O Caso da Roleta-Russa à Brasileira
Estávamos em uma reunião de equipe na delegacia, naquele dia pela manhã. Roberto iria apresentar o que tínhamos juntado até então do caso que intitulamos “Roleta Russa”. Roberto era o policial mais antigo da minha equipe. Tínhamos começado nosso trabalho juntos; ele era negro, na época portava um bigode grosso e já era casado e com filhos. Por minha vez, eu ainda estava tentando.
– Muito bem – falou ele, acertando um projetor de power point. – A polícia militar foi a primeira a chegar ao local. A história é que, depois de uma festa com muita bebida e uma arma envolvida, uma mulher foi morta. Esta aqui, especificamente. Jaqueline Ramos, 37 anos, esteticista. Um tiro na têmpora, a queima-roupa, de uma espingarda de caça.
– Caraca, não sobrou nada mesmo, ehm – comentou Jonas, que nunca conseguia se segurar em seus comentários sarcásticos. Jonas era um ruivo magrelo que tinha acabado de começar na equipe. Ele era muito bom com computadores e, mal sabia eu, seria tão importante para nossa equipe que valia cada um dos seus comentários reprováveis.
Roberto revirou os olhos, mas prosseguiu.
– Quem disparou foi este. Juscelino Oliveira, 53 anos. O dono da festa e CEO da empresa DCO construções. Uma empreiteira que trabalha para o governo, teve uns contratos importantes no governo FHC e deslanchou agora no governo Lula.
O slide mostrou a foto de um homem de terno risca de giz, cabelos grisalhos e barba aparada, com óculos de aros finos.
– Risca de giz saiu de moda faz tempo.
– O depoimento que ele nos deu – prosseguiu Roberto, pegando uma papelada – é de que, depois de beberem bastante na festa, alguém sugeriu uma brincadeira de roleta-russa. Juscelino é um colecionador de armas, e um dos participantes escolheu a arma, ele não sabe dizer quem. Ele se certificou de que a espingarda estava sem balas, e a brincadeira, por mais idiota que fosse, seguiu por um bom tempo sem que ninguém se machucasse.
– Ok, mas eu não estou entendendo uma coisa. Por que a esteticista estava nessa festa? E de que foi essa festa?
Quem perguntou isso foi Daniel. Ele era um cara jovem, mais jovem que eu, muito dedicado ao trabalho e também constituindo família. Era bastante religioso, o que fazia um excelente contraponto a Jonas. Era ponta firme, com quem eu poderia contar para qualquer trabalho.
– Festa de aniversário do J.O. Ele chamou só o crème de la crème.
– E a esteticista era o quê? Amante? – tentou Jonas.
– Esposa de um funcionário dele. Na verdade, o seu braço direito, o cara que respondia na ausência do CEO. Augusto Ramos, 42 anos, formado em engenharia e economia.
E lá veio a foto de mais um engravatado, só que de cabelos escuros, sem barba e sem óculos.
– Ok. Mais alguém estava nesta festa?
– Alguns outros funcionários da empresa, a esposa de Juscelino, alguns amigos próximos. Perto da meia-noite, já claramente bêbada, segundo relatos, Jaqueline falou que se sentia “excitada” quando apontavam uma arma para a sua cabeça, entregou a espingarda para J.O. e falou para ele atirar. O final, já sabemos.
Eu parei e encarei a equipe.
– Temos alguns mistérios aqui. A principal pergunta é: se a espingarda não estava carregada, quem foi que carregou? E por quê? Teria algum motivo para fazer pensar que Juscelino queria Jaqueline morta?
– Jaqueline poderia ser amante dele – disse Jonas. – Achei muito estranha essa história de apontar a arma excitar. Se bem que, eu tive uma peguete uns anos atrás…
– Não encontramos nada entre os dois – disse Daniel, cortando-o antes que entrasse em detalhes ainda mais desnecessário. – Primeira vez que se encontraram, na realidade. Ao menos, é o que dizem.
Encarei o slide, pensativo.
– Os cartuchos da bala… Conseguiram algo? – perguntei.
– Papiloscopistas estão avaliando – disse Roberto. – Mas, por enquanto, nada.
– E a cartucheira?
– Ficava em uma gaveta, no escritório, onde ele guardava as armas, na verdade.
– Quem sabia disso?
– Todo mundo. Ele mostrou para todos os convidados a sua coleção de armas e onde mantinha as munições.
– A princípio, então, qualquer um poderia ser culpado. Qualquer um da festa.
– Sim. Mas fica relativamente restrito, porque, a não ser que o nosso assassino quisesse fazer uma roleta russa de pessoas, contando com qualquer um assassinado, só posso pensar que foi relativamente premeditado.
– Como assim?
– Acho que J.O. falou para todo mundo para aumentar as suspeitas, mas guardou as balas no bolso, esperando o momento certo de alvejar Jaqueline.
– Ok, faz sentido – respondi. – Mas, novamente, não temos por que imaginar que eles tivessem algum relacionamento ou qualquer coisa parecida. Qual seria o motivo do assassinato?
Olhei para os slides mais uma vez.
– Os papiloscopistas coletaram impressões da mesa e da cartucheira?
Roberto procurou na papelada.
– Acredito que não.
– Daniel – falei. – Preciso que você vá lá coletar as impressões digitais. Jonas, você vai voltar à empresa e mostrar uma foto de Jaqueline. Perguntar se alguém já viu essa mulher lá.
– Certo – os dois responderam.
Um dia depois, nós nos reunimos novamente, para atualizar a nossa investigação.
– Passei um pente fino na empresa – falou Jonas, que começou a reunião. – Ninguém conhecia a Jaqueline, só o marido dela, Augusto. Parece que era realmente um funcionário exemplar, e estava cotado para ser o novo CEO.
– Isso torna o motivo menos provável – eu falei.
– Exceto por uma coisa. Fui falar com o Augusto.
– Como ele estava?
– Menos arrasado do que eu esperaria para uma pessoa que acabou de perder a esposa. Já tinha resolvido as coisas do funeral e disse que pretendia ficar fora uns dias, para processar tudo.
– É possível – disse Roberto.
– Pois é, mas eu não esperaria que a pessoa levasse sunga em uma viagem de luto – disse Jonas. – Que foi? O cara tava arrumando a mala na hora que eu cheguei. Aliás, sunga branca… Eita coisa cafona.
– Tá bom, Jonas, e daí? Você vai chegar em algum lugar ou não?
– Bom, o fato é que eu insisti um pouco e, não sem fazer um pouco de doce, o cara acabou se abrindo. Ele falou que achava que a esposa tinha um caso, sim, com o chefe dele.
– Opa!
– Ele tinha alguma prova? – questionei.
– Não. Ele só achava.
– Não é o suficiente para provar nada – falei.
– Talvez não – disse Daniel, finalmente. – Mas talvez corrobore para o motivo.
– Acha que ele estava querendo eliminar a prova do crime? – disse Roberto. – Não queria que a esposa descobrisse?
– Na verdade, eu acho que o marido que queria vingança.
– Como é? – questionamos em uníssono.
Ele puxou uma pasta com relatórios dos papiloscopistas: as capturas dos cartuchos eram parciais, mas eram suficiente para ligar as balas a Augusto.
– Digitais bateram. Sabemos agora quem colocou as balas na espingarda.
– Augusto carregou, J.O. puxou o gatilho – Roberto falou. – Mais um pouco e temos uma quadrilha.
– Isso não está me cheirando bem…
– O que foi, chefe? Temos um marido corno que encontrou a oportunidade perfeita de se vingar da esposa…
– Eu sei, mas…
– Um marido corno que está de malas prontas para sair da cidade – adicionou Roberto. – Não podemos deixar ele fugir.
Suspirei.
– Ok, Jonas, Daniel, efetuem a prisão. Vou cuidar da burocracia.
– Sim, senhor!
Poucas horas depois, Augusto estava em uma mesa de interrogatório, do outro lado de um vidro espelhado e blindado, exatamente como nos filmes. Roberto estava conversando com ele, enquanto eu e Daniel olhávamos.
– Ainda não faz muito sentido.
– O que foi, mestre?
– Estou tentando reconstituir o crime. Augusto volta ao escritório depois do tour, abre a gaveta e pega a cartucheira. Pega as balas da cartucheira, guarda no bolso, fica esperando o momento correto. No meio da festa, consegue pegar a espingarda e carregar. A espingarda volta para as mãos de Juscelino, coincidentemente na hora em que Jaqueline decide que seria interessante se apontassem a arma para ela… E tudo isso porque ele descobriu que ela estava traindo?
– As coisas do coração são difíceis de explicar.
Roberto saiu do interrogatório com as mãos abanando.
– Não quer falar absolutamente nada, ainda mais sem advogado. O cara é esperto.
Suspirei.
– Não fique assim, Dias, um dos dois vai falar.
Jonas entrou pouco depois.
– Senhores… Como dizem por aí, a galhada dói menos se for compartilhada.
Ele sempre me surpreendia com as suas frases de defeito. Quero dizer, efeito.
– O que você quer dizer, Jonas?
– Achei por bem dar uma checada na vida desse cara – ele falou. – Augusto entrou no Facebook tem mais ou menos um ano. Postou algumas fotos. Nada muito notável, coisas de trabalho e etc, mas tinha alguém que estava lá, consistentemente curtindo as suas fotos… E não era a sua esposa.
Ele abriu a tela do notebook para mostrar a imagem de uma moça morena de biquíni.
– Conheçam Claudia de Araújo. Vinte e sete anos, sagitariana, solteira, procurando uma aventura.
– Isso é um classificado ou o quê?
– O que falar dela, que nem conheço direito, mas já considero pacas?
Ficamos todos sem entender.
– Ah, saudades da época em que todo mundo curtia um testimonial no Orkut… Enfim. Fui caçar o Facebook desta moça aqui, e vejam só o que encontrei…
Era uma foto de Augusto, de sunga branca, ao lado dela, de biquíni também branco, em uma lancha em Angra dos Reis. Ele passava a mão pela suas costas, enquanto ela parecia próxima demais para ser uma mera conhecida. A foto datava do mês de outubro do ano anterior.
– Ok, então, o marido traidor descobre que também é traído e decide se livrar da esposa? – tentou Roberto.
– Mais um reforçador do motivo – disse Daniel. – Queria se livrar da atual para ficar com a amante.
– Ok. Roberto, volte lá com ele – falei. – Fale da Claudia e veja o que consegue.
– Certo!
Roberto retornou pouco depois.
– Deu para ver pela cara dele que ficou surpreso com a descoberta – ele falou. – Mas continuou sem falar nada. Temos alguma informação sobre o paradeiro dela?
– Acabou de fazer check-in no Foursquare em uma padaria de Higienópolis.
Nunca pensei que chegaria o dia em que eu iria agradecer às redes sociais por facilitarem minhas investigações.
Eu olhei para o mapa.
– Não é longe daqui – falei. – Vamos torcer para ela estar roubando o Wi-Fi e ficar um tempinho lá.
Chegamos à padaria e a encontramos sentada a uma mesa, com o notebook aberto e tomando um café. Estávamos certos! Bons tempos em que a internet móvel não era tão móvel, e ainda dependíamos de parar em algum lugar para usar o computador.
– Senhora Cláudia de Araújo?
Ela olhou para mim e depois para Roberto, surpresa.
– S-sim?
– Investigador Dias, investigador Moreto. Somos da polícia civil de São Paulo. Podemos conversar com você um pouquinho?
– O quê? Eu… Ahm… Sim. Em que… Em que posso ajudar?
Mostramos uma foto de Augusto.
– Reconhece esse homem?
Ela arregalou os olhos, mas hesitou em falar.
– Talvez isso refresque sua memória – falou Roberto, mostrando a foto de ambos na lancha.
Ela desabou.
Retornamos pouco depois à delegacia para encontrar Daniel e Jonas bastante ansiosos.
– E aí?
– Os dois estão em um relacionamento há aproximadamente 8 meses. Ela não sabia que Augusto era casado, ele nunca falou. Se conheceram quando ele estava em uma viagem a trabalho, acabaram se encontrando algumas vezes desde então. Ele passou a noite na casa dela uma ou outra vez.
– Ela tem algum álibi? – questionou Jonas.
– Ainda não entendo por que ela estaria na festa – falou Daniel.
– Ela estava de plantão nesse dia – falou Roberto. – Enfermeira. Tem os registros e tudo mais.
– Isso não impede que tenha ajudado a arquitetar o plano – comentou Jonas.
De repente, Daniel se ergueu da mesa, surpreso.
– Vocês vão querer ver isso.
Ele mostrou o relatório da papiloscopia; nada mais fazia sentido.
– O que raios isso quer dizer? – questionou Jonas.
– Quer dizer que estamos mais perdidos que cego em tiroteio.
Os resultados da papiloscopia eram bem claros: havia basicamente dois padrões de digitais diferentes na cartucheira e na mesa. Um era compatível com Juscelino, como esperado. O outro, porém, não batia com as digitais de Augusto.
Eram as digitais de Jaqueline.
Tentamos reconstituir o crime mais uma vez.
– Juscelino faz um tour pela casa, mostra a sala de armas, talvez abra a gaveta e mostre o cartucho, talvez só aponte para a gaveta. Tudo isso pode ser só uma encenação para o seu ato final. Em algum momento depois, provavelmente dizendo que vai ao banheiro, Jaqueline volta ao escritório, abre a gaveta e pega a cartucheira. Só que ela não pega o cartucho, já que a única digital presente no cartucho é de Augusto – falei.
– E a arma?
– Tem digital de todo mundo – disse Daniel. – Todo mundo pegou nessa arma em algum momento da festa.
– Com o cartucho em mãos, Augusto coloca a bala na arma e a entrega de volta para Juscelino. Seria este o plano? Augusto queria que Juscelino pegasse a arma e atirasse na esposa? Uma forma de se vingar de ambos ao mesmo tempo? – conjecturei.
– Ou de repente a esposa estava junto nisso – tentou Roberto. – E o tiro saiu pela culatra.
– Junto como?
– Queria se vingar do amante por algum motivo? Talvez seu plano fosse para que Juscelino atirasse em Augusto. Iria se livrar do marido traidor e do próprio amante ao mesmo tempo.
– Isso não faz sentido! – exclamou Daniel.
– Nada faz sentido – disse Jonas.
– Não vamos esquecer que Jaqueline foi quem pediu para que Juscelino apontasse a arma para ela. Se ela tinha ajudado o marido a pegar as balas… Ela sabia que a arma estava carregada.
– Ou não – rebateu Roberto. – O plano poderia ser outro, e Augusto mudou de ideia e resolveu se livrar da esposa. Talvez, ele tivesse combinado com ela de provar que a arma não estava carregada, para, depois, pegar a arma carregada de verdade e atirar no Juscelino.
– É uma possibilidade – eu falei. – Mas, por que ele faria isso?
– Porque o Juscelino estava comendo a esposa dele! – exclamou Jonas.
– Só que em que mundo Augusto achou que ia sair ileso dessa? E por que ele pediria ajuda da esposa para isso? Não era mais fácil ele mesmo pegar os cartuchos?
Continuamos nessa discussão infrutífera por algo em torno de uma hora, até que, com a cabeça fervendo, dei o dia por encerrado.
– Preciso de ajuda – falei. – Vou falar com uma pessoa. Uma amiga minha. Acho que uma pessoa vendo a situação de fora vai conseguir entender melhor do que a gente.
Isabella Angier era uma patologista brilhante que trabalhava em vários lugares. Um deles era o Instituto Médico Legal, lá na frente do Hospital das Clínicas. No dia em que a conheci, ela estava testando quebrar o pescoço de um dos cadáveres, o que me pareceu uma das coisas mais esquisitas do mundo. Depois, compreendi que isso fazia parte de uma investigação e, de fato, ela conseguiu descobrir o culpado a partir disso. Mas, não quero dar spoiler; isso tudo está descrito em “A primeira aventura”.
O importante é saber que aquele caso tinha me causado uma impressão incrível desta patologista, que tinha a minha idade, mas era infinitamente mais competente do que eu. Assim, quando me via perdido em algum caso, eu ia em busca de seu auxílio, e ao longo dos anos, aliás, décadas em que trabalhamos juntos, ela nunca me deixou na mão.
Eu a encontrei quando estava quase para sair do plantão no IML.
– Oi, Isa – falei. – Tem um tempinho?
– Claro, André – ela falou. – Você sempre tem uns casos interessantes!
Isabella tinha os cabelos pretos, lisos e longos e os olhos castanhos e amendoados. Não consigo evitar de dizer que sempre a achei linda, além de inteligente. Areia demais para meu caminhãozinho, antes que você pense qualquer coisa.
Mostrei para ela tudo o que sabia daquele misterioso caso da Roleta Russa.
– Estou chegando à conclusão de que eu posso muito bem fazer uma roleta russa com o culpado – falei. – Não faço ideia de quem foi o verdadeiro assassino!
– Ora, o assassino, é bastante claro, foi o Juscelino. Disso, não resta dúvida. Agora, por quem ele foi transformado em assassino é que nos resta descobrir. Mas, vou dizer, não me restam muitas dúvidas. É bem óbvio, aliás.
– Como é? Não é possível, Isa!
– Ah, é, sim. Só tem uma possibilidade de tudo isso se encaixar, mas…
Ela se levantou e foi ao computador, onde digitou e procurou por um relatório. Lá estavam as fotos da falecida, com os cortes característicos da autópsia.
– Uhm… Tem algo bem interessante aqui.
– O quê?
– Cada vez as coisas fazem mais sentido.
Ela parou de mexer no computador e me olhou.
– Vocês ainda fazem aquela reunião todo dia de manhã?
– Sim – falei.
– Dou aula amanhã às oito, mas acho que consigo dar uma passada lá antes. Digamos, seis e meia? Aliás, sete horas. Não vai demorar muito, é tudo bem elementar, meu caro Dias.
– Como assim, Isa?
Ela pegou a bolsa.
– Vou dar uma passada em outro lugar e devo ter minhas respostas. Amanhã, nós nos encontramos na delegacia.
Assim, ela saiu do salão de autópsias e me deixou lá, olhando para a imagem da mulher autopsiada. O que, afinal, ela tinha visto naquela imagem, que havia corroborado para a sua hipótese, fosse qual fosse? Eu mesmo não conseguia ver absolutamente nada!
Passei o resto da noite pensativo; como era possível que Isabella tivesse conseguido decifrar o enigma com tanta facilidade?
No dia seguinte, acordei mais cedo do que de costume. Dei um beijo em minha esposa, que ainda dormia a sono profundo, e peguei a condução para o serviço. Cheguei à delegacia às seis horas da manhã e já estava na minha terceira caneca de café, quando Isabella chegou.
– Ah, que bom que estão todos aqui – ela disse. – Assim, só preciso explicar uma vez.
Todos a encaramos com curiosidade; a sala era bastante estreita, de forma que nós quatro ficamos nos fundos, acotovelando-nos, enquanto Isabella apresentava como se fosse uma professora.
– A resposta me pareceu bastante óbvia desde o começo – ela disse. – Temos um caso de Roleta Russa viciada, ou seja: a pessoa sabia quem seria baleado. Afinal de contas, a não ser que você coloque balas falsas em uma espingarda, não tem como brincar de roleta russa com ela. Toda a brincadeira começou justamente por causa disso; era uma roleta muito segura. Uma roleta russa à brasileira. Só que, em determinado momento, alguém carregou a arma. Vamos aos fatos.
Ela apresentou um esquema com a foto da mulher assassinada e algumas setas.
– Temos Jaqueline, assassinada por Juscelino. Juscelino é o chefe de Augusto, marido de Jaqueline. Sabemos que Jaqueline aparentemente tinha um caso com Juscelino; eu digo aparentemente, porque não temos absolutamente nenhuma prova cabal, apenas a palavra de Augusto a respeito disso, contra a dos funcionários que nunca a viram na empresa nem perto do chefe. No entanto, considerando que Augusto foi suspeito de ser responsável pelo assassinato, não faria sentido ele falar algo que poderia torná-lo culpado, certo? Então, vocês partiram do pressuposto de que era real. Por outro lado, temos o relacionamento de Augusto e Cláudia, do qual temos provas pela confissão dela e pelas fotos. Só que a trama não para por aí; na verdade, Augusto e Juscelino estavam competindo por um cargo na empresa. Alguns meses atrás, Juscelino ganhou e virou CEO da empresa, o que daria, a princípio, dois motivos para o assassinato: primeiro, livrar-se da esposa infiel; segundo, culpar o chefe e, assim, assumir o seu posto.
As coisas estavam se encaixando; tudo apontava para o fato de que Juscelino havia sido o culpado, mas o verdadeiro arquiteto do plano era Augusto! Tinham feito bem em prendê-lo antes de fugir da cidade!
– Só que as digitais falam coisas diferentes. Sim, foi o Augusto quem pegou as balas, mas quem foi que abriu a gaveta e pegou a cartucheira? Jaqueline. Aí, as coisas param de fazer sentido. Pois bem, eu lhes apresento os verdadeiros culpados!
Ela avançou a tela para uma imagem.
Nós três ficamos parados, sem saber o que dizer. Em minha mente, as engrenagens tentavam se mover, mas era como se faltasse uma peça, uma peça essencial para que tudo começasse a funcionar.
Jonas foi o primeiro a quebrar o silêncio.
– Se quer me foder, pelo menos me paga o jantar!
– Jonas! – exclamamos os três.
– Que foi? Não tô entendendo merda nenhuma! E duvido que alguém aí esteja entendendo mais que eu!
Não era mentira.
– Por que raios… Eles… Iam arquitetar um negócio desses? Não faz o menor sentido! – ele exclamou.
– Isa… Explica pra gente, por favor.
– Bem, eu estava com essa hipótese na cabeça, porque era para onde a lógica toda apontava. Pensei em várias possibilidades, mas não era possível implantar digitais de outras pessoas. Foi quando vi o relatório de autópsia, e tudo fez sentido. Quando você exclui todas as outras possibilidades, o que resta é a correta, já diria Ipepo Quieda.
Nós a encaramos sem saber do que estava falando.
– E vocês se dizem policiais? Tá, tudo bem. Enfim. O relatório da autópsia era bastante conclusivo. Um tiro à queima-roupa, na têmpora direita. Foi uma morte cerebral direta, sem sombra de dúvida.
– E como isso pode explicar alguma coisa? – questionou Jonas, que não conseguia se conter.
– É o que o relatório não fala que me chamou a atenção. Vejam esta foto. Tem algo que chame a atenção de vocês?
Ela projetou a imagem do corpo autopsiado da mulher. Não havia nada em particular que chamasse tanto a atenção.
– Observem a mama esquerda.
Ela ampliou a imagem; era possível ver alguma alteração na mama, mas eu não sou médico, então, não tinha como dizer nada.
– É natural?
– Jonas!
– O que foi?
Isabella revirou os olhos.
– Parece ter um tumor – disse Daniel, por fim.
– Exatamente. Vejam esta massa aqui – ela falou, apontando para um ponto na mama onde era possível ver um calombo. – É um tumor bem grande. Isso me chamou a atenção, e eu fui buscar informações no prontuário dela. Não tem muitos lugares que fazem tratamento de câncer de mama no Brasil, e o ICESP é um dos principais deles. Consegui encontrar a ficha dela e… Voilà. Estava em tratamento de câncer de mama em estágio terminal. Um câncer muito avançado, que descobriu tarde.
Ficamos em silêncio por alguns instantes.
– Isso ainda não explica tudo – comentou Jonas.
– Você está sugerindo que a roleta russa foi um suicídio? – questionou Roberto.
– Sim – Isabella respondeu.
– Mas ela foi auxiliada pelo marido, não?
– Exatamente.
– E como ele concordou com isso? O que ele tinha a ganhar?
– A oportunidade de se vingar da pessoa que lhe passou a perna, tomando o seu cargo de CEO. Veja, era um plano perfeito: todos bêbados na casa do chefe. Eles pegam a arma, que acidentalmente dispara. Uma pessoa que já não tinha intenção de viver morre; o culpado, mesmo que acidental, se não for preso é no mínimo afastado de suas funções de CEO; e o marido ganha o cargo que almejava. Simples assim. Apesar de tanta premeditação, eles foram inocentes quando pensaram que não avaliaríamos as digitais, ou que não faríamos as conexões.
– E a amante? – questionei eu.
– Não sei se Jaqueline sabia desta amante ou não. É possível que soubesse e fosse um motivo a mais para não desejar viver; mas também é possível que ela tivesse pensado nas digitais e justamente por isso tenha feito o marido pegar os cartuchos. Iria incriminá-lo, também, como um ato de vingança antes de morrer. De qualquer forma, não temos dúvidas quanto a quem prender, ou vocês ainda têm?
Ficamos estáticos, hipnotizados, encarando-a; ela olhou para o celular.
– Muito bem, dentro do tempo esperado. Vou para a faculdade. Bom trabalho, meninos – ela disse, saindo da sala.
– Ok, os dois já estão presos, e não dá para a gente prender um cadáver – falei. – Bora tocar a burocracia do processo.
E assim foi solucionado o misterioso caso da Roleta-Russa à brasileira.
Ah, caso esteja curioso, não, Jaqueline e Juscelino não tinham um caso. Augusto inventou isso só para tentar incriminar mais o chefe. Mas Augusto estava, de fato, traindo a esposa, desde que descobriu que seu prognóstico era sombrio.
E, se quiser uma dica, fique longe de roletas-russas. Aliás, de roletas em geral.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais