A Cama de Procusto
A equipe de buscas da qual eu fazia parte já estava exausta. Procurávamos aquela família havia quase uma semana e todos sabíamos que, a cada hora que se passava, a chance de ainda estarem vivos se tornava cada vez menor.
– É uma área gigantesca de floresta – o delegado me dissera. – É como procurar uma agulha em um palheiro.
Mas não era só isso. A polícia inteira estava com medo de se aprofundar demais nas investigações. Era uma área amaldiçoada.
– Todo ano, algum aventureiro se perde no meio dessa floresta e nunca mais é encontrado. Eles já deviam saber disso. Não é novidade para ninguém. Mais um que se perde por fazer o que não deveria fazer. Não dá para salvar todos os idiotas – ele prosseguia.
– Seleção natural, já dizia Darwin – concordava minha dupla, o Carvalho, que era grande e forte como um carvalho e talvez tão inteligente quanto um.
Mas eu passava as noites em claro, só pensando. Uma família. O pai, a mãe, um adolescente de 14 anos, uma adolescente de 12, um pré-adolescente de 10. Uma família de aventureiros que havia decidido escalar a montanha e depois descer pelo outro lado, o lado proibido.
Minha preocupação não era tanto pelos pais displicentes. Era pelas crianças que sofreriam o terror de passar as noites na floresta, sem comida, sem mantimentos, sem nada.
Com muito esforço, consegui que os bombeiros da cidade vizinha me emprestassem o helicóptero. Bem, não foi exatamente isso; eu pedi uma carona em uma viagem de reconhecimento; um pequeno desvio de rota durante o treinamento dele. O comandante me devia das várias vezes em que tinha lhe emprestado dinheiro ou escondido o seu vício no jogo do Tigrinho.
Olhei por cima das árvores o mesmo trajeto que havíamos feito ao longo daqueles dias: nada. Basicamente, não havia pista alguma naquele local. Nenhuma evidência de que a família havia passado por lá; era como se eles tivessem desaparecido completamente. Até que…
– Ali! – falei, apontando para algo semelhante a uma clareira.
Parecia uma casa; estava coberta pelas copas das árvores, mas havia um pequeno pedaço entreaberto através do qual eu podia ver o que se parecia com um telhado de sapê, o que permitia que se disfarçasse razoavelmente bem entre as copas.
– Está vendo? – falei para o piloto.
– Não é nada – ele disse.
– É sim. Parece ter fumaça saindo dali.
– Deve ser alguma queimada começando. Sabe como é essa época do ano.
– Vou descer aqui – eu falei.
– Nada disso, não trouxemos o equipamento.
Não adiantava discutir com o corpo de bombeiros; simplesmente marquei a localização no meu GPS do celular e, em um misto de ansiedade e decepção, retornei para a base.
– Eu vou – falei para Carvalho. – Você não precisa vir junto se não quiser.
– Eu é que não vou mesmo. Sextou, cara! Chega dessa busca inútil.
Preparei uma mochila com mantimentos; água, lanterna, facão. Rádio por satélite no cinto, arma no coldre, um saco de dormir, caso precisasse. Parti em torno das duas da tarde; calculava que conseguiria cruzar a montanha e chegar ao outro lado em menos de três horas. Não era o ideal; deveria fazer a jornada pela manhã, mas eu não podia esperar mais. As horas eram como a areia escorrendo na ampulheta, lentamente enterrando aquela família.
Subi a montanha sem dificuldade e, com o GPS indicando, desci em linha reta para o oeste, seguindo em direção à casa de sapê que havia visualizado de cima. O sol se punha à minha frente, os raios de luz tangenciando as copas das árvores e criando sombras. Sapos já coaxavam, corujas crocitavam em seus galhos, cigarras faziam uma algazarra. A floresta era tudo, menos silenciosa.
Conseguia imaginar aquela família, aquelas crianças: uma semana sem recursos. Uma semana dormindo no chão, ouvindo, assustados, a sinfonia da floresta. Devia haver animais selvagens, lá; lobos, não, mas possivelmente onças, antas, animais grandes e perigosos. Se encontraram aquela casa, deve ter parecido um santo refúgio, um local para se recuperar e esperar. Com uma bússola, poderiam voltar para leste, em direção à montanha; será que não tinham conseguido? Será que alguém estava machucado e por isso não conseguiam avançar?
Quase não havia chovido aquela semana – aliás, aqueles meses. Uma semana sem água, talvez não estivessem mais vivos, mas o barulho dos sapos me dava esperanças de que deveria haver um lago ou um brejo por perto, qualquer coisa que garantisse à família água.
Ou talvez a casa tivesse um poço artesiano, escondido pelas copas das árvores. Seria perfeito. A família poderia ainda estar viva!
A noite apertou; o sol ainda estava lá, no horizonte, mas debaixo das copas das árvores, já não havia mais luz suficiente para enxergar. Eu estava acostumado a trilhas, então, coloquei minha lanterna de cabeça e segui em frente, uma vara servindo de apoio e afastando os galhos, o celular na outra mão, indicando a localização. A casa não estava muito mais longe, algo em torno de dois quilômetros à frente. Parecera muito mais próxima da montanha vista de cima.
Talvez, eles tivessem demorado para encontrar a casa. Talvez no terceiro ou quarto dia. Tínhamos procurado em torno da montanha, um raio de alguns quilômetros, mas não havíamos encontrado nada – nem casa, nem cadáveres, nem mostras de que alguém havia passado por lá.
Não significava muita coisa; a floresta era realmente enorme e, mesmo que eu ficasse por lá, provavelmente meu cadáver já não seria nada além de ossos antes que alguém o encontrasse.
Tentei apertar o passo, mas a escuridão e a mata fechada dificultavam a minha caminhada. Um trajeto que teria feito normalmente com facilidade em questão de vinte, trinta minutos, alongava-se à minha frente e parecia se tornar cada vez mais longo. Uma hora, duas horas; a noite subia, a neblina descia, e o frio já assolava. Meus braços tiritavam, e o barulho das corujas e outros pássaros cujos nomes eu desconhecia arrepiavam minha nuca. Ocasionalmente, um morcego cruzava pela minha frente, indo de árvore em árvore, como se avisasse para que eu não prosseguisse, mas o mapa indicava que não faltava muito. Duzentos metros. Cem metros. Cinquenta.
Quando cheguei ao ponto indicado, não encontrei; a casa não estava lá. Mas, seria possível? Eu tinha certeza! Tinha visto um telhado! Tinha fotografado, traçado a rota, não estava louco!
Puxei a foto do bolso e observei mais uma vez. Talvez…
Um pouco para o sul. Havia tirado a foto de cima, do helicóptero, e não estava realmente em cima. Uma pequena distância de lá de cima poderia representar uma distância enorme no solo. Para o sudoeste. A casa deveria estar para lá.
Segui adiante, a neblina densa me encharcando, a noite cada vez mais fria. A única coisa que me levava adiante era imaginar aquelas três crianças. Pareciam saudáveis e felizes. Parecia uma família feliz, fazendo uma excursão, um passeio de fim de semana. Será que tinham ido todos porque queriam? Ou será que tinham ido contra a vontade?
Provavelmente, o adolescente mais velho foi contrariado. Adolescentes nunca querem fazer atividades ao ar livre, nunca querem passar tempo com os pais. O mais novo deve ter ido todo empolgado com a aventura. E a do meio, bem… Talvez não soubesse muito bem o que dizer. Talvez ainda estivesse na pilha do mais novo, talvez já estivesse seguindo o mais velho em sua rabugice, mas gostaria de pensar que havia vido por querer. Isso tornaria as coisas mais fáceis.
Podia imaginar o adolescente brigando, falando que tinha avisado. O mais novo com medo. A do meio preocupada de passar a noite ao relento, tremendo de frio. Os cinco abraçados, sem nada para fazer uma fogueira; talvez, um isqueiro, mas a noite no meio da floresta umedecia todos os galhos e, por mais que tivessem juntado folhas secas, não devem ter conseguido acender. Teríamos visto fumaça. Teríamos visto os restos de fogueira.
Decidi parar um pouco; já era quase meia noite, e eu não tinha a menor perspectiva de encontrar a casa. Estava tão embrenhado no mato, que não teria como voltar, ao menos, não antes de o sol nascer. Acendi meu fogareiro e passei rapidamente um café, sentado sobre um tronco quase podre. Podia ouvir os morcegos passando, certamente curiosos com o barulho e o cheiro; podia ouvir as corujas predando os animais pequenos que passavam pelo chão. As cigarras haviam silenciado um pouco, mas os sapos ainda faziam um pouco de barulho; pareciam poucos, mas mais próximos. O rio ou brejo que alimentava a casa devia estar perto.
Foi quando servi o café na caneca e sorvi o primeiro gole que ouvi um grito. Primeiro achei que fosse uma ilusão; que estivesse interpretando errado os barulhos naturais da floresta. Havia muitas aves que faziam barulhos parecidos com pessoas gritando; havia macacos, também, embora não fosse o horário de eles estarem por aí.
Fiquei parado, o mais estático possível, os olhos fechados, as orelhas abertas. Um grito, fraco, mas definitivamente um grito de criança. Uma menina, talvez. À distância, vindo da minha esquerda. Eu precisava ir.
Não me preocupei com o café, nem com o fogareiro; deixei lá. Avancei pela floresta, tentando identificar o som; meu coração se dividia em dois. Uma parte queria que a menina parasse de gritar, parasse de sofrer; a outra dizia que continuasse. Quem quer que a estivesse fazendo gritar, que continuasse, porque, sem isso, nunca a encontraria.
Avancei, e os gritos se tornaram mais próximos, mas, ao mesmo tempo, mais fracos. A menina estava esmorecendo.
Não! Resista, menina, resista! Sem seus gritos, eu nunca vou te encontrar!
De repente, parou. Seria o seu suspiro final? Estaria morta?
Fiquei parado na floresta, sem saber aonde ir; a escuridão era total. Os sons haviam diminuído no geral; parecia que os animais também estavam curiosos com o que estava acontecendo.
Pouco depois, outro grito; desta vez, definitivamente era um homem.
– Não! Não! Por favor, não! – ele gritava, desesperado, e eu ouvia algo semelhante a batidas.
A casa não podia estar longe; os gritos, tudo bem, mas os barulhos que eu ouvia… Não podiam ser tão altos assim. A casa tinha de estar perto! Continuei pela mata, em uma torcida muda para que a vítima resistisse e o algoz continuasse, ao menos tempo suficiente até eu chegar à casa.
Não tenho certeza de quanto tempo continuei procurando pela mata escura, nem por quanto tempo o homem resistiu; porém, depois de um tempo, com um grito de exaustão, os sons cederam, e eu permaneci naquele desespero escuro.
A noite estava ainda mais fechada, e o frio, ainda pior. A neblina era intensa, de uma forma que, mesmo com a lanterna, que já fraquejava, eu mal conseguia ver dois palmos à minha frente. Os animais estavam em silêncio, o que era muito mais aterrorizante; aquela algazarra de antes me lembrava vida. O silêncio sepulcral me lembrava morte.
Aliás, o que o cessar dos gritos queria dizer? Teriam a garota e o homem morrido? Eles estavam realmente naquela casa? E, se estavam… O que eu poderia fazer quando lá chegasse? O que estaria causando tudo aquilo?
Foi quando ouvi mais um grito, desta vez de uma mulher.
– Não, não! Pelo amor de Deus, não! Tudo menos isso, não! – ela gritava, desesperada.
Estavam mais perto, tinha certeza! Comecei a correr pela floresta, mesmo sem conseguir enxergar adequadamente; sentia as folhas crepitando sob meus pés e os galhos se quebrando. Não me importava em fazer barulho; quem quer que estivesse naquela casa, estaria certamente tão entretido que não conseguiria me ouvir.
Plec, plec, plec. Era o som dos meus passos nos galhos, entrecortado somente por vigorosas batidas, sempre acompanhadas de gritos desesperados. Subitamente, os gritos pararam; o som das batidas permaneceu, ritmado somente com a minha respiração, cada vez mais acelerada, e o meu coração, que parecia estourar em meus tímpanos.
Foi quando vi uma iluminação; havia algo no meio da floresta! Alguma luz que não era natural, algo definitivamente humano no meio de todo aquele mato!
Corri ainda mais, a luz da lanterna cada vez mais fraca, os galhos raspando em meu rosto, cortando minha pele e minha roupa, eu sem me importar. Não precisei ir longe: algo em torno de trinta passos, e, da forma como tinha visto de cima, consegui vislumbrar. Uma pequena clareira, em um círculo fechado e apertado de árvores. Era uma casa de madeira, carcomida pelo tempo, com seu telhado de sapê, ladeada por um poço artesiano, como eu bem previra. A iluminação não vinha de luz elétrica, mas de lampiões acesos aqui e ali.
Foi só quando me aproximei o suficiente que percebi. O silêncio. As batidas haviam parado; não havia mais nada dentro da casa. Meu coração ainda voava no peito, e eu tentava controlar minha respiração ofegante, para não chamar a atenção, mas não conseguia.
Estava lá. Aquela era a casa. A família estava lá – e estava sofrendo de alguma forma. O que poderia ser, ou quem estava fazendo aquilo, eu não sabia, mas precisava encontrá-los. Não me preocupei com o que poderia acontecer comigo; só precisava encontrá-los.
Agachei-me, para sair da linha de visão da casa, com a lanterna apagada e o revólver na mão, e segui em frente, o mais lenta e silenciosamente que consegui. Ao fundo, o barulho da brisa remexendo as copas das árvores e uma ou outra coruja crocitando.
Cheguei até a janela da frente e, com todo o cuidado, ergui a cabeça para enxergar o que havia dentro.
O que vi… Meu Deus, o que vi! Por pouco não desmaiei.
Primeiro, sangue, muito sangue. Espalhado por todos os lados.
Havia três camas: uma grande, uma média, uma pequena, como daquele conto de fadas, da cachinhos dourados. Três mesas. Três cadeiras. Três camas. Todas de tamanhos diferentes. Em cada móvel, uma pessoa: na cama maior, quem deveria ser o pai. Estava com os punhos e os tornozelos presos por uma corrente de metal e, nas extremidades da cama, toras de madeira giravam as correntes, puxando e puxando e puxando. Seus braços e suas pernas definitivamente não estavam em posições normais; ele todo parecia esticado demais, como se tivesse sido puxado para caber.
Na cama pequena, uma das crianças, que eu julguei ser a menina; seus cabelos loiros estavam ensopados de sangue. A cama era pequena, pequena demais para ela, mesmo ela sendo a menor de todos, lá – só que ela cabia. Cabia, porque alguém havia cortado suas coxas na metade, os restos dos membros ainda caídos no chão em uma poça de sangue.
Nas cadeiras, o mesmo: a mãe estava na cadeira menor, sendo esticada pelos mesmos apetrechos para caber. O filho mais novo estava na menor, também retalhado para caber adequadamente. O filho do meio, na cadeira do meio, bem… Era um misto. Uma parte estava sendo puxada, enquanto outra fora cortada.
Sobrava agora apenas a cama média.
A luz atrás de mim temeluziu; eu me virei, apontando a arma, mas foi tarde.
Acordei algum tempo depois; minha cabeça ainda ardia de dor. A luz do sol invadia a sala, e a cena inteira se tornou ainda mais aterrorizante. O cheiro de sangue e ferro permeava o ar, misturados com odor corporal, urina, fezes e, talvez, vômito. Era um odor tão horroroso, que por pouco não vomitei eu mesmo.
Tentei mexer meus braços; estavam presos por grilhões. Mexi as pernas; as coxas estavam presas também, mas os tornozelos flutuavam livres no ar. Nas costas, conseguia sentir um lençol duro e um colchão fino, coberto de lona, daqueles de hospital.
Olhei para a minha direita: o homem estava lá, desmaiado ou morto, os membros estranhamente puxados.
Olhei para a esquerda: a menina, desmembrada, certamente morta.
Olhei para meus pés: o resto dos familiares, presos macrabamente em suas cadeiras, as cabeças caídas, provavelmente mortos após uma quantidade imensurável de sofrimento.
De repente, passos. Toc. Toc. Toc. Algo parou por cima da minha cabeça e me olhou; eu não consegui compreender muito bem, até que ele se mexeu, andou um pouco e foi para o meu lado. Toc, Toc. Era um urso.
Bem, não exatamente. Era uma pessoa com uma cabeça de urso, uma reprodução perfeita, quase como se tivesse arrancado a cabeça dele e tomado sua pele, como Hércules e o Leão de Nemeia. E forte ele era, como Hércules, mas com um machado em sua mão direita.
Ele olhou para a minha perna.
– Tsc, tsc.
Os tornozelos flutuando no ar.
– A cama… – ele começou. Sua voz era grossa, quase como um rosnado de urso.
Só podia significar uma coisa.
Ele balançou o machado; eu engoli em seco.
Toc. Toc. Toc. Passos pelo piso de madeira.
O ser apareceu aos meus pés; eu tentei me mexer, me soltar, mas não conseguia. Até meu tórax estava preso por correntes.
– Parece que essa cama é pequena demais para você.
– Me coloque na outra! – respondi, em um momento febril.
– O quê?
– Vou caber na outra cama!
– Quem lhe deu o direito de escolher o que faz na minha casa? – vociferou ele.
Toc. Toc. Toc.
Ele puxou uma das mesas, a pequena, e cuidadosamente a colocou sob meus pés; eles couberam perfeitamente. Seria isso? Seria essa a solução?
– Está servindo, agora! – falei, desesperado.
O urso balançou a cabeça.
– Vou cortar seu pé. Parte por parte, bem devagar. Até chegar ao tamanho correto.
Meu estômago gelou; eu pude sentir meus intestinos se revirando e, naquele momento, senti minha calça se enchendo de fezes. O cheiro empesteou tudo.
O urso grunhiu de uma forma que parecia uma risada de prazer.
Aqueles barulhos… Aquelas batidas… Era isso. Ele fatiando suas vítimas.
– Por quê? – foi tudo o que consegui dizer, com a voz fraca, perdendo as esperanças.
– Porque você… Vocês… Entraram na casa dos ursos. Entraram onde não deviam.
Toc. Toc.
O barulho do machado encostando no chão.
De repente, algo mexendo no meu pé; eu tentei puxar, tentei chutar, mas não conseguia. A sua mão forte segurava meu tornozelo, enquanto a outra cuidadosamente puxava os cadarços do meu tênis, aproveitando aquilo com um prazer quase libidinoso. Ele puxou o tênis; puxou a meia; senti sua mão gelada segurando meu pé. Quando vi o brilho da lâmina, gritei; perdendo todo o meu autocontrole, gritei como aquela família havia gritado.
Desmaiei no que acredito ter sido o terceiro golpe.
Não tenho certeza de quanto tempo depois eu acordei; só sei que estava na cama de um hospital, quente, limpa, sem aqueles odores horrorosos. Carvalho estava do meu lado, como se estivesse esperando aquele momento.
– Finalmente acordou, seu filho da puta – foi o que ele disse. Típico Carvalho.
– O quê… Onde…?
Carvalho suspirou.
– Fiquei preocupado porque não consegui falar com você na sexta. Fiquei com peso na consciência. Quando fui na sua casa no sábado de manhã e não tinha ninguém, resolvi ir procurar. Os bombeiros me mostraram a área que você sobrevoou e a casa.
– Você…
– Desci de corda do helicóptero. Digno do BOPE. Você devia ter visto.
– E o…?
– Papai Urso? Tá preso. Vai ficar na cadeia até alguém arrancar os membros dele, um a um.
– E a… Família?
Carvalho balançou a cabeça.
– Mas, graças a você, seu grande idiota, a gente solucionou o desaparecimento de trinta e três pessoas. Uma pilha de ossos no porão. Trinta e três famílias que poderão dar um enterro digno e um final aos seus entes.
Eu suspirei, olhando para o teto. Não podia acreditar. Aquilo era… Macabro. Inconcebível.
Só faltava uma coisa. Eu sentia a minha perna esquerda… Tinha certeza de que estava lá, mas, ao mesmo tempo, tinha certeza de que aquele maluco havia me acertado com o machado! Eu tinha imaginado?
Tentei me sentar na cama.
– Ei, ei, pera aí, campeão!
– Minha perna, Carvalho! Preciso ver minha perna!
Ele se levantou devagar. Toc. Toc. O mesmo som de passos; eu senti meu estômago revirar. Nunca mais ouviria alguém andando da mesma forma. Ele me ajudou a me sentar e, depois, se postou ao pé da cama, como quem diz: está pronto?
Ele puxou os lençóis. Não havia nada do meio da perna para baixo.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais