Um pálido ponto azul
Um oferecimento de: UPS¹, seu melhor amigo para viagens espaciais.
Era o trigésimo dia de viagem. Eles estavam rodando indefinidamente havia dias, depois de fazerem uma curva errada em Alpha-Centauri.
– Querido, eu falei para você que a gente tinha de ir pro quadrante delta lá atrás, não para o alpha.
O pai, segurando o manche da nave, apenas fungou.
– A gente já tá chegando? – perguntou o filho.
– Não! – respondeu ele, irritadamente.
– Pai, você pelo menos sabe pra onde a gente tá indo? – questionou a filha.
– Claro que eu sei.
– Para onde, então?
– Para o planeta Terra.
– E você sabe onde a gente tá?
– A 3 arcos de Alpha-Centauri, no quadrante delta.
– Pai, fala sério, você tá totalmente perdido.
– Sabia que a gente devia ter pegado a segunda saída do buraco de minhoca… – comentou o filho, bufando.
– Que tal vocês ficarem quietinhos aí atrás, ehm?
– Mas, pai, olha, aquele planeta com os anéis! A gente tá longe pra caramba da Terra!
A mãe pegou seu tablet universal, um apetrecho de tela de vidro, e começou a passar os dedos. Imagens e textos apareciam.
– Parece que os terráqueos chamam esse planeta de Saturno. Que nome estranho!
– Blobs – zombou o pai.
O filho enfiou a cara na frente da mãe.
– Sério, pai, a gente tá longe pra caramba da Terra!
– Relaxa, filho, eu sei chegar.
– Por que você não põe no UPS?
– Eu sei chegar! – exclamou o pai.
– Tá legal, mas, e se a Terra estiver do outro lado do sol? Você vai ficar circulando toda a órbita dela?
– Ela tá ali – falou o pai, apontando pelo vidro, com cara de quem estava certo. – Aquele pálido ponto azul. Eu consigo ver, não preciso dessas porcarias tecnológicas!
– Aquela porcariazinha é a Terra? – questionou a filha. – Fala sério, pai. Um mês de viagem para isso?
– Ah, eles falam muito bem de lá – disse a mãe, ainda fuçando no seu tablet espacial. – Parece que tem muita água, plantas… Muitas paisagens…
– Mas é cheio de fumaça, mãe. Eu não quero voltar doente.
– Sério, a gente já combinou essa viagem faz anos! – exclamou o pai.
– Sim, é o sonho do seu pai conhecer a Terra – comentou a mãe. – Vamos, gente, vamos aproveitar a viagem.
– Não dá para aproveitar um lugar que você leva meses para chegar – bufou o filho, sentando-se de novo.
– A gente só levou meses porque ficou parando em tudo que é canto para comprar bugigangas e tirar fotos… – retrucou o pai.
– Mas quem quis foi a mamãe!
– Não é todo dia que a gente vê dois buracos negros colapsarem! Vocês realmente não queriam fazer uma selfie lá?
– Mãe, a selfie ficou horrível. Era igual tirar uma foto com fundo preto!
– É, todo mundo vai achar que a gente só falsificou a imagem – retrucou a filha.
– Ah, mas essa nebulosa aqui ficou linda!
– A gente devia ter ido para o Quark-7. Todo mundo sabe que aquele é o planeta mais legal desse quadrante!
– A Terra é uma parada obrigatória – disse o pai. – Não tem nada mais bucólico. É como ver os nossos ancestrais! Tanto atraso! É como se o tempo estivesse congelado!
– Então, pai, fala sério! Eles ainda limpam a bunda com papel higiênico! Eles literalmente destroem árvores para limpar a bunda! – retrucou o filho.
– E eles fedem – disse a filha.
– Você por acaso já cheirou um terráqueo?
– Eu tenho certeza de que eles fedem.
– Ei, vejam pelo lado positivo, a gravidade é menor, lá. Quer dizer que vocês vão poder saltar bem alto!
– Prefiro saltar asteroides, isso sim é legal – reclamou o filho, ainda emburrado.
– Tá bom, todos ponham os cintos, vou usar a dobra espacial.
Todos se sentaram em suas cadeiras e apertaram seus cintos; o pai apertou um botão e, em um piscar de olhos, foi como se o espaço ao seu redor se dobrasse como um cobertor. Em instantes, eles já estavam ao lado da lua, e o pai desativou o botão, passando a poucos quilômetros da sua superfície. Mais um pouco e seriam puxados pela sua gravidade, como um meteoro.
– Essa foi por pouco! – exclamou ele. – Quem foi que colocou um satélite aqui?
– Sério, pai, algum dia você ainda vai matar a gente! – reclamou a filha.
– É, pai, já bastou você bancando o gostosão lá no cinturão de asteroides! – disse o filho.
– Todo mundo sabe que não dá pra manobrar direito na velocidade da luz!
– É por isso que eu instalei a função de ondas quânticas… – retrucou o pai.
– Mas você tem que usar! – exclamaram os outros dois.
– Tá bom, tá bom, quando a gente voltar, eu ativo! – reclamou ele. – Mas acaba com toda a diversão!
– É sempre mais divertido quando a gente está vivo!
– E não passa raspando por corpos celestes – completou o filho.
– Tá bom, tá bom, estamos entrando na atmosfera…
– Pai, sério, ativa o UPS.
– É, para achar um lugar bom para parar.
– Não, eu vou achar uma montanha tranquila.
– Pai, sério.
– Ali, ó, parece um lugar bom, muitas ilhas.
– Indonésia – comentou a mãe, olhando o tablet.
– Um conjunto de ilhas! Deve ser lindo. Vamos começar por lá.
– Pai, liga o UPS.
– Eu consigo estacionar sem ajuda de uma máquina! Fiquem quietos aí nos seus lugares! E ninguém tira o cinto até a nave parar!
A nave foi queimando pela atmosfera; estava escuro, e, para as pessoas na Terra, não passava de um meteoro, como tantos outros.
– Ali, ó – disse o pai. – Aquela montanha tem uma superfície de pouso excelente! Bem plana…
– Pai, aquilo tá esquisito.
A nave descia a uma velocidade estonteante.
– Tem até luzes para receber a gente! Certeza de que é um espaço-porto.
– Pai, eles não têm isso na Terra.
– É, pai, eles nem sabem que a gente existe.
– Imagina a surpresa deles quando nos virem! Acredita que eles têm só dois olhos e quatro membros? E eles são simétricos! – exclamou ele, empolgadíssimo, olhando para trás. – Isso vai ser demais!
– Pai, olha pra frente!
– Relaxa, eu sei o que eu tô fazendo.
– Querido, você tem certeza de que…
– Eu não vou ligar o UPS! Eu consigo estacionar a minha nave sozinho! Tenho anos e anos de carta! Agora, deixem eu fazer as manobras!
A nave começou a apitar.
– Eita sinalzinho chato de proximidade. Não preciso dessa porcaria para estacionar.
Ele desativou o som; desacelerou; ativou os retropropulsores; alinhou a nave; baixou os trens de pouso; planou sobre o platô da montanha; e desceu.
Foi engolido imediatamente pela lava do vulcão. Caro leitor, não seja como o senhor Spock, instale agora o seu UPS, o seu melhor amigo para viagens espaciais! Preços especiais e condições de pagamentos facilitadas! Você não vai se arrepender!
¹ Universal Positioning System. Serve para todo o universo cartografado.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais