A loira da estrada
Acordei naquela manhã com a boca seca, a cabeça pesada de quem tinha dormido direto, uma noite sem sonhos. Fui para a sala passar um café e liguei a televisão para ver as notícias da hora do almoço. Estava no meio da minha caneca de café, quando ouvi a manchete:
– A polícia civil procura garota desaparecida há dois dias.
Virei-me para olhar e, por pouco, não derrubei a caneca. Era difícil segurar as coisas com a mão esquerda.
O noticiário dizia que ela se chamava Bruna, tinha dezessete anos, e havia sido vista pela última vez no sábado à noite, saindo com o namorado de uma balada do centro da cidade. Desde então, nunca mais. Mais uma que aproveita para fugir com o namorado, ou, talvez, da qual o namorado se aproveita. Vai saber.
O rosto me era familiar; eu me sentei, pensando, e finalmente descobri: Bruna. Era a passageira que eu tinha levado na madrugada de domingo! Mas… O que tinha acontecido naquela noite?
Eu não me lembrava de nada. Nada de relevante… Lembrava de ter pegado os dois na balada e, provavelmente, deixado em algum lugar. Era tudo igual. O turno da noite era ingrato, sexta e sábado eram os piores dias de se trabalhar. Era ótimo, pagava bem e tinha movimento, mas eu pegava todo o tipo de doido. Muitas vezes, tinha de mandar lavar o carro, por causa do vômito dos bêbados.
Se não me lembrava deles, é porque não tinham me dado trabalho.
Tive a sensação de que tinha alguém do meu lado; levantei a cabeça para olhar, mas nada. Deveria ser só impressão.
Bem, tinha que dar um jeito nas coisas. Trocar o curativo da mão direita, pôr as roupas para lavar… Comecei trocando o curativo; a palma da minha estava um pouco melhor. Ao menos, não abria a ferida toda vez que encostava em alguma coisa. Como tinha machucado aquilo, mesmo? Não tinha muita certeza.
– Foi trocando o pneu – respondi para mim mesmo, olhando-me no espelho.
Sim, o pneu tinha furado no sábado à tarde, tive de parar no meio da estrada para trocar. Cortei a mão com o macaco. Tinha sujado minha roupa inteira.
Aliás, era isso que precisava fazer. Abri o cesto de roupa suja que ficava do lado da pia e peguei o bolo de roupas, dentre elas, minha camisa e minha calça, lambuzadas de sangue.
Vi o espelho de relance, com o canto do olho, e meu coração deu um salto. Senti um arrepio descer pela espinha, e minhas pernas fraquejaram. Alguém, havia alguém no espelho. Não tinha certeza, mas parecia… Parecia muito…
– Uma menina.
Ora, bobagem! Estava velho demais para acreditar em idiotices como loira do banheiro. Aliás, você não precisa fazer algum tipo de oferenda, algum tipo de invocação, para ela aparecer?
Chacoalhei o corpo, pegando as roupas, e fui para a máquina de lavar. Depois disso, fui para o carro: o pneu tinha furado, e eu não tinha tido tempo ainda de mandar arrumar. Ele estava jogado de qualquer jeito no porta-malas, com a chave de roda, também suja do sangue da minha mão, no canto. Precisaria mandar lavar o carro; eu tinha feito uma lambança com aquele machucado.
Lavei rapidamente a chave de roda, limpei o que era possível do carro, e depois saí para uma borracharia perto de casa, para consertar o pneu. Aproveitei o posto onde enchi o tanque para pedir para lavarem todo o carro – afinal, precisava estar nos trinques para receber os clientes, ou eles faziam uma avaliação ruim – e fiquei na conveniência, vendo um jornal sensacionalista, que tratava do mesmo assunto: o desaparecimento de Bruna e Leandro.
A polícia estava informando que tinha acabado de encontrar o corpo de um deles no meio do mato, perto da estrada. Um ponto lá para frente, entre uma cidade e outra, bem no meio do nada.
Foi a segunda vez que quase derrubei meu café.
O que tinha acontecido com aquela menina? Ela tinha ficado em algum ponto… Não era na casa dela? Forcei a memória, tentando recordar, mas, simplesmente, não conseguia. Aquela madrugada era um branco. Tentei olhar meu registro de viagens, mas eram muitas. Sentei-me e apoiei o copo, antes que derrubasse, tentando segurá-lo com o curativo volumoso na palma da mão direita.
Senti um vulto passando atrás de mim; olhei por sobre o ombro, mas não havia nada, apenas as prateleiras cheias de salgadinhos da loja.
Segui na minha busca, até que, enfim, encontrei. Tinha pegado o casal na balada, no centro da cidade, às duas horas da manhã de domingo. O destino final era uma casa em outra cidade, a trinta quilômetros de lá. Parecia que tinha dado tudo certo. Trajeto concluído, minha próxima corrida foi às quatro e meia da manhã. A corrida pagava bem, mas seria difícil encontrar uma corrida de volta, lá.
Respirei tranquilo, tomando meu café. Eu os tinha deixado em casa. Fosse o que fosse, tinha acontecido depois.
Peguei o carro lavado, cheirando a novo, e segui para o trabalho, pegando clientes, levando-os para outro lugar, pegando mais clientes…
De súbito, ouvi do banco de trás:
– Foi você!
Era a voz de uma mulher jovem.
– Como?
Olhei pelo retrovisor; no banco de trás, havia apenas a senhorinha que eu levava à casa do filho.
– A senhora disse alguma coisa? – perguntei.
– Não – ela respondeu, olhando pelo retrovisor. – Não falei nada.
Dei de ombros e continuei. A noite caiu, e as corridas começaram a ficar mais caras e mais raras. Peguei um passageiro para levar à outra cidade, passando pela estrada; o trânsito estava tranquilo, já era quase meia noite, quando senti um toque de leve em meu ombro.
– Você! – disse uma voz em meu ombro.
Com um grito, girei o volante, avançando para a outra pista e voltando rapidamente. O coração voava em meu peito, e todos os pêlos do meu corpo estavam arrepiados.
– Ei, ei! O que foi? – perguntou o homem no banco de trás.
– Parecia um cachorro – respondi, no automático. – Desculpe.
– Mas ficou tudo bem com ele?
– Sim, sim, desviei – respondi.
– Ah, que bom. Nem todo mundo desvia de cachorros na estrada.
Olhei ao redor, no banco do passageiro, pelo retrovisor, em tudo; não tinha mais ninguém no carro, apenas meu cliente. Não era possível. Eu estava alucinando, só podia ser.
Decidi ligar o rádio, colocar nas notícias, alguma coisa para distrair a cabeça; tinha uma estação de rádio que passava jornal 24 horas por dia.
– A polícia conseguiu recuperar o celular de Leandro, o namorado, que fez uma solicitação de viagem por aplicativo naquela madrugada, pouco antes das duas horas da manhã. O aplicativo indica que a corrida foi concluída às quatro horas da manhã, duas horas depois, e o motorista ficou parado por aproximadamente…
– Que doideira esse caso, não é? – falou o homem atrás.
– Como?
– Esse do casal – ele disse. – Foram encontrados uns quilômetros para trás, aqui na estrada.
– Encontrados?
– Os corpos, né. Os dois, mortos. Parece que com uma chave de roda. O cara acertou na cabeça; sangue por todo lado.
Subitamente, senti um frio; podia sentir a vista meio que tentando rodar.
– Estranho é que não tinha mais nada. Não roubou nada, não fez nada. Só matou, mesmo.
Eu chacoalhei a cabeça e segurei o volante com mais força. Precisava me concentrar na estrada; era perigosa, naquela hora da noite.
– Ei, você está bem?
– Tudo certo.
– Parece meio pálido…
– Tá tudo bem.
– Não imaginei que fosse ficar mal por causa dessa história – o passageiro falou. – Desculpe, mas é que estava no rádio.
– Não, não, relaxa – respondi e mudei para uma estação de música.
Deixei o passageiro pouco depois e decidi parar em um posto de gasolina para me recompor. Comi minha marmita, peguei um café e fui olhar novamente a corrida no meu celular. Era verdade. A minha corrida tinha demorado duas horas, muito além do esperado. Por quê? O que tinha acontecido naquela corrida? Eu não conseguia me lembrar de nada! No máximo, do cliente seguinte, aquele das quatro e meia da manhã. O que eu tinha feito entre as duas e as quatro?
Seria possível?
De repente, a ficha caiu.
A chave de roda. As roupas sujas de sangue. O machucado na mão…
Não, não é possível!
Eu tinha certeza de que o pneu tinha furado. Eu tinha acabado de levar para arrumar! E já estava com a mão machucada… A chave de roda já estava suja de sangue de antes. Minhas roupas… Eu tinha trocado. Trocado antes de voltar a trabalhar. Tinha sempre uma reserva no carro e…
– Você!
A acusação de novo; a voz no meu ombro, os pêlos arrepiados, o frio na espinha. Ela parecia mais perto, mais perto…
Precisava sair dali. Entrei no carro e, mesmo sem ter uma corrida, peguei a saída para a estrada. Estava tudo escuro; não havia ninguém em lugar nenhum, apenas eu, meus faróis e as árvores dos dois lados.
De repente, ela estava do meu lado. A menina assassinada, como mostrada na televisão. A roupa toda suja de sangue, o cabelo loiro todo manchado de vermelho.
– Por quê? – ela disse, sentada no banco do passageiro. – Por que você fez isso?
Eu apertei o volante com força; sentia minhas pernas tremerem, o aperto do pedal fraquejar. A qualquer momento, perderia o controle dos intestinos, também.
– Eu não fiz nada – respondi. – Não sei o que aconteceu! Não fui eu!
– Foi, sim – ela disse. – Você me matou. Me deixou lá, no meio do mato.
– Não! Eu não me lembro!
– Mas eu lembro! Foi você!
– Não! Não! – eu falei.
Meus olhos estavam marejados; eu não conseguia enxergar direito. De repente, um farol, uma buzina forte; virei a direção com tudo, já estava invadindo a outra faixa, desviei do caminhão, mas acabei caindo no mato do acostamento, na via que levava para o ponto onde os corpos haviam sido encontrados.
Não podia ser uma mera coincidência.
Segui por ele, até chegar a um ponto isolado por fita amarela. Não tinha nada; era só uma clareira vazia, iluminada pela luz dos meus faróis.
– Foi aqui! – disse a menina. – Aqui que você me matou.
– Eu não me lembro!
– Veja a sua mão – ela disse.
Eu olhei para a minha mão direita, o corte na palma.
– Eu machuquei trocando o pneu – falei.
– Não, você machucou brigando com o Leandro – ela respondeu.
– Não, não foi isso!
– Foi, sim.
– Suma daqui! Suma! Você já está morta! Por que está enchendo meu saco? Saia daqui, agora!
A menina sumiu do banco do passageiro.
Dei a marcha a ré e voltei para a estrada, acelerando o máximo possível no caminho para casa.
Parei em casa, entrei e fui lavar o rosto.
Não era possível, não era possível! Eu não tinha matado aquele casal! Eu nem sabia quem eles eram! Eu os tinha deixado em casa… No meio da madrugada… E voltado a trabalhar!
Olhei meu rosto no espelho; a moça apareceu novamente ao fundo, quieta, flutuando, julgando-me com o olhar, culpando-me pelo acontecido.
– Não fui eu! – gritei.
Abri a máquina de lavar e peguei a roupa, já limpa e seca: não dava para ver nada. Nenhuma mancha. Aquilo fortaleceu ainda mais a minha certeza: não tinha sido eu!
Sentei-me para ver as minhas conversas no celular, para ver o histórico do meu aplicativo de mapas, mas nada. Nenhuma mensagem trocada entre as duas e as cinco da manhã. Meu mapa não mostrava nada além do trajeto marcado, de um ponto a outro. Nada. Não tinha nenhuma evidência de que tivesse sido eu.
Mas também não tinha nenhuma de que não tivesse.
Mas não, não podia ser! Por que eu iria fazer algo assim? Por que iria matar um casal jovem, largar seus corpos no meio do mato? Não, simplesmente não era possível, não era possível… E como esquecer tudo? Como eu faria algo tão… Macabro… Tão animalesco… E não me lembraria? Não era possível!
Abri o armário do banheiro, procurando meu remédio para dormir, e tomei logo dois de uma vez. Sim, eu sempre tinha um, porque às vezes é difícil acertar o ritmo, dormindo de dia e trabalhando de noite. Senti a sonolência se aproximando, bem-vinda, enquanto a loira da estrada entrava e saía de foco…
Acordei no dia seguinte com a boca seca, a cabeça pesada de quem tinha dormido direto, mas não sonhado; mal havia amanhecido, e havia pessoas armadas diante de mim.
– O quê? – perguntei, ainda grogue.
Não conseguia entender direito o que estavam falando. Era a polícia, eu imaginei pelos uniformes. Algo sobre a menina… Sobre a estrada…
No fundo da sala, ela ainda estava lá. Encarando. Julgado. Culpando.
Fui levado para a delegacia com algemas e, lá, respondi a um longo interrogatório. Onde estava na madrugada de sábado para domingo? Tinha pegado aquela casal? Tinha levado para onde? Deixado onde? Como tinha machucado a mão direita? A perícia estava vendo meu carro… Se tivesse alguma coisa, eles iriam achar. Era só questão de tempo. Iriam achar…
E, o tempo todo, a loira da estrada me encarava.
– Eu só… Como no aplicativo. Deixei eles e continuei trabalhando – eu respondia.
– Por que demorou tanto em um trajeto que dá para fazer em meia hora, especialmente de madrugada?
– Eu não sei! – respondia, exasperado. – Eu não sei!
A polícia não acreditava em mim. O advogado que veio para me defender também não acreditava em mim. A loira, menos ainda. Continuava lá, olhando, encarando.
– Achamos sangue no seu carro – disse o policial, sentando-se de frente para mim na sala de interrogatório.
– É meu – respondi. – Eu me machuquei trocando o pneu, já disse.
– É A+.
– É o meu tipo!
– É o mesmo tipo da vítima.
– Não fui eu! – exclamei. – Eu não… Eu não me lembro de nada!
– Tinha fios de cabelo loiro no seu carro.
– É claro, eu já disse, eu peguei esses passageiros e deixei em casa.
– Então, por que levou duas horas?
– Por quê? – ela perguntou no meu ouvido. Eu tremi. – Por quê?
– Eu não… Eu não sei.
Eu fui preso preventivamente; não tinha fiança para um crime daqueles. Eu estava na única cela que estava abarrotada de homens, mas que sempre tinha espaço para uma mulher: ela. Me encarando. Me julgando. Me culpando.
A avaliação dos forenses chegou: o DNA do cabelo era dela; o sangue era meu. Eu tinha a arma do crime, mas ela estava limpa; não tinha nem uma gota de sangue. A arma era compatível, eu estivera no local, tudo apontava contra mim. Mas ninguém tinha certeza absoluta de que eu era o culpado.
Só ela.
Só ela sabia. Só ela estava lá. Olhando. Julgando. Culpando.
As provas eram circunstanciais; o advogado se aproveitou disso. Eu acabei sendo libertado; o tempo que tinha passado na prisão já tinha sido suficiente.
Voltei para casa, para a encontrar totalmente revirada; os policiais tinham procurado provas e não tinham encontrado nada. A casa ficara daquele jeito. Ninguém se importara em arrumar.
Voltei para casa, mas não voltei sozinho; ela continuava. Uma sombra em meus ombros. Encarando. Julgando. Culpando.
Os dias passaram; não tinha sido eu. Não tinha sido eu! Eu era inocente, o julgamento tinha passado… Eu não me lembrava do que tinha acontecido, mas, definitivamente, não tinha sido eu. Repetia isso continuamente para a loira, mas ela continuava lá a todo momento: enquanto pegava os passageiros, enquanto fazia as viagens. Parei de trabalhar à noite, para evitar acidentes, mas ela continuava lá. No banco de passageiros, observando. De vez em quando, falava: “Você!”. Eu dava um pulo, mas continuava.
Até que, um dia, levei o carro para lavar novamente.
– Ei, senhor! Senhor! Isso aqui é seu!
Eu olhei para o funcionário, que me estendia uma bolsa de alças.
– Estava no seu carro quando lavamos, um tempo atrás. O menino esqueceu de pôr de volta, a gente tava esperando o senhor voltar para devolver.
– Ah! Obrigado.
Era a minha mala de roupa reserva; estava pesada.
Voltei para o carro e joguei a mala no banco do passageiro.
Curioso, decidi abrir.
Havia uma troca de roupa lá e uma chave de roda.
Tudo coberto de sangue.
– Você! – a loira gritou, como se vinda diretamente de dentro da sacola.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais
16 de maio de 2025 @ 08:08
Achei interessante, mas li até o final esperando uma resposta para oque me deixou mais intrigado por que ele não lembrava do crime, já no meio da leitura especulava uma esquizofrenia ou dupla personalidade, mas esse mistério ficou em aberto.
16 de maio de 2025 @ 08:14
Caro Luiz, se você ficou intrigado, atingi meu objetivo com louvor!
A intenção deste conto era flertar com Edgar Alan Poe e deixar uma dúvida Machadiana no final.
Vou lhe dizer, até hoje, nem eu mesmo sei se ele cometeu o crime ou não! Rsrsrs
Muito obrigado pelo seu comentário e leitura! Espero que goste das outras histórias! Do lado direito, há um menu com as coleções. A grande maioria é de humor.
Forte abraço!
16 de maio de 2025 @ 08:15
Achei interessante, mas li até o final esperando uma resposta do que mais me intrigou por que ele não lembrava do crime, já no meio da leitura especulava uma esquizofrenia ou dupla personalidade mistério que ficou em aberto.