Então era natal
– Tá bom, me explica uma coisa – disse Vanusa, aparecendo do nada do meu lado.
Eu estava na academia e quase derrubei o halter que segurava, enquanto fazia o martelo, de frente para o espelho, só para acompanhar meu próprio sofrimento.
(Por sinal, a título de curiosidade: ao contrário de vampiros, que desafiam as leis da física, venusianos têm reflexo no espelho).
Como eu nunca sei se alguém mais além de mim mesmo consegue enxergar a Vanusa, então, eu sempre finjo que estou falando ao telefone, quando ela está em público ao meu lado.
– Por que eu fico me matando fazendo exercício na academia três vezes por semana? – falei ironicamente, prosseguindo com meu lento sofrimento.
– Ah, não, seu bobinho, isso é fácil. Você sofre da doce ilusão de todos os humanos de que pode postergar a morte fazendo atividades físicas, quando, na verdade, o lugar onde você mora, as comidas que você come e a própria sociedade estão te matando lentamente e você vai morrer, queira ou não, fazendo exercício ou não. Mas, tudo bem, ao menos você fica menos feio fortinho. Já vi uma foto sua quando adolescente e, pelo amor de “Deus” – disse ela, fazendo aspas com as mãos.
– Boa, Vanusa, tudo o que eu precisava para continuar com meu exercício – falei, deixando os halteres no chão e caindo em depressão profunda no banco de supino.
– Mas, agora, sério. Eu quero saber uma coisa. Qual é a do Natal?
– Como assim?
– Vocês comemoram o nascimento de um cara que depois foi morto na cruz?
– Não foi um cara qualquer…
– Eu sei, foi um velhinho barrigudo e barbudo que agora volta trazendo presentes.
– Vanusa, você tá misturando as coisas.
– É tudo lenda, qual a diferença se eu misturar?
– Vanusa!
– Tá, o tal do velhinho existiu.
– Vanusa, desse jeito nossos leitores conservadores vão parar de ler a crônica.
– Que desistam! Eu sou uma antropóloga espacial, não posso ter deuses de estimação.
– Vanusa! – exclamei, sem acreditar.
– O que foi? Não, sério, tudo bem, eu sei as histórias, não quero entediar você com elas. A minha dúvida é: qual é a de comprar presentes?
– Ah… É lógico que tem o apelo comercial, mas a ideia é que os três reis magos trouxeram presentes porque Jesus nasceu.
– Exato! Presentes para um bebê que nasceu! Isso eu consigo entender. Agora, presentes aleatórios para pessoas que você mal conhece?
– Não é bem assim…
– Eu vi gente andando no shopping com sacolas para 20, 30, 40 pessoas! Ninguém conhece bem tanta gente!
– É, eu acho que isso foi meio exagerado…
– E as pessoas só pensam em presentes, presentes, festa, peru, champanhe… Mas, pensar na importância do nascimento da pessoa que marcou o início do calendário que vocês usam atualmente, ninguém pensa!
– Mas, vocês não têm nada parecido com isso em Vênus?
– O quê? O nascimento de um cara para marcar o tempo? Desculpa esfarrapada para comprar presente? Faça-me o favor.
Vanusa parecia muito, muito irritada.
– Bom, Van-van, que bom que você não liga – eu falei, pegando meus pesos de novo. – Eu tinha comprado um presente para você, mas, então, vou devolver.
Ela sorriu de ponta a ponta.
– Você comprou um presente pra mim? Sério?
– Sim, mas, como você não liga… – falei, puxando os halteres de novo.
– Ai, eu não acredito! Meu primeiro presente de Natal! Quando que eu posso pegar?
– Ahm… Algum dia, passa lá em casa. Pode ser?
– Sim! – exclamou ela, empolgadíssima, e desapareceu.
Tudo isso era ciúmes, é? Puxa vida. Venusianos são muito… Intensos.
– Ah, e pode continuar fazendo exercícios, é a sua única chance de morrer mais tarde – ela falou, aparecendo só com a cabeça. – Eu só estava irritada antes. Você vai morrer bem velhinho e bombado.
E sumiu.
Eu balancei a cabeça.
Só precisava comprar um presente de Natal para ela no caminho de casa.
É cada uma em que eu me meto…

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais