles, solto na rua, era, decerto, uma ameaça ao povo! Deveria ser morto, isso sim, para que não ameaçasse ninguém, para que os outros aprendessem que não deviam questionar, um momento sequer, a autoridade dos donos do circo – era o que comentavam.
Aquilo havia sido um espetáculo, e como!

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais
19 de junho de 2025 @ 11:41
Uma bela crítica ao que vergonhosamente algum dia foi chamado de show.