O Macabro Caso do Conde Drácula
É minha intenção sempre de relatar as aventuras de Isabella Angier da forma mais real possível. No entanto, eu fico sempre limitado pelo tanto que minhas observações dos fatos me permitem exprimir. Eu acredito que Isabella teria provavelmente alguma anedota interessante ou analogia com Descartes e o seu cérebro no pote ou algo que o valha sobre este assunto, mas, como ela se recusa a narrar as próprias aventuras, a não ser que ela fale isso diretamente para mim, eu não tenho como relatar a vocês, caros leitores.
De qualquer forma, este preâmbulo todo é somente para dizer que, se escrevo as aventuras em primeira pessoa, é porque quero parecer o mais realista possível. Se colocasse tudo em terceira pessoa, passaria por um narrador onisciente, coisa que estou muito longe de ser. Por outro lado, tomei a liberdade de relatar algumas ações de Isabella em terceira pessoa, ou seja, sem minha participação direta dos fatos e, se o faço, é porque transcrevo exatamente como ela me contou dos acontecidos. Garanto que é tudo verídico, pois ela passa um pente fino em todas as minhas histórias, corrigindo as falas que foram transcritas de forma inadequada e sempre reclamando das minhas exaltações à sua inteligência e genialidade (as quais eu sempre mantenho, queira ela ou não).
Pois bem, dito isso, partamos ao macabro caso do Conde Drácula.
Há alguns meses, Isabella foi requisitada por uma colega sua de trabalho para avaliar um caso. Como vocês sabem, ela é uma excelente patologista, mas não fica restrita somente ao trabalho de médica legista; ela também avalia peças que são enviadas para avaliação após cirurgias e procedimentos afins. Neste dia, uma colega sua da pediatria, mais especificamente da hematologia pediátrica, a especialidade que cuida das doenças do sangue, encontrou-a na sala da patologia do hospital onde ela trabalhava no momento, pedindo-lhe ajuda.
– Isa, estou com um caso complicado na enfermaria – ela falou.
Ela abriu no computador o prontuário do paciente e pegou um estojo de lâminas com amostras de sangue.
– Esta criança de sete anos de idade. Ela tem uma anemia inexplicável – ela falou. – Já internou aqui algumas vezes, desde os cinco anos. Precisou tomar ferro em algumas delas, e, desta vez, precisou até mesmo de transfusão de sangue. Seus exames não trazem nada de significativo. A gente já…
– Espere. Não me conte. Deixe-me ver o que tem do primeiro atendimento. Não quero ideias preconcebidas.
A Dra. Ana, hematologista, mostrou-lhe os detalhes do primeiro atendimento e os exames de sangue.
– Uma anemia com anisocitose. Estoques de ferro algo depletados… Ela deve ter perdido sangue e está recuperando, mas, talvez, a dieta não seja boa o suficiente. Está bem. O que mais temos?
Ana seguiu apresentando exames e dados, e eu consigo imaginar Isabella franzindo a testa conforme avaliava cada um deles.
– Biópsia de medula óssea… Pesquisa de anemia falciforme… Pesquisa de sangue oculto nas fezes, sangramento intestinal, tudo o que você pode imaginar… Negativo – ela falou, depositando os resultados diante da mesa. – Trouxe até as lâminas para você revisar.
Ela pegou as lâminas contendo as amostras de sangue e cuidadosamente as colocou no microscópio, para ver com atenção.
– Nada de diferente. As hemácias estão perfeitas. Pesquisaram infecções?
– Sim. Painel viral totalmente negativo. Nenhuma bactéria ou parasita que conheçamos. A criança simplesmente faz uma anemia por perda sem perder absolutamente nada.
– Esse sangue não pode estar simplesmente evaporando – Isabella falou. – Ela está internada?
– Sim.
– Acho que está na hora de passar uma visita em um paciente vivo.
A maior parte das pessoas acha o andar da pediatria o mais desesperador de todo o hospital. Muitos ficam com dó das crianças internadas, com doenças dilacerantes, dores de partir o coração, sem expectativa de melhora. Vidas tão curtas balançando como a frágil chama de uma vela diante da janela. Isabella me ensinou, porém, que não é bem assim: as crianças são muito mais fortes do que uma simples vela. Mesmo diante de tão grandes adversidades, o andar da pediatria é um andar de felicidade; doenças que deixariam qualquer adulto deprimido e sem vontade de lutar se apresentam de forma diferente nas crianças, que encaram tudo com muito mais força – e muito mais serenidade.
Talvez seja essa a palavra. A pediatria é um andar sereno, na grande maioria dos casos.
E com a paciente Mel não seria diferente. Ela era negra, de estatura esperada para a idade, os cabelos grandes e cacheados presos para cima com laços. Como Isabella me descreveu, estava um pouco emagrecida e pálida, com o acesso no seu antebraço recebendo soro após a transfusão.
– Oi, Mel, oi, Angela – disse Ana. – Eu trouxe uma amiga para falar com vocês.
– Oi, Mel – disse Isabella. – Cansada de ficar por aqui?
Ao contrário do que você imagina, não foi com uma voz super doce ou fofinha. Isabella foi carinhosa, claro, mas tratou a criança como sempre acreditou que todas as crianças deveriam ser tratadas: como seres curiosos, pensantes, e que odeiam que se fale com elas no diminutivo.
A menina concordou com a cabeça.
Isabella lançou um olhar para os seus braços e, na sequência, disse:
– Cansada de ficarem furando seus braços, é?
– É muito chato – ela falou.
– Isso é uma coisa que deveria ser só no hospital, mas, de vez em quando, precisa fazer em casa, não é?
– É, sim.
A mãe logo ao lado deu um salto.
– Mel! Do que você tá falando? Você só toma soro no hospital!
A menina concordou com a cabeça; no quarto, ficou um clima tenso, que a doutora Ana tentou dispersar.
– Me diz, o que você vai querer comer quando tiver alta daqui, ehm, querida? – perguntou. – Aposto que um McLanche Feliz, não?
– Eu quero! – a menina falou, com os olhos brilhando.
Isabella saiu do quarto sem falar mais nada, e Ana foi logo atrás, despedindo-se e desculpando-se. Quando saiu no corredor, Isabella já estava caminhando resoluta ao posto de enfermagem.
– Quem tentou pegar o acesso da paciente Mel? – ela questionou para a enfermeira no posto.
Uma auxiliar se prontificou.
– Tentei do lado direito – ela falou. – A mãe disse que era a melhor veia, mas não estava boa, não. Acabei indo para a esquerda.
– Ela falou para ir justamente nesse lado?
– Sim.
– Isa! – falou Ana, exasperada. – O que foi aquilo?
– Aquilo foi… Aliás, aquilo é… Münchausen.
– Isa! Essa é uma acusação séria!
– Mas acho que não é só isso – ela continuou. – Preciso investigar mais.
– Você acha que…
– Mantenha a Mel internada o máximo de tempo que conseguir. E… Cuidado com essa mãe.
Naquele mesmo dia, quando cheguei em casa, encontrei Isabella sentada ao piano, pensativa. Eu a cumprimentei; sabia que não adiantava falar nada enquanto ela estivesse assim, pondo a cabeça em ordem, então fui ver o que tínhamos para comer e, quando a mesa estava posta, ela pareceu se dar por satisfeita com seus pensamentos e veio se juntar a mim.
– Vou precisar da sua ajuda. E talvez da ajuda do Jonas.
– O que está acontecendo?
– Um caso para o qual uma amiga minha pediu ajuda.
Ela, então, contou-me exatamente o que já lhes transcrevi.
– Münchausen? O que é isso?
– É uma doença baseada no Barão de Münchausen. Daquelas histórias infantis, sabe?
– O cara mentiroso?
– Exatamente. Na verdade, o termo correto seria Münchausen por procuração.
– Você acha que a doença da filha não é verdadeira?
– Quando eu entrei no quarto, vi imediatamente que a Mel tinha alguns hematomas na fossa antecubital direita. Até poderiam ser de acesso, mas não de acesso recente. Eles pareciam ter uma semana, coisa assim. Então, a forma de explicar uma perda de sangue sem que ela realmente perca sangue…
– Você acha que a mãe está fazendo uma sangria ou algo do tipo? Mas, por quê?
– Essa é a coisa do Münchausen. Ela faz a filha ficar doente para receber atenção médica. A vida inteira deles passa a girar em torno disso; eles dependem da atenção médica para eles mesmos.
– Mas, Isa… Eu não entendo onde o Jonas entra nisso. Normalmente, quem cuida desses casos de maus tratos é o conselho tutelar.
– A questão é que a mãe estava com um celular novinho em folha. Um daqueles Iphones que custam mais de dez mil reais.
– Agora tá ficando esquisito.
– Exatamente. Ela tinha as unhas bem cuidadas, o cabelo arrumado demais… Até mesmo a roupa. Muito destoante da filha.
– Tá bom, isso fortalece mais os maus tratos. Talvez possa dizer que é negligência, também, apesar de tudo.
– Eu acho que tem algo mais embaixo disso. Preciso do Jonas para desenterrar tudo o que conseguir sobre ela. Ele precisa descobrir como foi que ela conseguiu esse dinheiro todo.
– Está bem. Vou ver o que ele consegue. Ao menos, tem um nome? Uma foto?
– Tenho todos os dados que ele precisar aqui – ela falou, mostrando-me uma fotografia do prontuário da Mel.
Eu entrei em contato com Jonas naquele dia mesmo, e ele se prontificou a achar tudo o que conseguisse sobre a mãe e a menina. Quando acordei, ele já tinha me enviado um relatório e diversas mensagens de áudio e de texto.
– Chefe – ele dizia na mensagem. – Não encontrei muita coisa online disponível sobre ela. Tem o Instagram da mãe, com uma ou outra foto da filha, mas nada muito completo. Segue poucas pessoas, tem poucos seguidores. Quase nada de informações na rede. Nada nos nossos bancos de dados. Não tenho autorização para fuçar contas bancárias, mas, se quiser, dou um jeito nisso.
– Não sei se vai resolver muita coisa, Jonas – respondi.
Estava para mandar mais uma mensagem, quando Isabella apareceu, saindo do quarto.
– Ué, caiu da cama?
– A Ana me mandou mensagem – ela falou; estava com uma expressão séria. – Mel e a mãe evadiram do hospital no meio da madrugada.
– Isso é definitivamente suspeito.
– Sim. Precisamos fazer alguma coisa, André!
– Ela provavelmente foi para casa – eu falei. – Mas eu não trabalho mais para a polícia, e também não tenho nenhuma denúncia para…
Ela me encarou em reprovação.
– Ah, tá bom. Mas duvido que ela me deixe entrar.
– Eu vou com você.
Partimos pouco depois; foi só o tempo de ela se arrumar, e eu terminar o meu café. Chegamos à casa da família em torno de cinquenta minutos; já eram quase sete horas da manhã, e boa parte dos moradores daquele bairro periférico já havia saído para trabalhar.
Ela morava em uma casa simples, sem acabamento externo, com um portão de ferro para a garagem, na qual não havia nenhum carro no momento, mas havia marcas de óleo. Isabella tocou a campainha, mas ninguém veio para atender.
– Talvez ela tenha saído, ou nem mesmo tenha vindo para cá – falei.
Isabella mexeu no portão; estava aberto. Sequer se deu ao trabalho de inventar uma desculpa e já avançou para dentro da garagem, batendo à porta na sequência.
– Dona Carla – ela falou. – Aqui é a Dra. Isabella. Preciso falar com você sobre a sua filha. Ela pode estar em perigo de morte.
Fiquei surpreso; Isabella estava recorrendo a métodos mais extremos que o usual. Será que ela realmente tinha risco de morte? Deveríamos ter avisado o conselho tutelar? Por outro lado, o que ele teria feito de diferente? Bem, se tivesse seguido o devido processo legal, eu poderia ter notificado o Roberto, e a polícia poderia…
– Dona Carla, o conselho tutelar já foi acionado – ela falou. – Estou com um policial aqui. Se não abrir esta porta, a coisas vão ficar muito piores.
– Isa! – eu murmurei.
Passaram-se alguns instantes, e, por fim, a porta se abriu.
– O que está acontecendo? Você não pode vir aqui falando que vai me prender! – ela exclamou.
– Ninguém disse nada sobre prender – eu respondi.
– Por que vocês saíram do hospital de madrugada, antes de a Mel ter completado o tratamento? – Isabella perguntou.
– Eu vi como você me olhou. Como se eu tivesse fazendo algum mal pra minha filha!
– E você está?
– Não estou!
– Então não tem por que não nos deixar entrar. Precisamos concluir o tratamento dela. Ela não recebeu sangue o suficiente, e, se a gente não descobrir por que ela está sangrando, ela pode realmente morrer.
Ela nos encarou longamente.
– A pena por maus tratos é de 4 anos – eu falei. – Em caso de morte, pode chegar a 12 anos. E negligência, ou seja, negar cuidados, é um tipo de maus tratos.
Sem opção, ela abriu a porta.
Internamente, a casa era muito mais bonita do que o exterior fazia parecer. Parecia estar recentemente reformada, com vários móveis novos, uma televisão muito maior do que a minha própria, um sofá confortável… Fotos da família ficavam em um porta-retratos sobre o móvel da televisão. Mel tinha um pai, com a mesma cor de pele e o mesmo cabelo; provavelmente, era ele quem tinha buscado a família no hospital e depois saído com o carro.
Seria ele o culpado? Poderia estar maltratando a criança de alguma forma? Mas, o que, exatamente? O que ele ganharia com toda aquela história de Münchausen?
– Com o que seu marido trabalha exatamente, Clara?
– Ele é… Mecânico.
– Me parece que ele ganha bem para um mecânico – comentei.
– Não ganha mal, não.
– Curioso um mecânico que deixa vazar óleo do próprio carro, não?
– Não, ele… Ele troca o óleo aqui mesmo.
– Dona Clara – Isabella falou, por fim. – Quem está pagando pelo sangue da sua filha?
Eu arregalei os olhos, encarando-a. Alguém pagando pelo sangue dela? Como? E por quê? Como ela tinha chegado a esta conclusão?
Clara ficou sem fala; como responder a uma acusação daquele tipo?
– Isso é um crime. Comprar o sangue. Bom, vender também, já que estamos falando disso, mas o fato é que, depois da Mel, ele irá atrás de outras crianças. Se é que já não está indo. Se você nos ajudar, podemos impedir que outras crianças passem pelo mesmo sofrimento. E acredito que pode ajudar na sua pena, não é, André?
– Sim, pegar um peixe grande sempre ajuda.
Clara suspirou, fechando a porta que levava para a cozinha, como se para impedir que a filha ouvisse o que ela estava prestes a dizer.
– Ele apareceu aqui um tempo atrás. Acho que um, dois anos. Falou que tinha uma forma de me ajudar a ganhar dinheiro, dinheiro fácil. Tudo o que precisava era tirar o sangue da minha filha, só isso. É claro que eu recusei, no começo, mas… A nossa situação… Estava difícil. A gente precisava de dinheiro. O carro quebrado, o aluguel atrasado, vendendo almoço para pagar o jantar.
– Você tem alguma informação sobre ele?
– Tenho um cartão – ela disse.
Ela cruzou para dentro da casa, pegou uma bolsa e retornou com um cartão em que não havia nada além de um nome e um telefone. Abraão Severiano.
– Consegue descrever esse homem? – questionei.
– Ele é… Ahm… Mais ou menos da tua altura… Magro. Forte. Acho que faz exercício. Cabelo raspado e… Isso.
– Usa barba? Alguma cicatriz, alguma marca característica?
Mas nada. Não sabia se ele realmente não tinha nada digno de nota, ou se a dona Clara era simplesmente uma péssima fisionomista. Aquele nome certamente era falso e, com aquela descrição, não conseguiríamos chegar a lugar algum.
– Como funciona essa coleta de sangue? – Isabella perguntou.
– Ele vem aqui com uma enfermeira. A cada seis meses. A Mel fica sentada, eles pegam a veia do braço direito e, depois de um tempinho, acabou.
– Por que você a levou ao hospital?
– Toda vez ela fica com um pouco de tontura – ela falou. – Mas, dessa vez estava pior. Ela estava com falta de ar, meio, sei lá, confusa, de cabeça vazia. Eu falei pra ele, da última vez, eu… – ela começou a chorar e soluçar. – Eu falei que ia parar. Que era a última vez. Mas ele… Ele… Disse que não. Que ainda não podia. Que vai voltar daqui seis meses e…
– Quando foi a última vez que ele veio? – questionei.
– Tem uma semana, eu acho.
– Que horas?
– De manhã. Sempre de manhã cedo.
– Você sabe dizer a placa do carro? Ou a marca?
– Eu não… Entendo muito de carro. Não reparei.
– E como ele faz o pagamento?
– Dinheiro. Ele traz uma mala… Cheia de dinheiro.
– Você tem a mala? – perguntei, esperançoso.
– Não, ele… Fala para eu esvaziar. E leva de volta.
Sem possibilidades de digitais, então. Com certeza, quem quer que tivesse manuseado as notas não seria ele, e haveria diversas digitais em cada uma delas. Um beco sem saída.
– Como são marcadas essas sessões? – eu tentei.
– Ele me liga, dois dias antes.
– Você tem o número?
– É sempre desse do cartão.
Eu guardei o cartão comigo; era alguma coisa. Poderia coletar digitais e tentar rastrear a linha de telefone, mas o homem certamente era esperto, com certeza era um celular com linha temporária, no nome de algum laranja.
Estava ficando sem muitas opções. Tentamos obter mais algumas informações sobre o homem, mas não conseguimos nada; Isabella já estava ficando impaciente. Por fim, recomendamos que voltasse imediatamente ao hospital, para prosseguir com o tratamento da Mel, mas, francamente, eu não duvidava que ela sumisse dali imediatamente. Deixei meu telefone, para que ela entrasse em contato caso o tal Abraão se manifestasse, mas isso poderia levar meses para acontecer. Até lá, como garantir que ele não estava fazendo a mesma coisa com outras crianças? E com que propósito?
Do lado de fora, encarei os arredores, desanimado.
– Não consigo seguir o dinheiro, não consigo seguir o telefone. Não sei onde encontrar esse cara, Isa.
– Precisamos entender por que ele está pegando o sangue de crianças. Qual é a sua intenção? Como ele escolhe suas vítimas? É algo de especial? Como ele sabia que esta família, especificamente, estava com dificuldades financeiras? Será que ele precisa de algum tipo sanguíneo especial?
Ela parou, encarando a rua à frente.
– O sangue da Mel é O-.
– Certo, e daí?
– É um sangue raro. Poucas pessoas têm, e serve para doar para qualquer um, porque é o que tem menos reação.
– Você acha que ele está comprando o sangue para revender? – ei questionei.
– Seja o que for, ele está ganhando muito dinheiro com isso. Você viu o quanto a mãe dele falou que ele pagava por vez. Mas, o fato de ser um sangue específico suscita algumas coisas. Algumas formas de conseguir; chegar a ele. Ele não iria abordar a família da Mel se não soubesse do seu tipo sanguíneo de antemão, o que significa que…
– Ele tem acesso aos dados!
– Exatamente. Tipo sanguíneo não é uma coisa que geralmente fica nos registros médicos no geral. Ele só vai aparecer se alguém pedir a tipagem, e, normalmente, a tipagem só é feita na maternidade.
– É isso! A maternidade onde a Mel nasceu! – exclamei.
– Precisamos descobrir qual hospital foi. Depois disso, buscar todas as crianças O- que nasceram nos últimos anos. Ele deve ter uma idade de preferência; parece que a doação começou com uns cinco anos de idade. No mesmo lugar onde ele consegue essas informações, ele também consegue os dados onde a família mora. Com isso, ele pode cruzar informações, e só abordar as famílias que têm um perfil socioeconômico ruim.
– Isa! Você é um gênio!
– Se descobrirmos quais são as possíveis vítimas, podemos entrar em contato com as famílias. Alguma delas pode ter mais informações. Mas, mais do que isso… Precisamos descobrir o que ele faz nesse hospital. Como ele consegue esses dados. Qual é o seu cargo?
– Deve ser um médico – eu falei.
– Não necessariamente. Claro, médicos são os que têm acesso mais fácil, mas também pode ser qualquer profissional de saúde, ou até mesmo alguém do administrativo que tenha acesso ao sistema com menos restrições.
– Eu vou descobrir qual maternidade – falei e voltei para a casa da Dona Clara.
Com uma foto da carteirinha de vacinas em mãos, retornei, vitorioso, para encontrar Isabella ainda encucada com a rua.
– O que foi?
– Aquele mercado do outro lado da rua – ela falou. – Tem uma câmera de segurança.
Eu observei a câmera, que apontava para o estacionamento diante do mercado, mas possivelmente abrangia algo mais.
– Acha que pode ter pegado o carro manobrando?
– Só tem um jeito de saber.
Fomos ao mercado, onde tive de usar um pouco de persuasão para conseguir acessar o sistema de monitoramento e o que eles tinham registrado.
– Quarta-feira passada pela manhã – disse o gerente. – Aqui está. Vocês disseram que o carro estacionou aqui, é isso?
– Ele deve estar estacionado ali na frente – eu falei. – Mas possivelmente manobrou por aqui para entrar.
A única forma de estacionar na casa de Clara era entrando pelos portões. Isso significava que o homem tinha ficado parado, esperando-a abrir, o que seria o ideal para pegarmos a placa, ou tinha optado por estacionar na rua. Neste caso, a única forma de identificar o carro seria se conseguíssemos pegá-lo passando e retornando pela mesma rua.
Ele começou a mostrar as imagens; felizmente, a câmera era de boa qualidade e tinha uma grande abertura, pegando bastante da rua e dos veículos que passavam. Por outro lado, a quantidade de carros era enorme! No período de quinze minutos, eu consegui contar mais de duzentos.
– Preciso de uma cópia disso – falei.
Precisei de mais um pouco de persuasão, mas consegui a cópia da HD.
Retornamos pensativos. Jonas já havia feito um trabalho extra e, naquele momento, devia estar ocupado com um caso oficial da agência, assim como Daniel. Eu poderia substituir algum dos dois na vigilância e terceirizar a tarefa tediosa, para não dizer insuportável, de anotar cada uma das placas e tentar descobrir qual era o carro correto.
– Quanto tempo você acha que eles levaria para colher o sangue? – perguntei para Isabella.
– Se a criança estava acostumada… Seria mais rápido. Mas coletar sangue para doação é sempre algo mais demorado do que simplesmente colher exames de sangue. Acho que entre 30 e 60 minutos, considerando que eles teriam que preparar a sala e os aparelhos.
Eu passei a mão pelo queixo, sentindo minha barba crescendo, apesar de a ter feito pela manhã.
– Preciso procurar então um carro que foi e voltou neste intervalo de tempo. Não vai ser fácil.
Por mais que quisesse passar a tarefa tediosa, fiquei preocupado que Jonas ou Daniel não conseguissem realizá-la a contento. Além disso, não estávamos com um caso oficial da minha agência, de forma que não teria de onde tirar dinheiro para pagá-los por ajudar. Assim, achei melhor eu mesmo, no meu tempo livre, trabalhar levantando os dados, o que se mostrou muito mais difícil do que eu imaginava.
Isabella, por sua vez, com sua facilidade de acesso a hospitais e prontuários, teve muito mais facilidade do que eu na sua busca por dados. Em questão de três dias úteis, já tinha uma lista de pacientes que haviam nascido nos últimos sete anos e possuíam sangue daquele tipo específico. Cruzando os dados demográficos, nós chegamos ao número de…
– Duzentas famílias?
– Sim – Isabella falou. – Duzentas famílias em potencial de serem abordadas pelo tal Abraão.
– E alguma ideia de quem ele pode ser? Ou onde exatamente ele pode trabalhar?
– Juntar esse tanto de dados não foi uma tarefa fácil – ela falou. – Eu tive de pedir acesso aos dados do laboratório, e uma boa parte foi feita a mão. Depois disso, o serviço social me ajudou com os dados de endereços e tudo mais.
– Você acha que é um trabalho conjunto entre setores?
– Eu acho que, para um médico ou uma enfermeira conseguir isso, é muito trabalho e chama muito a atenção. Agora, para algum escriturário ou funcionário administrativo…
– Certo! Acho que isso deve facilitar a nossa busca!
– Estamos falando de um hospital que tem em torno de 10.000 funcionários.
– Agora azedou.
– Mesmo que a gente risque da lista médicos, enfermeiros, biomédicos, técnicos e tudo o mais que você quiser, tenho certeza de que temos alguns milhares do administrativo que, com o jeitinho certo, conseguiriam estas informações. Claro, você sempre pode diminuir mais: alguém que trabalhe na obstetrícia; alguém que esteja no mesmo cargo há aproximadamente dez anos; alguém que tenha mais ou menos a sua idade, ou talvez um pouco mais velho, com as características que ela nos descreveu… Mas, ainda assim, sobram vários.
– Precisamos de mais gente…
– Com certeza. Alguma sorte com os carros?
– Não… Eu consegui algumas placas que se enquadravam nas características determinadas, enviei para o DETRAN, mas, quando me devolveram as buscas…
– Ninguém dentro das especificações.
– Não. É claro que ele poderia muito bem estar usando o carro de alguém, então, bati sempre com o nome do cônjuge, o que achei mais provável, mas, ainda assim, quando vi as fotos…
Ficamos os dois em silêncio contemplativo.
– Acho que está na hora de compartilhar os dados com a polícia – ela falou.
– Eu envio amanhã pela manhã – respondi, algo derrotado. – Realmente precisamos de mais mãos.
Ela colocou o braço sobre meus ombros e me deu um beijo na bochecha.
– Tudo bem, pode ser que demore, mas a gente vai pegar esse cara – ela disse.
E, quando já estava quase entrando na cozinha, falou:
– Ah, eu parei em um posto de gasolina para encher o tanque e disseram algo sobre a água do radiador estar vazando. Você consegue ver isso para mim?
– Eles encheram o tanque de volta?
– Encheram – Isabella respondeu. – Mas fico preocupada de ele parar no meio do caminho ou fundir o motor.
– Ah, deixa eu dar uma olhada, vai.
– Qualquer coisa, leva lá para o marido da Clara – ela falou, brincando.
Isabella não é uma pessoa que faz piadas costumeiramente. Ocasionalmente eu me pergunto se determinados comentários dela, que talvez até tenham um aspecto semelhante a uma piada, não seriam apenas uma pista, uma incitação para alguma verdade que ela já conhece, mas espera que eu descubra por mim mesmo.
De qualquer forma, desci para a garagem e fui checar o carro; de fato, havia um pouco de água pingando, que poderia ser do radiador. Abri o capô e dei uma olhada: o tanque de água ainda estava cheio. Talvez, o jeito fosse checar novamente amanhã e ver se uma poça de água se formou e se o nível de água baixou. E, se realmente tivesse baixado… Bem, poderia tentar realmente levar ao marido da Clara e aproveitar para fazer uma pergunta ou outra a ela. Talvez ela reconhecesse o carro, dentre os que eu já tinha levantado. Ela tinha falado uma semana, mais ou menos, o que significava que a coleta poderia ter sido na quarta, mas também na terça, na quinta, ou, vai saber, até mesmo na sexta.
Aquela mancha de óleo ainda me deixava curioso, porém. Por que ele trocaria o óleo na própria casa, e não na oficina? Por que sujaria a casa com óleo? Não parecia lá uma boa propaganda para a própria oficina…
– E aí, o que achou? – ela perguntou, quando retornei.
– Não achei nenhum vazamento evidente – respondi e aproveitei para falar sobre a minha ideia, no dia seguinte. – Vou dar uma olhada amanhã de manhã, antes de sair para a vigilância. Qualquer coisa, você vai com o meu, e eu fico com o seu.
– Está bem – ela falou. – Obrigada. Não sei o que faria sem você.
– Ligaria para o seguro, com certeza…
Foi mais ou menos à meia-noite, que eu tive a revelação.
E se o que Clara havia nos contado não fosse verdade? E se nenhum carro tivesse ido lá de manhã, simplesmente porque não precisavam ter saído de casa para tal? O cartão do tal Abraão…
Eu me levantei e fui procurar dentre as minhas coisas. Era um cartão novo demais para ter sido entregue tanto tempo atrás. Era extremamente improvável que alguém tivesse guardado tão bem um cartão; para gastá-lo, ele certamente teria de ficar facilmente acessível. Porém, a pessoa normalmente salvaria o contato no telefone e daria um fim ao cartão, ou então o guardaria tão bem, que pareceria novo – mas seria dificilmente acessível, para não dizer, esquecido em algum lugar da casa.
O que a dona Clara fazia da vida, mesmo?
Sentei-me ao computador e comecei a procurar informações, mas os bancos de dados a que tinha acesso sem mais fazer parte da polícia eram bastante restritos. Mandei uma mensagem para Jonas, que deveria estar de vigilância no turno da noite.
“Preciso de informações sobre esta mulher e sua família”, falei.
“Ótimo, alguma coisa para fazer de madrugada. Já estava de saco cheio esperando o cara pular a cerca. Pensa num cara liso”.
Eu estava checando o carro de Isabella pela manhã, quando recebi a mensagem de Jonas.
– Te peguei! – exclamei e mal consegui me conter, conforme esperava pelo elevador subir até o nosso andar. – Descobri!
Isabella me encarou, com os olhos brilhantes e cheio de atenção. Eu acho que ela já sabia, mas me deixou falar mesmo assim.
– Clara é assistente social – eu falei. – Douglas, o marido, não é mecânico. É técnico de enfermagem.
– Bingo – ela disse.
Só que eu não podia mais efetuar prisões, já que eu não era mais da força policial, de forma que só me restou, exatamente como tinha prometido, levar as informações a eles.
Jonas não ficou muito feliz em ter de emendar a vigilância, então eu simplesmente deixei para lá; um dia a mais, um dia a menos esperando nosso cliente encontrar com a sua amante não iria atrapalhar. Juntei todas as informações e levei para Roberto, meu grande contato na polícia.
– Deixa eu entender o que você está dizendo, André – ele falou.
Houve uma época em que eu Roberto éramos da mesma equipe e dividíamos uma sala apertada, na maior parte das vezes, emprestada. Apesar de ele ser um pouco mais velho do que eu, no geral, eu era o líder da equipe. No entanto, com o desenrolar da vida, após a nossa transferência para o DHPP com o caso do Anatomista e algumas outras desilusões na força policial, eu saí, enquanto ele ficou. Jonas e Daniel me seguiram, mas Roberto subiu de posto na carreira policial, com a perspectiva de algum dia virar efetivamente delegado, e coordenava dezenas de equipes. Estávamos em sua sala, que era ampla, organizada, e possuía uma cafeteira própria. Muito diferente daquela a que estávamos acostumados no começo de nossas carreiras.
– Esse cara, com a sua mulher, criaram uma rede que vende sangue de crianças, é isso?
– Isso – respondi. Na minha mente, era claro como cristal.
– Tá certo. Eu entendo que raramente a Isabella erra, mas é preciso um salto de fé, aqui. Temos alguma evidência concreta desse conde Drácula? Você disse que a esposa dele relatou tudo isso, mas… Ela citou o marido em algum momento?
– O cartão que ela me entregou… Deve ser o que ele usa, Roberto.
– Por que ela não inventou nenhuma outra história?
– Isabella pegou ela de jeito. Não tinha como escapar. Só restou contar uma parte da verdade.
Ele suspirou.
– E você acha que a gente vai conseguir alguma evidência na casa deles, André? Se eu conseguir um mandado… Se eu conseguir, porque ele tem de ser muito bem fundamentado… E a gente não achar nada lá, vai ser um fiasco.
– Tenho uma lista de potenciais vítimas – falei.
– E alguma delas fez uma denúncia oficial? Falou do que aconteceu?
– Ainda não tive tempo de falar com ninguém.
Ele pegou a lista das minhas mãos e encarou os nomes, endereços e detalhes.
– Eu quero muito poder ajudar – ele falou, por fim. – Mas isso não vai andar rápido. Você sabe como as coisas funcionam. Eu sei que é cruel dizer isso, mas, enquanto ninguém morrer…
– É, eu sei, você não vai conseguir destacar uma equipe para investigar.
– Olha, o que você pode fazer, sem burlar a lei nem nada do tipo… Até porque, não preciso dizer para você que as provas obtidas por meios ilegais…
– Eu sei, eu sei. Você vai sugerir que eu fale com as famílias.
– Exatamente. Mostre uma foto dos dois, veja se os familiares os reconhecem. Eles não vão querer se incriminar, é claro, mas a perspectiva de um acordo para não ser indiciado como cúmplice é sempre uma boa sugestão de um investigador que já foi da polícia.
Eu sorri. Roberto continuava o mesmo de sempre, mesmo que a corporação tentasse derrubá-lo a cada dia.
– Ah, Roberto, por que você não vem trabalhar comigo, ehm? Formar a velha equipe de novo?
– Daí, com quem você poderia contar aqui na polícia?
– Ah, sempre tem o povo que deve favor pra você – respondi, rindo, e me levantei. – Está bem, vou tentar.
Segui para fora sob o sol escaldante, totalmente contrastante com o desânimo que sentia em meu interior. Com duzentas famílias, quais as chances de eu realmente acertar? Os telefones poderiam nem ser os mesmos, sem mencionar que elas poderiam nem querer falar comigo. Era mais fácil negar tudo de cara; não foi como com a Mel, que simplesmente apareceu no hospital quando a situação ficou preta. Não poderia ficar esperando que mais alguma criança com essas características simplesmente desse entrada no mesmo hospital que a amiga de Isabella trabalhava.
Decidi dar uma passada pela casa de Clara mais uma vez. Quem sabe, eu não conseguiria entrar lá com uma desculpa qualquer e, de repente, com uma distração, olhar o que ela tinha? Eu sabia que não poderia usar provas obtidas ilegalmente, mas, se ela tivesse alguma informação que me levasse a outra criança…
Assim, fui em direção àquela rua que já tinha visto mais de mil vezes na câmera, achei um lugar na rua e estacionei. Porém, qual não foi a minha surpresa quando, ao chegar, dei de cara com um portão fechado a corrente e uma placa de “Aluga-se”?
Liguei para a imobiliária imediatamente; o corretor ficou felicíssimo que já havia alguém interessado, porque a casa tinha acabado de entrar no mercado.
– A família saiu neste fim de semana, mesmo – ele falou. – Mas deixaram a casa em perfeito estado.
– Será que eu conseguiria visitar?
O corretor foi tão prestativo, que até me surpreendeu. A empresa ficava ali perto e, em poucos minutos, ele chegou com as chaves na mão.
– Os donos são um casal de idosos – ele falou. – A casa ficou alugada por anos. Os moradores antigos fizeram até algumas reformas recentes, é engraçado. Não imaginei que sairiam assim, do nada.
– Eles deram algum motivo para saírem assim?
– Pelo que entendi, a filha estava muito doente e eles precisavam de atendimento em um hospital melhor, em outro lugar. Mas não entraram em muitos detalhes. Deixaram tudo acertado e foram.
– Em dinheiro?
– Sim, fizeram um depósito. Como sabia?
– Palpite de sorte – falei.
Andamos pela casa; sob o pretexto de ver as melhorias que a família anterior tinha feito, observei cada detalhe, tentando obter alguma pista sobre o pequeno empreendimento familiar do conde Drácula, como Roberto dissera, mas não havia nada; nenhuma pista. Tinham deixado a casa meticulosamente limpa. Trabalho profissional.
Não que digitais ou DNA me ajudassem em algo; eu precisaria encontrar documentos. E, com certeza, eles tinham levado tudo embora, ou queimado o que não precisavam.
– Muito obrigado – falei, apertando a mão do corretor. – Vou certamente pensar a respeito.
No carro, fiquei girando o cartão de Abraão em mãos.
Havia ainda duas opções. Uma delas era muito arriscada, mas era algo que eu poderia fazer, com um pouco de ajuda. Já, para a outra, eu precisava de alguém que soubesse mexer na Dark Web.
Eu sabia exatamente quem.
– Eu já entendi como funciona o quadro geral – eu falei.
Jonas estava na minha frente, bocejando, com os olhos vermelhos e uma caneca de café na mão. Ele já tinha ficado de vigilância durante a noite e ainda trabalhado procurando os dados que eu tinha lhe pedido. Eu cheguei à sua casa perto da hora do almoço, quando ele certamente tinha dormido apenas algumas horas. Eu sei, eu deveria deixá-lo dormir mais um pouco, mas eu não conseguia me conter. Minha cabeça fervilhava.
– Clara identifica os pacientes. Douglas entra em contato e consegue coletar o sangue. A questão é: se eles estão vendendo, alguém está comprando. Mas, por quê? E por onde?
– Daí você pensou em mim, claro, porque eu tenho cara de vampiro.
– Isso também.
Ele estalou a cabeça e as mãos de uma forma assustadora.
– O que eu pensei: se estão vendendo, é pela Dark Web. Igual àquele caso das belas convulsivas, lembra?
– Sim, o caminho é esse, mesmo. Ah, está bem, eu vou ver o que eu consigo achar. Alguma pista?
Eu mostrei uma foto do cartão de contato.
– Já pensou em ligar para esse cara?
– Esta é minha última alternativa – respondi. – Eu não tenho certeza se ele divulga esse telefone por aí. Se for algo exclusivo das pessoas que já venderam seu sangue, eu não tenho como ter obtido este número. Como a esposa me deu o cartão, certamente ele vai suspeitar.
– Está bem, está bem – ele falou, com um largo bocejo e coçando a barriga. – Vou ver o que consigo.
Ficamos os dois parados por alguns instantes.
– O quê? Agora?
– Quanto mais rápido, mais rápido – respondi.
– Vou cobrar hora extra, ehm.
Com isso, ele se levantou e foi para a frente do computador. Eu fiquei por alguns minutos atrás dele, enquanto o via digitar a uma velocidade frenética e tomar o café sem sequer diminuir a velocidade da digitação.
– Isso pode demorar, sabia?
– Não tem problema.
– O que eu quero dizer é que não gosto de ninguém respirando no meu cangote enquanto trabalho – ele disse, por fim. – Especialmente se for meu chefe. A não ser que seja uma chefe, uma chefe gostosa, sabe? Daí a gente podia…
– Tá bom, Jonas, tá bom – respondi. – Aguardo seu relatório.
E saí pela porta.
Estava tão ansioso com conseguir informações sobre este caso, que substituí Jonas na vigilância noturna, para o deixar trabalhar com mais tranquilidade. Tenho certeza de que ele preferiu, também; Jonas adorava mexer nessas coisas de computador, das quais eu não tinha conhecimento absolutamente nenhum. Quando eu era criança, os computadores de casa meio que ainda estavam engatinhando. Eu já estava na faculdade, quando a internet realmente entrou em voga. Não sou um nativo digital como ele, sou, no máximo, um estrangeiro.
Ninguém tinha ficado de vigilância durante o dia, e eu tinha de torcer para o nosso cliente não ter pulado a cerca justamente neste momento. Assim, quando reassumi o posto, lá pelas três da tarde, foi para ver o prédio do seu escritório, sem nada de novo. Entrei no estacionamento para garantir que seu carro continuava lá, e fiquei por lá mesmo, esperando que ele voltasse ao carro. É claro, eu não poderia garantir que ele não estava fazendo nada dentro do prédio; para isso, precisaria de uma vigilância maior, que a nossa cliente ainda não estava disposta a pagar.
Às oito horas da noite, o homem de terno saiu para pegar o seu carro. Ele finalmente saiu do prédio, e eu fui atrás; acostumado à sua monotonia, já estava quase pegando o caminho para a sua casa, no automático, quando o telefone tocou.
– Chefe, você não vai acreditar!
– Fala, Jonas. Boas notícias?
O homem virou para a direita, e eu fui atrás.
– Encontrei uma coisa, chefe. Sério, estou besta.
– Fala logo, Jonas.
Ele entrou em outra rua à direita; aquele não era o caminho usual. Estava fugindo do trânsito? O GPS para a casa dele indicava realmente outro caminho.
– Esse cara… Ele realmente vende sangue online. Aliás, não é só sangue, é plasma, também.
Será que ele tinha percebido que eu estava na sua cola? Estava mantendo dois carros de distância… Ele não tinha muito por que suspeitar ou perceber.
– Mas, para que ele faz isso? Não consigo imaginar gente desesperada no hospital que iria pedir sangue de criança por causa de algum acidente ou uma cirurgia.
Deixei o homem ganhar a dianteira, ficando a um quarteirão de distância. Era perigoso segui-lo assim, corria o risco de o perder a qualquer momento, mas, assim que ele virou à esquerda, acelerei e cobri a distância, a tempo de o ver pegar outra rua à direita, para acessar a Juscelino. Isso era bom, ele iria ficar preso no trânsito, dando-me tempo de chegar.
– Não, chefe, o buraco é mais embaixo – Jonas prosseguia pelo alto falante do celular. – Eles vendem como uma fórmula do rejuvenescimento.
Por pouco não estanquei de súbito.
– Como é?
– Lembra do “De volta para o futuro 2”?
– Eu lembro que ele existe.
– Sério, chefe, você é uma vergonha para a sociedade Nerd.
– É porque eu não sou nerd.
– É uma vergonha para a humanidade. Bem, de qualquer forma, o Doutor Brown troca o seu sangue para rejuvenescer, além de fazer uns outros procedimentos que lhe dão mais uns 30 anos de vida.
– Não vai me dizer que estão fazendo isso?
– Mais ou menos isso. Eu entrei em contato com eles; não me passaram nada por enquanto a respeito de valores, nem nada assim, apenas vídeos e PDF explicando a técnica milagrosa.
O homem estava alguns carros à minha frente. Continuei a vigiá-lo.
– Me encaminha isso.
– Não consigo, é acesso restrito. Você tem que vir aqui ver.
– No momento, estou perseguindo nosso pula-cerca da vez.
– Ué, que horas são? Ah, oito e meia. Ele deve estar indo para casa, não?
– Não, ele mudou o padrão. Está na Juscelino. Acho que hoje tem algo.
– Vai lá, chefe. Eu vou continuar buscando aqui.
Ele desligou; depois de ficar basicamente estacionado na avenida por um tempo, o homem finalmente entrou em uma rua, depois outra, e parou diante de um bar de esquina; deixou o carro com o manobrista e entrou.
Um happy hour com os amigos, pensei. Dei uma volta, achei um lugar para parar e me postei em um ponto de táxi, de olho nele com a câmera. Ele escolheu um lugar dentro do bar; não tinha escolha, a não ser entrar e pedir uma mesa para mim, para poder ficar de olho nele.
Bom, fazer o quê? Mais uma refeição para a contada cliente.
Sentado à mesa do bar, para não ficar estranho, pedi umas porpetas e uma cerveja sem álcool. À distância, via o nosso alvo encontrando amigos, conversando, bebendo e se divertindo. Para mim, o tempo passava lento como uma tartaruga; queria correr para a casa de Jonas e ver exatamente o que ele tinha conseguido, mas simplesmente não podia, porque justo naquele dia, o nosso alvo tinha resolvido mudar a rotina!
Algumas fotos e meia cerveja depois, Jonas me enviou alguns vídeos e fotos da tela do computador. Lá, eu conseguia ver um médico, ou alguém que fingia ser um, cabelos escuros com uns poucos fios grisalhos, o aspecto de um senhor muito bem conservado, gravata e jaleco, falando sobre os métodos de rejuvenescimento milagrosos com a transfusão sanguínea de sangue jovem.
– Você acreditaria se eu te dissesse que eu tenho 70 anos? – pausa dramática. – Conforme envelhecemos, o nosso corpo vai acumulando toxinas. E essas toxinas circulam pela grande rodovia que são os nossos vasos sanguíneos. O estresse cria toxinas no cérebro, que são levadas para os outros órgãos; logo, os seus rins já não estão funcionando tão bem, o seu coração já não é mais o mesmo, e tudo começa a funcionar pior do que era. Vitaminas ajudam, sucos detox ajudam, aterramento ajuda. Eu tenho certeza de que você já tentou tudo isso, mas, por mais que eles ajudem, eles não resolvem. Você continua se sentindo cansado, sem libido, sua ereção já não é mais a mesma… – falava o homem, enquanto imagens apareciam ao fundo, mostrando as toxinas circulando e os órgãos falhando. – Mas, e se você pudesse ser jovem de novo? – de repente, o homem cansado na imagem de fundo se tornou um jovem de vinte anos, digno de propaganda antiga de cigarro. Só faltava estar montado a cavalo e laçando um touro. – E se eu dissesse que, com a nossa técnica de hemoplasmaférese quântica, eu consigo eliminar todas essas toxinas que estão destruindo o seu corpo aos poucos, o microplástico que voa pela nossa atmosfera e está nos destruindo por dentro, limpar tudo e começar do zero, como uma nova pessoa?
Putaquiopariu.
Eu precisava de uma cerveja com álcool para engolir um negócio desses.
Olhei de relance; nosso alvo continuava lá, na mesa, conversando, mas, agora, uma moça loira, de vestido curto e seios salientes, chegou e o cumprimentou de uma forma próxima demais para uma colega de trabalho.
Bingo.
Tive de deixar o vídeo de lado para fotografar o nosso amigo, enquanto fingia estar apenas checando casualmente o celular e bebendo.
Não tive mais como continuar com a investigação do conde Drácula; embora Jonas tenha me mandado mais e mais informações, eu tive de executar o trabalho para a nossa cliente; após uns quinze minutos, o homem saiu com a moça ao seu lado, e eu os segui até um motel ali perto. Fotografei os dois entrando, fotografei os dois saindo, registrei o momento em que ele a deixou em casa e, por fim, quando ele retornou para a própria casa, em torno da uma da manhã. Este caso estava concluído. Restava cuidar do caso pro bono, sem dúvida, muito mais importante para a humanidade.
Cheguei tarde em casa e tive de me controlar para não acordar Isabella. Sentei-me no sofá da sala e comecei a ver os vídeos novamente, desta vez prestando atenção de verdade.
– Como foi a vigilância? – perguntou Isabella, do nada, no que eu dei um pulo no sofá.
Ela usava pijamas e não faço ideia de há quanto tempo já estava ali.
– Foi bem, pegamos o cara – respondi aereamente; não conseguia parar de pensar no vídeo. – Mas descobrimos algo mais importante!
Mostrei para ela desde o começo o velho médico apresentando sua técnica revolucionária.
– Isso é estranho – ela disse, por fim. – Por mais loucura que seja… Isso não é legalizado. Ele não pode sair fazendo vídeos assim.
– Não é uma coisa realmente fácil de se achar – eu respondi. – Jonas achou escondido no Dark Web. Não sei se o CRM ou coisa do tipo vai tão fundo assim nas buscas.
Não sabia se ficava decepcionado com a objeção de Isabella ou não; era a primeira pista concreta que tinha! Era só uma questão de identificar o médico e ir atrás dele! Ele próprio deveria ser o idealizar do golpe!
Sem dizer nada, ela se sentou ao meu lado, puxou o notebook que estava na mesa de centro e começou a digitar. Em alguns instantes, virou a tela para mim.
– Dr. Jacó Ejzenstein. CRM desativado.
– Ele parou de pagar? – questionei. Talvez fizesse sentido, tinha decidido apelar para o charlatanismo, para que ter um CRM válido?
– Ele faleceu, mesmo – ela respondeu, mostrando-me uma notícia do jornal de alguns anos atrás.
– Mas, como ele fez esse vídeo, Isa?
Ela pegou o meu celular e olhou com cuidado, pausando de pouco em pouco, adiantando e voltando.
– Eu acho que é uma montagem – falou, por fim. – Peça para o Jonas checar. Talvez tenha alguma coisa de IA envolvida.
Eu não sabia o que dizer. Se aquele não era o médico responsável, quem era? Por que usar justamente ele como garoto propaganda?
– Mas, Isa…
Não consegui completar minha frase. Tudo o que eu queria dizer era: o que eu faço agora? Minha investigação toda ia por água abaixo. Quando descobríamos algo, retrocedíamos dois passos. Sabia das crianças, mas não tinha como intervir; sabia do esquema e de quem o executava, mas não sabia onde estava ou como encontrá-lo; sabia até mesmo quem era o provável idealizador, mas, mesmo para ele, não tínhamos provas.
Por outro lado, tinha uma história, não tinha? De que tudo que era feito com inteligência artificial deixava uma marca, para que soubessem que era realmente falso. Se eu conseguisse descobrir isso, de onde era essa marca…
Mandei uma mensagem para o Jonas:
“Isabella descobriu que o médico está morto. O vídeo é falso. Ela acha que foi IA. Você consegue identificar a origem?”.
Jonas, é claro, estava acordado; começou a digitar e parou; começou novamente e parou. Aquilo me deixava maluco!
Pouco depois, finalmente mandou:
“E não é que o veio tá morto mesmo???
Isa mandou benzaço!
Te respondo ASAP”.
Quando olhei para o lado, Isabella já tinha desaparecido; provavelmente, tinha voltado a dormir.
Eu bem que gostaria, mas minha empolgação não me permitia. Se Jonas conseguisse achar a origem do vídeo…
No dia seguinte, eu estava no escritório do Roberto novamente.
– Jonas conseguiu tudo isso aqui – eu disse, mostrando as provas inegáveis que tínhamos daquele esquema.
– Eu sei, Dias, eu entendi – ele falou, suspirando. Colocou os cotovelos à mesa, em um tom condescendente. Quando foi que chegamos àquele ponto na nossa relação? – Mas não é o suficiente. Um médico falecido; usaram IA para fazer um vídeo de propaganda de charlatanismo médico. Eu acho que você tinha que falar com o CRM, talvez eles tenham alguma punição efetiva para isso.
– O CRM pode fazer o que quiser, mas não vai conseguir resolver o problema que temos em mãos, Roberto.
Ele olhou para as imagens diante de si.
– Você já parou para se perguntar por que justamente este médico? – questionou ele.
– Parece um homem simpático. Confiável. Alguém que estudou muitos anos e parece certo do que faz. Talvez tenha um quê de Lair Ribeiro. Acho que o público alvo confiaria nele, acreditaria no que estava vendendo.
Ele estava digitando algo no computador.
– Ele não é um médico particularmente famoso, Dias. Não é alguém tão fácil de se achar na internet. Ele não pode ter feito os vídeos, porque sabemos que ele morreu, certo?
– Certo.
– Então, ou ele realmente criou esse método maluco, criou o vídeo e morreu depois, deixando o legado para alguém, ou a pessoa que decidiu usar a sua imagem era próxima o suficiente para saber que ele seria um ótimo garoto propaganda. E melhor: que não iria reclamar, já que estava morto.
– Alguém próximo! – exclamei.
– Mas você está investigando duas pessoas que trabalham em um hospital. Uma assistente social e um técnico de enfermagem. É muito provável que ambos tivessem contato com ele, não? Se Jacó começou o esquema e morreu, quem levou adiante pode ter sido o próprio técnico, não?
Eu me lembrei da casa onde Clara e sua família moravam; estava com algumas melhorias, sim, mas não era compatível com a casa de alguém que deveria estar ganhando muito aquele esquema. Não, definitivamente, os dois não eram os arquitetos de tudo aquilo. Tinha mais alguém envolvido, alguém que estava sugando os lucros, além do sangue. O verdadeiro Drácula. Mas, quem poderia ser?
– Vou ver a relação entre eles – respondi, por fim.
– E, Dias… – Roberto falou, enquanto me levava à porta. – Só me venha aqui quando tiver algo definitivo. Eu gosto de ajudar, e justamente por isso o fato de não poder fazer nada está me deixando angustiado. Se chegar aqui com provas suficientes, eu juro para você que vou eu mesmo prender esse pilantra. Mas, por enquanto…
– Está bem, está bem – falei, suspirando.
Talvez estivesse mesmo deixando as emoções me tomarem, mas os casos que envolvem a segurança de crianças sempre me deixam com os nervos à flor da pele!
– Não é um vídeo feito por IA – disse Jonas, na hora do almoço.
– Tem certeza?
– Tenho. Mas não quer dizer que não foi manipulado. O velho realmente gravou o vídeo, só que ele não é tão novo assim. Quer dizer, ele realmente tem 70 anos, mas o vídeo sofreu uma edição. Um filtro para deixar o velho menos velho, com aquele cara de quarentão.
– Isso quer dizer que foi realmente o Dr. Jacó quem começou a farsa?
– Sim.
– Mas, e o que a Isabella falou? Que o vídeo parecia manipulado?
– Ele tem algumas instabilidades de luz por causa do filtro e foi cortado algumas vezes, provavelmente pausas que fizeram para o velho corrigir ou editar falas erradas.
– Jonas, você já tentou se tornar um cliente deles?
– Já – ele respondeu. – Foi uma das primeiras coisas que fiz, é claro, mas eles estão espertos, chefe. Eles sabem que tem polícia na cola deles e não querem aceitar nenhum cliente novo. Fechados como uma…
– Nem continue a frase – falei, antes que me arrependesse de alguma comparação obscena. – Está bem, Jonas. Obrigado. Tenho muito o que pensar aqui.
Estava sentado no escritório, pensativo. Precisava continuar escrevendo e juntando o relatório para a nossa cliente, cujo marido infiel fora pego no flagra no dia anterior, mas minha mente não conseguia sair do caso do Conde Drácula.
Definitivamente, o Dr. Jacó tinha começado o esquema com Dirceu, vulgo Abraão, marido de Clara. Isso acontecia há provavelmente mais de dois anos, que foi quando o médico morreu, o que significava claramente que Mel não fora a primeira vítima. Isso só tornava tudo ainda mais macabro: Dirceu sabia de todo o esquema e tinha colocado a própria filha nele.
Outra opção seria, é claro, que Jacó tivesse começado tudo sozinho e depois, quando conhecera Mel, pedido ajuda para Dirceu. Mas, de qualquer forma, era fato que alguém estava continuando com o esquema, e este alguém certamente não era Dirceu. Ele devia ter alguém acima, cobrando por resultados, cobrando a ponto de ter de usar a própria filha para doar sangue. Afinal, não era fácil encontrar crianças disponíveis com aquele tipo de sangue. E, quanto mais raro o produto, mais caro. Portanto, eles deviam estar embolsando muito dinheiro, que estava parando com o novo chefe do esquema.
Quem seria?
Certamente, alguém que conhecia tanto Dirceu, quando Jacó. Alguém que tinha acesso aos mesmos serviços e pacientes que ambos. Provavelmente, algum médico, ou um terceiro membro da equipe, que tinha assumido o papel de líder. Alguém que tinha conhecimentos o suficiente de internet para conseguir fazer uma página escondida, para conseguir editar vídeos, e tudo mais.
Como achar esta pessoa?
Talvez, eu nunca encontrasse. Talvez a única forma de abordagem fosse conseguir prender Dirceu no flagra e, a partir dele, obter uma confissão. Mas, como conseguir atrair ele para mim?
Mandei uma mensagem para Isabella.
Tinha um jeito.
Naquele mesmo dia, ao fim da tarde, Isabella e eu fomos à casa da família de Daniel. Daniel, de seis anos de idade, era o terceiro filho de uma família simples, que morava em uma Cohab na região norte da cidade. Ao batermos à porta, foi justamente ele quem atendeu.
– Fala, garotão – eu disse. – Sua mãe está?
– Mamãe! – ele gritou por cima do ombro.
Era um menino franzino, de cor escura e cabelos crespos cortados à última moda, com um traço que ia pela lateral e pegava a sobrancelha, e algumas mechas mais claras.
A sua mãe, uma moça negra, nova, porém de aspecto cansado, chegou limpando as mãos em um avental.
– Olá?
– Boa noite, dona Maria – eu falei. – Sou André Dias, investigador. Esta é minha colega, Isabella, médica legista. Podemos entrar?
Ela nos encarou, aparentemente sem compreender. Olhou para os lados, incerta.
– Eu…
– Cerca de um ano atrás, você foi abordada por um Abraão Severiano, não é? – Isabella falou. – Ele ofereceu dinheiro em troca do sangue do seu filho, não foi?
Ela olhou em volta; algumas pessoas passavam pelo corredor.
Optou pelo mais seguro.
– Entrem.
O apartamento era bastante simples e certamente apertado para a família de seis, mas havia algumas melhorias, assim como na casa da Mel, que indicavam que eles haviam recebido algum dinheiro recentemente, mas provavelmente não o suficiente para mudar de vida.
– Você já vendeu o sangue três vezes, certo? – Isabella continuou.
Maria agilmente entregou o celular ao menino e mandou que fosse brincar no quarto; ele saiu saltitante.
– Ele… Me falou que não tinha problema e…
– A gente precisa falar com ele – eu falei. – Viemos aqui por causa disso.
– Eu não… Ele é quem liga pra gente…
– Dona Maria, o que a senhora fez é um crime. O que ele está fazendo é um crime ainda maior. Temos centenas de crianças envolvidas. Nos ajude a pegar esse criminoso.
Ela torcia as mãos no pano do avental; depois de um tempo, estalou a língua, como se tivesse se decidido.
– Ele me deixou um cartão.
Ela foi buscar ao quarto e voltou com uma bolsa velha, dentro da qual tirou uma carteira gasta, no fundo da qual, bem escondido, estava um cartão dobrado e amassado. Característico de quem tinha escondido o máximo possível e usado poucas vezes.
Era exatamente o mesmo cartão que eu tinha, com o mesmo número.
– O tal do Abraão está precisando de mais sangue – eu falei. – Preciso que você ligue para ele e fale o seguinte.
Instruí a ela o passo a passo; com as mãos tremendo, ela ligou para o homem, mas conseguiu se acalmar o suficiente para dizer o que precisava.
– Oi, seu Abraão… Sim, eu sei que… Não, não aconteceu nada, é que… Sabe o que é, eu tô… Tô apertada. De grana. Sim. Sei que o Dani é só mês que vem, mas… Será que… Sim, eu espero – ela tapou o bocal do telefone e nos encarou, assentindo. – Sim, certo. Sábado? Tá ótimo. Sete horas, como de costume. Tá bom. Eu vou estar aqui esperando.
Ela nos encarou com um olhar de vitória; estava marcado.
– Agora, eu preciso da sua ajuda com mais uma coisa…
Considerando a nossa história trabalhando juntos, Roberto destacou uma dupla para vir colher o depoimento de Maria. Na verdade, não sei se foi a consideração por nós, ou o fato de que a senhora teria de ir à delegacia com todas as crianças, o que tornaria tudo certamente muito mais complicado. Isabella e eu as entretemos, enquanto a mulher contava em detalhes tudo o que havia acontecido nos últimos anos: como havia sido abordada, como eram as coletas, etc. Ela só não sabia quem estava acima deles na organização, nem tinha nenhuma informação além do tal cartão de Abraão.
A história era realmente muito semelhante à de Clara; ainda me questiono se a estratégia dela foi intencional ou não. Quando se precisa contar uma mentira, quanto mais próximo da verdade, mais fácil é de a manter; será que ela sabia disso, ou só havia sido pega desprevenida, sem tempo de inventar algo mais elaborado, do que fingir ser vítima da própria quadrilha?
Com um depoimento e uma família disposta a testemunhar caso fosse realmente necessário, finalmente tínhamos o que necessitávamos para uma prisão em flagrante. Assim, no sábado pela madrugada, os policiais já haviam se postado na casa de Maria. Eu não fazia parte, oficialmente, da operação, mas fiquei de tocaia do lado de fora, observando conforme Dirceu chegava em seu carro, bom demais para quem ganhava somente o que dizia ganhar, estacionava, e descia na maior desfaçatez com sua esposa. Ele carregava uma maleta de enfermagem, e ela, um cooler. Entraram sem dificuldades na Cohab e, pouco tempo depois, desciam, algemados e levados pela polícia. O plano estava dando certo.
Na segunda-feira, Roberto me ligou.
– Seu plano deu certo, Dias.
– Ele confessou?
– Mais ou menos. Não falou muito sem um advogado. Mas, com o depoimento daquela família, já temos o suficiente para começar a investigação. Vamos usar a lista que Isabella forneceu e entrar em contato com as outras famílias. Quanto mais evidências tivermos, mais forte o caso se torna.
– E as famílias, Roberto? Serão punidas?
Ele suspirou.
– Isso já não cabe a mim. Não tenho dúvida de que o que fizeram é um crime, mas..
– Tem atenuantes.
– É. Famílias vulneráveis, muito bem escolhidas. São mais vítimas do que culpadas, na minha opinião, mas não sou eu quem vai julgar isso.
– Mas, e o idealizador do plano? O tal Dr. Jacó? Quem assumiu o lugar dele?
– Nem Dirceu nem Clara falaram absolutamente nada – ele respondeu. – Tem certeza de que realmente esse cara fazia parte do plano? Não foi mesmo alguma coisa de IA?
– Não, o Jonas me deu certeza disso. O vídeo era verdadeiro. O médico participou do esquema, ajudou a criar.
– Bem, então, acho que Dirceu se tornou o número um quando o velho morreu – Roberto disse.
Discutimos mais algumas amenidades, e desliguei logo depois. Tinha uma reunião com a nossa cliente do adultério, e eu já ia abrir agenda para assumir mais um caso, mas o Caso do Conde Drácula ainda permanecia no fundo da minha mente. Sentia que algo simplesmente ainda estava errado.
A polícia continuou a levantar dados ao longo dos dias, conforme mais e mais famílias apareciam para prestar depoimento. A quantidade de dinheiro movimentada era enorme, e, como geralmente acontece nos crimes, “follow the money”, uma expressão que usamos para “siga o dinheiro”. Serve para os crimes de colarinho branco, e para aqueles de colarinho esgarçado também.
Os depósitos vinham de uma conta de laranjas, é claro, a mesma conta que também fazia depósitos periódicos para a família do Dirceu. Somando os valores que Dirceu ganhava, mais o que era pago aos familiares, nas minha contas nem de longe se tornava uma operação rentável, diante dos riscos. Tinha de haver um mandante; o tal Dr. Jacó tinha de estar comandando tudo de algum lugar. Seria ele em espírito? Teria apenas forjado a própria morte como forma de segurança?
Demorou um tempo, mas conseguimos quebrar o sigilo bancário da conta responsável pelos depósitos; não trouxe muitas informações – é claro que o movimentador da conta era uma pessoa totalmente aleatória. Porém, algumas informações chamaram a atenção, e eu fui convocado por Roberto para opinar a respeito.
– Os valores são exorbitantes – Roberto me disse, um dia à tarde. – Veja as transferências. Isso aqui são clientes. Pessoas que caíram realmente na falácia do Dr. Jacó e queriam se tornar mais jovens. Milionários que pagaram uma fortuna. Estamos indo atrás de cada um deles, mas, para falar a verdade, Dias, acho que isso é um beco sem saída. Por isso eu chamei você.
– Muito obrigado por jogar na minha cara que foi tudo em vão.
– Não se menospreze; graças a você, interrompemos uma quadrilha que estava tomando o sangue de mais de 200 crianças.
– Só que a gente continua sem conseguir pegar o verdadeiro culpado.
– Você está realmente certo de que tem mais alguém vivo, não é?
– Eu tenho certeza disso, Roberto. Tem um mês que só penso nisso.
– Então acho que vai gostar de saber disso aqui.
Ele me mostrou mais alguns papéis, com dados de transferências bancárias.
– Aproximadamente 10% do valor recebido ia para Dirceu. Pouco mais de 1% era pago para as famílias pelo sangue. Algo em torno de de 1% ia para os custos de operação. Os outros 88% estavam ou nesta conta, ou eram transferidos periodicamente para algumas contas off-shore.
– O verdadeiro Conde Drácula!
– Sim! – ele exclamou. – Mas, infelizmente, não é tão fácil assim localizar um vampiro da Transilvânia. Não conseguimos achar o proprietário desta conta, e talvez nunca consigamos, mas ele está vivo. Ficou sabendo da prisão do Dirceu e, imediatamente depois, sacou todo o dinheiro que tinha nesta conta. Alguns milhões que foram embora.
– Ou seja, ele está por aí.
– Sim. E este depósito recente mostra que ele ainda está na ativa. O Drácula ganhou outro cliente ontem. Certamente, Dirceu não estava sozinho, Dias. Só que eu não sei nem por onde começar para achar o Drácula. Pensei em repassar para a PF, mas não acho que eles vão se importar muito com isso.
Aquela informação de que minha intuição estava correta desde o começo me deu ainda mais vontade de seguir em frente.
– Pode deixar que eu vou descobrir, Roberto.
Eu precisava ficar de vigilância de outro caso da agência, o que sempre me deu oportunidade para pensar. Enquanto ficava sentado, atrás do volante, tentei me lembrar do que sabia do caso: o tal do Dr. Jacó havia entrado em contato com o Dirceu, que provavelmente trabalhava em um hospital no qual ele também trabalhava. Até aí, eu tinha o contato do hospital. Mas, ele provavelmente tinha também um associado, alguém que tinha continuado a trabalhar com Dirceu depois da sua morte. Era provavelmente esta pessoa que ainda estava trabalhando, conseguindo clientes, mesmo sem Dirceu, e transferindo dinheiro. Afinal de contas, conseguir a mão de obra para obter e transfundir o sangue não era o mais difícil; com o que pagavam, certamente eles achariam alguém que se sujeitasse àquilo. O grande desafio era realmente manter o esquema funcionando.
Precisava ser alguém de confiança de Jacó; alguém que conseguisse movimentar suas contas, que compreendesse bem como tudo funcionava. Um médico que entraria efetivamente em contato com os clientes; não poderia ser outro profissional. Ele tinha de transmitir confiança aos clientes.
A busca pelo dinheiro poderia até levar aos milionários que haviam arcado com os custos de buscar pela imortalidade, mas, sejamos francos: estamos no Brasil. Rico tem medo de polícia no Brasil? É claro que não. Roberto poderia até tentar trabalhar um acordo de delação premiada, mas, mesmo que eles tivessem provas contundentes de que os milionários haviam se sujeitado ao tratamento, eles não haviam realmente cometido um crime: o culpado era quem os havia enganado.
Não havia, assim, nada que pudéssemos usar para nos favorecer em um interrogatório. Não havia por que os clientes entregarem o fornecedor.
Assim, o que me restava era pensar. Entrei em contato com o hospital e consegui a lista de médicos que faziam parte do corpo clínico. Comecei passando pelos nomes, tentando identificar algum que me chamasse a atenção, mas não havia nada. Era um tiro no escuro.
Decidi bater as listas dos últimos anos: tinha de ser alguém que estava lá quando Jacó começou com o esquema, mas que havia permanecido após a sua morte. Assim, cortei alguns nomes; depois, passei a buscar no mesmo site em que Isabella havia feito sua busca pelos nomes, registro e especialidade. Era um trabalho de formiguinha; o hospital tinha mais de 1.000 médicos cadastrados em seu corpo clínico.
– Jonas, preciso de ajuda com uma coisa. Tenho uma lista de médicos que podem ter trabalhado com o Drácula no esquema, mas não consigo descobrir qual deles efetivamente trabalhava com o Jacó. Você consegue pesquisar nas redes sociais e coisas do tipo?
– Vou ver o que consigo, chefe.
Suspirei, olhando para o escritório à minha frente. As pessoas imaginam que a vida de um investigador particular é muito glamorosa, mas a verdade é que passamos horas e horas sentados observando outros fazerem coisas nem um pouco interessantes. Como, por exemplo, naquele momento o homem que investigávamos estava displicentemente cutucando o nariz, antes de limpar debaixo da mesa do café onde estava e bebericar um pouco de uma xícara, fuçando no celular.
Quem ele estava esperando, exatamente? Seria a amante? Seria uma reunião de negócios?
Algumas horas se passaram; ele realmente permaneceu no café por um bom tempo, encontrou um colega de trabalho, depois saiu e voltou para o escritório. Nada suspeito. Sem atividades extra-conjugais fora de horário.
Não queria incomodar o Jonas, mas meus dedos coçavam para mandar uma mensagem perguntando se ele havia descoberto algo sobre o Dr. Jacó. Apesar de odiar esse tipo de coisa, eu mesmo entrei em uma conta falsa que havia criado do Instagram e decidi seguir o homem; ele havia morrido, e, com ele, as postagens na sua conta, mas ninguém havia se dado ao trabalho de deletar nada.
Encarei minha lista interminável de nomes; quais as chances de descobrir o culpado? Era uma agulha no palheiro.
De repente, vi a garagem se abrindo, e o homem que eu investigava saiu; deixei minhas listas de lado e o segui. Subimos por algumas ruas da Vila Mariana, passamos por uma fila enorme na rua Estela, fizemos uma curva, e o carro parou; sem opção, eu o ultrapassei e parei pouco à frente, como se estivesse esperando uma vaga para o restaurante chinês da rua.
Olhei pelo retrovisor; após alguns momentos, uma menina de não mais que dezesseis anos saiu de um café. Ela se despediu de outras meninas e seguiu com um moletom amarrado na cintura e uma mochila nas costas.
Seria possível? Nosso alvo estava tendo casos com menores de idade? Não seria a primeira vez na minha carreira, mas todas as vezes eu ficava bestificado e achava inacreditavelmente nojento.
Ela jogou a mochila com displicência no banco de trás do Volvo blindado e, depois, entrou no carro, sem trocar um beijo nem nada. O homem engatou e saiu; quando passaram ao meu lado, reparei como compartilhavam os olhos claros e os cabelos loiros.
Puxei o dossiê que tinha sobre ele, enquanto parava no farol, três carros atrás, e respirei com alívio: era a filha dele.
Foi quando o farol abriu, que a minha mente se iluminou também.
A filha!
Buzinaram atrás de mim para que eu avançasse; o Volvo já estava longe.
Não importava mais.
Estacionei no posto de gasolina mais próximo que havia e puxei meu celular. A filha!
Se eu não estava enganado, Jacó tinha uma filha: Rebeca Ejzenstein. Procurei por este nome no Instagram e voilà!
Rebeca Ejzenstein. Uma senhora de quarenta anos, com cara de trinta. Cheias das plásticas e botox, é claro, mas a pessoa perfeita. Sua especialidade era indeterminada, mas ela se dizia “médica de qualidade de vida” e, segundo sua linha do tempo, dividia seus dias entre esquiar na Suíça e cuidar de pessoas saudáveis no Brasil.
Mandei um print imediatamente para Jonas.
– Achamos a condessa – falei.
Era ela. Eu tinha certeza.
Alguns dias depois, eu estava em uma sala de interrogatório com tudo o que tinha levantado sobre o caso. Fazia tempo que eu não pisava em uma e, para falar a verdade, não tinha particularmente nenhuma saudade. Roberto estava ao meu lado; quantas vezes não bancamos aquela história de policial bom e policial mau?
Isabella, quebrando um pouco o protocolo, diante do interesse pessoal que tinha criado pelo caso, estava a um canto, observando-nos.
– Seu Damião, dona Jaqueline – Roberto começou. Ele nos apresentou e resumiu o que tínhamos do caso. Reiterou que o homem não estava sob custódia, que podia sair a qualquer momento, mas que a sua ajuda era de extrema importância.
– O que você fez não é crime – eu falei. – Para todo os fins, você foi enganado por um tratamento falso criado pelo Dr. Jacó Ejzenstein. O grande problema é que, para conseguir o sangue miraculoso que ele dizia substituir em vocês, aí, sim, ele cometia um crime.
– Ao longo de anos, Jacó criou um esquema muito bem elaborado de comprar sangue de crianças, armazenar, e transfundir. Este é o crime – Roberto complementou.
Olhei para o casal diante de mim; ambos aparentavam ser realmente mais novos do que verdadeiramente eram. Seriam os efeitos da terapia miraculosa? Ou simplesmente um resultado de qualidade de vida de verdade: tempo ao ar livre, exercícios físicos, boa alimentação, boas noites de sono, bons cremes, aplicações periódicas de botox, tintura no cabelo, reimplante capilar? Tudo o que somente o dinheiro poderia trazer? Difícil dizer. Jacó escolhia bem seus clientes. Eles iriam rejuvenescer, com ou sem o seu sangue.
Mas nós havíamos escolhido bem, também. Aquele casal tinha filhos na idade das crianças usadas para se obter o sangue. Eram pessoas do bem; só tinham dinheiro demais em suas carteiras e não sabiam exatamente como usar.
A chance de ajudarem era grande.
– O Dr. Jacó está morto, como vocês devem saber – eu disse. – Mas uma pessoa continua com o seu tratamento. Precisamos descobrir quem é essa pessoa.
Eles se entreolharam.
– Pensem nos seus filhos – Roberto disse. – Poderiam ser eles.
– Neste exato momento, temos uma lista com pelo menos duzentas famílias. Duzentas famílias que foram exploradas para que conseguissem esse sangue para o tratamento. Duzentas famílias que foram enganadas, assim como vocês, clientes.
– Mas o tratamento funciona! – exclamou Damião.
Como todos os enganados pelo charlatanismo, estava envolvido demais, tinha gastado demais, para admitir seus erros.
– Não vamos entrar nessa discussão. Funcionando ou não, a forma como ele obteve o seu tratamento é criminosa – eu respondi. – É abuso infantil.
– Ele nunca falou sobre isso! – o homem respondeu, na defensiva. – Ele tinha falado que era artificial e…
– Isso não importa agora. Nós precisamos da ajuda de vocês.
Roberto puxou uma foto que tínhamos imprimido da Dra. Rebeca Ejzenstein.
– Vocês reconhecem essa mulher?
Os dois permaneceram impassíveis.
– Foi ela que entrou em contato com vocês durante a aplicação da terapia?
Eles se entreolharam; Damião foi o primeiro a quebrar o silêncio.
– Eu não estou confortável com isso – ele disse. – Não estamos presos, certo? Acho que prefiro ir para casa.
Eu me remexi na cadeira; precisávamos achar uma forma de os convencer a falar, já que, realmente, não teríamos por que os manter ali.
Foi a hora de Isabella se manifestar.
– Deixem eu contar uma história para vocês – ela disse, puxando o celular. – Este aqui é o Daniel. Está com seis anos e já fez três doações de sangue. Periodicamente, ele precisa fazer exames, porque está com anemia, devido às doações. Vocês veem, quanto mais ele doa, mais a sua família ganha, e a família dele quis chegar realmente ao limite do que era possível. Ele passou no hospital algumas vezes, prescreveram ferro, mas não foi o suficiente. E esta aqui é a Mel – ela continuou, mostrando a foto da menina que tinha dado início a todo este caso. – Está com sete anos e já fez cinco doações de sangue. Ela, na verdade, é a filha do técnico responsável pela coleta de sangue. Estava tão difícil de conseguir doações ultimamente, que ele colocou a própria filha em risco para obter o sangue que precisavam para vender aos clientes. Foi a Mel quem nos fez descobrir tudo isso, quando foi internada pela terceira vez, desta vez, para tomar sangue, por causa de uma anemia inexplicável. Esta mesma pessoa que doa o sangue, contra a vontade, por abuso dos pais, para vocês, este sangue raro, é a que precisa dele de volta para não morrer. E não é fácil achar o tipo de sangue dela, porque ela é uma doadora universal. Assim como Daniel. Mas não é uma receptora; só o O negativo consegue doar para O negativo. Isso significa que, quanto mais ela toma sangue, mais difícil fica de evitar a sua morte.
Ela parou e os observou, enquanto a informação assentava. Damião se remexeu desconfortavelmente na cadeira; Jaqueline parecia estar sendo quebrada.
– Vocês foram enganados por um esquema muito bem montado, que prometia recuperar alguns anos de vida. Mas, ele não recupera. Não funciona. Transfundir sangue de criança não faz diferença nenhuma; não tira toxinas, nem nada disso. Mesmo que ele processe todo o seu sangue, não é nada que os seus rins já não façam normalmente. Agora, o que isso causa… De verdade… É o comprometimento do desenvolvimento das crianças. Do crescimento, do desenvolvimento intelectual. Da vida. Essas transfusões, que são fruto de puro abuso de seus pais… Podem efetivamente matar as crianças.
Jaqueline engoliu em seco e olhou para o marido.
– Não dá para reverter o passado. Mas dá para evitar que mais crianças corram risco de morte. Clara e Dirceu já estão presos; agora falta descobrir o chefe do esquema. Ajudem. Porque, se não ajudarem… O sangue dessas crianças estará nas suas mãos. Literalmente.
Os olhos de Jaqueline marejaram; ela ia quebrar, eu podia sentir.
– Foi essa mulher que nos atendeu – Damião respondeu, surpreendentemente. – Eu ainda tenho o contato dela, caso queiram falar.
Roberto se ajeitou na cadeira.
– Gostaria de nos contar mais sobre isso?
A confissão de Jaqueline e Damião permitiu que Roberto juntasse provas o suficiente para conseguir a prisão de Rebeca Ejzenstein. Talvez você até tenha visto na televisão; o caso todo foi contado como “A Operação Conde Drácula”. No momento em que escrevo estas memórias, o advogado de Rebeca, um dos maiores advogados criminalistas do Brasil, está lutando com todas as forças para, ao menos, conseguir que ela responda o processo em liberdade. Tenho certeza de que a fiança não será barata.
Depois da prisão, todos nós nos reunimos para comemorar; foi como nos velhos tempos. Roberto, Jonas, Daniel, Isabella e eu, sentados a uma mesa, cada um com sua cerveja, vinho, ou água, no caso do Daniel.
– Mas, tem uma coisa que eu ainda não entendi, Isa – perguntou Daniel, que basicamente não havia participado do caso. – Como foi que você sabia que justamente o meu xará era a família certa para abordar?
– Ah, não foi difícil – ela disse. – Eu tinha uma lista de mais ou menos duzentas famílias para levantar. Qualquer uma delas bastaria para conseguirmos saber sobre o crime, mas não para conseguir chamar Dirceu à sua casa para uma nova coleta. Para isso, eu precisava de alguém que já estivesse no prazo para uma nova transfusão, que é, em geral, feita a cada seis meses. Então, só precisei olhar nos prontuários de cada criança, até encontrar alguma que, como a Mel, tivesse procurado o hospital e feito um exame de sangue há quatro ou cinco meses. E pronto! Daniel foi o primeiro que apareceu.
– Nome de sorte – disse Roberto.
– Bem, eu só fui por ordem alfabética. Mas, talvez, sorte também tenha a ver com isso…
– Deve ser por isso que eu não ganhei até hoje na Mega-Sena! – disse Jonas.
Eu ergui minha taça, propondo um brinde.
– À nossa perseverança, mesmo diante das dificuldades e da cabeça-dura do Roberto!
– À sua cabeça-dura! – ele respondeu.
– E à genialidade da Isa, claro. Sem você, nunca teríamos descoberto essa quadrilha, nem conseguido a confissão sobre a condessa Drácula. Imagine quantas crianças continuariam sofrendo?
Ela deu de ombros; como sempre, achava que não tinha feito nada demais.
Olhei para o Carmenère na minha taça; era vermelho demais, como, o sangue naquelas bolsas de transfusão.
Acho melhor trocar para cerveja daqui para frente.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais