O incrível caso da assassina sem face
Você, meu caro leitor ou minha cara leitora, provavelmente está acostumado, para não dizer enganado, assim com a maior parte deste país, com a ideia de que a polícia de São Paulo, assim como nos filmes, consegue usar DNA para avaliação dos suspeitos.
Não é bem assim.
O primeiro caso em que a polícia de São Paulo conseguiu conectar uma amostra de DNA a um ladrão foi em 2017. Sim, 2017. Sei lá eu quantos anos depois que a polícia dos Estados Unidos já estava fazendo isso. Na época, nosso banco de DNA tinha pouco menos de 2.000 amostras.
O fato é que coletar DNA não é uma coisa difícil, e fazer os testes não é demorado nem caro. Tudo barateou muito nos últimos anos. Porém, apenas ter o DNA não basta – ele precisa ter um nome. E, como nós não fazemos uma coleta de DNA compulsória de toda a população, a única forma de você entrar neste banco de dados é se você cometer um crime – e for pego. Se, por algum motivo, cair no sistema da justiça criminal.
Assim, o teste de DNA é muito menos útil do que você poderia pensar, e isso quando não atrapalha, de fato, como é o caso que vou contar agora.
O banco de DNA era uma coisa nova e, como tudo que acaba de começar, todos estávamos muito empolgados. Qualquer um que aparecia na delegacia ganhava uma cotonetada para adicionar seu DNA ao banco. E, é claro, nas cenas de crimes, saíamos coletando tudo o que conseguíamos para adicionar ao banco. É claro que, com isso, algumas coisas esquisitas começaram a acontecer.
– Dias – disse Roberto, certa vez, quando estávamos armazenando os dados de um caso. – Recebi os resultados dos testes de DNA do assassinato daquele traficante.
– Certo. Bateu com alguém do banco?
– Não. Mas bateu com alguém de outro assassinato.
– Como é?
A vítima que tínhamos no momento era Deivison, 24 anos, um traficante de médio porte de cocaína que trabalhava na Paraisópolis. Foi encontrado morto lá perto do Estádio do Morumbi. Coletamos amostras de sangue e DNA das suas roupas e, voilà: misturado ao sangue dele, um DNA desconhecido.
Porém, este mesmo DNA, conforme Roberto me explicou, estava presente em outra cena do crime, ocorrida dois meses antes! Um caso de latrocínio. O ladrão havia entrado na casa de um casal de idosos, assassinado os dois e levado tudo o que tinham de dinheiro e joias. Nenhuma testemunha, nenhuma evidência de nada do assassino, exceto pelo DNA coletado na cena – que, curiosamente, batia com o nosso do momento.
– Isso é estranho, Roberto – falei. – Acha que era um noia?
– Pode ter entrado para pegar dinheiro para comprar drogas – ele falou. – Depois, teve alguma treta com o cara que vendia as drogas. Talvez tenha acabado o dinheiro.
– Esse Deivison não iria ficar dando mole por aí – eu falei. – Com certeza ele não distribuía as drogas. Não faz sentido.
– Quer ir lá conversar com a família do traficante?
– Isso não vai dar em nada. A gente podia é ver de novo o que temos do caso dos velhinhos.
Levantamos tudo o que tínhamos de informações sobre aquele casal, revisamos todos os depoimentos e eventuais gravações de câmeras de segurança, mas, realmente, não conseguimos encontrar absolutamente nada. Passamos dois dias naquilo, mas continuamos de mãos vazias.
– A opção que sobra é caçar informações com os traficantes – comentou Roberto.
– Por mais curioso que esteja, não acho que seja uma atitude inteligente se embrenhar na comunidade para tentar descobrir isso. Já me dei mal mais de uma vez por isso.
– Ainda bem que concordamos neste aspecto.
Algum tempo depois, um terceiro caso; desta vez, foi Daniel quem me informou.
– Mestre, as amostras de DNA bateram com o banco de dados.
– Há! Finalmente ele vai servir para alguma coisa!
– Não, mas não temos um nome, ainda.
– Bateram com o quê, então, Dani?
– Com outro assassinato.
– Não me diga que… O caso dos velhinhos? E do traficante?
– Exatamente.
Esse caso fazia ainda menos sentido; um jovem médico que havia cometido suicídio em casa. Ao menos, era o que tudo indicava: 29 anos, encontrado em seu quarto com a porta trancada, uma série de medicamentos espalhados pela mesa.
– Por que raios coletaram DNA nesse caso?
– Sabe como é, querem coletar para tudo, agora.
Isso só complicava as coisas. Até então, era um caso claro de suicídio. Com o DNA de outra pessoa envolvida na cena, ficava difícil. Qual seria a relação entre os três casos?
– Mas tinha mais coisas para corroborar, Daniel? Papiloscopia, algo assim?
– Nada. Quer dizer, papiloscopia tinha, mas eram várias digitais na casa. Estamos batendo com o banco, mas acho que vão corresponder aos pais e à namorada.
– Bem, já que quer tanto alimentar o banco de dados, colete DNA da família, também.
Os testes levaram algum tempo, mas retornaram de forma ainda mais misteriosa.
– Não bate com o de ninguém que tenha deixado digitais lá – disse Daniel.
Eu me sentei à minha mesa, pensativo. Um assassino em série que matou um casal de idosos e roubou seu dinheiro, matou um traficante, e depois matou um jovem por meio de uma overdose, fingindo que era um suicídio. Teve todo o cuidado do mundo de não deixar absolutamente nada na cena – nem digital, nem pertences, nem sequer cabelo –, mas fora pego por uma amostra de DNA.
Não há crime perfeito, isso é fato.
Só que, no caso, tínhamos o assassino, só que não tínhamos seu nome.
– Isso não faz o menor sentido – falou Daniel.
– É, eu sei como é…
Os casos continuaram se acumulando ao longo dos meses e, por não sabermos como, exatamente, definir aquilo, intitulamos aquele caso peculiar de “O Serial Killer sem Rosto”, que Jonas, após uma pesquisa na internet, chamou carinhosamente de Leinth, um Deus etrusco do submundo sem rosto, que pode ser tanto homem, quanto mulher. É, não é só a polícia federal que consegue dar nomes cultos às suas operações!
Depois de dois longos anos, porém, nossos esforços finalmente foram recompensados.
– Chefe! Chefe! – disse Jonas, entrando esbaforido na minha sala. E olha que isso não era um acontecimento comum.
– O que foi, Jonas?
– O banco de dados! Bateu!
– Não vai dizer que é mais um assassinato para o nosso Serial Killer sem rosto?
– Não é mais um assassinato. Mas é o Leinth!
– Do que está falando, Jonas?
– Uma moça que foi presa anteontem por furto. O DNA dela bateu com o banco no caso do Leinth!
Parecia bom demais para ser verdade, mas, empolados com o caso recente do homem que havia sido preso graças ao banco de dados, juntamos todas as informações dos assassinatos e fomos ao centro de detenção provisória falar com a moça.
Ela era uma mulher de 43 anos de idade, negra e bastante simples. Havia sido presa por furtar um absorvente de um supermercado. Conversando, parecia uma mulher muito, muito simples, e não, não conhecia nenhuma das vítimas, mas também não tinha exatamente como provar onde estava em cada dia dos assassinatos.
O caso se tornava cada vez mais confuso; conferimos os testes várias vezes com o laboratório, e eles reiteravam que estava tudo certo. Apesar de não termos provas contundentes contra a moça, como ela também não tinha nenhum álibi confiável, acabou sendo indiciada por todos aqueles assassinatos. Só que algo simplesmente não batia.
Eu estava em casa, revisando os documentos, quando Isabella, curiosa, veio dar uma olhada.
– O que está acontecendo, André? Você parece preocupado.
– Estou com um caso maluco aqui que não consigo resolver.
– É aquele do tal do Leinth que o Jonas vive falando?
– Et tu, Brutus?
Ela deu de ombros.
– Me conte.
Expliquei o que estava acontecendo para ela.
– Tantas pessoas diferentes, tantos lugares diferentes, algumas mortes mais agressivas, outras menos… Algumas que claramente não foram assassinatos. Não faz sentido!
– E o banco de DNA não está errado?
– Não, eu confirmei com o laboratório várias e várias vezes ao longo desses anos. Temos 33 casos em que o DNA dessa mulher aparece na cena do crime. E não, ela não faz parte das equipes. Temos 5 equipes diferentes envolvidas na coleta de amostras dos assassinatos, e ela trabalha em uma fábrica. Absolutamente nada a ver. Fora que ela nunca, nunca conseguiria fazer aquilo.
– Bem, você sempre pode se surpreender com o que as pessoas podem fazer.
– É tudo estranho demais. Não faz sentido nenhum.
– Lembre-se da navalha de Ockham, André. Se você tem muitas explicações para a mesma coisa, a mais simples é a verdadeira.
– Ora, eu já tentei todas as explicações possíveis.
Isabella ficou pensativa por alguns instantes.
– Vamos lá, eu vou falar com ela. Mas precisamos passar na delegacia, antes.
Fomos até a delegacia; lá, Isabella puxou informações sobre as amostras de DNA que tinham coletado, mas, claro, isso não levou a absolutamente nada.
– Vamos colher uma amostra nova dela.
Fomos até o estoque de suprimentos, onde ela começou a vasculhar entre os cotonetes de coleta.
– O que você está fazendo, Isabella?
– Procurando um cotonete para colher um DNA novo dela.
– Mas, Isa, qualquer um serve!
– Estou procurando um especial…
Eu suspirei. Ela com certeza estava com alguma ideia maluca na cabeça, uma daquelas que sempre davam certo, mas ela não gostava de compartilhar com ninguém. Bem, talvez um pouco de maluquice fosse o que eu precisava para resolver aquele enigma.
Depois de uns quinze minutos, ela se deu por satisfeita e saiu com dois cotonetes nas mãos.
– Vamos lá.
Seguimos para o centro de detenção, onde Isabella fez questão de entrar sozinha para conversar com a prisioneira. Alguns minutos depois, ela saiu, com os dois cotonetes.
– Ok, mande para a análise e depois me diga o que deu.
Foi a minha vez de dar de ombros. Mais um dia normal na vida de Isabella Angier.
Alguns dias depois, ela me perguntou sobre os resultados.
– Ah, os dois vieram com o DNA dela. Não sei qual é a surpresa, Isa.
– Excelente! – ela falou. – Excelente!
– Por que excelente, Isa?
– Porque essa é a prova de que a sua assassina não é uma assassina.
– Do que você está falando?
– Eu só coletei DNA com um cotonete. E outro permaneceu lacrado no envelope.
Eu estanquei, olhando-a por alguns instantes enquanto tentava compreender a seriedade daquilo.
– Mas, se você nem usou um deles… Como…?
– A fábrica em que aquela moça trabalha. Você não chegou a perguntar o que faz, não é?
– Acho que é alguma coisa de higiene, não sei.
– É a fábrica que produz os cotonetes que vocês usam para coletar o DNA.
Eu arregalei os olhos.
– Não é possível! – exclamei.
– Só que é. Um dos lotes está contaminado. Deu trabalho de achar, mas, a partir do lote do cotonete que vocês usaram na coleta do último crime do seu suposto serial killer, eu consegui encontrar. Ela manipula os cotonetes com as mãos e, de alguma forma, houve uma falha na esterilização deste lote específico de cotonetes. Eu tenho certeza de que, se vocês fizerem um levantamento, vão encontrar que todos os casos em que a moça estava supostamente implicada, os cotonetes vieram deste lote com problema.
Coloquei Jonas para fazer este levantamento naquele momento e, algumas horas depois, tínhamos o veredito: de fato, todos os cotonetes vinham do mesmo lote. Pedimos o recolhimento de todos os cotonetes deste lote, que estava espalhado pelas mais diversas delegacias, e submetemos aleatoriamente alguns para análise. Todos vieram positivos para o DNA dela.
No final, diante do erro grotesco da polícia, o advogado dela conseguiu até que o juíz mudasse a sua condenação. O tempo cumprido no CDP foi considerado suficiente para um furto tão pequeno. O caso do assassino em série sem rosto estava solucionado, da forma mais simples possível.
– Como eu disse, André, a navalha de Ockham.
– Pode até ser, Isa, mas não é qualquer um que consegue enxergar a solução mais simples em um caso tão difícil quanto este. Só você para descobrir.
Ela deu de ombros, como era seu costume. Nunca aceitava os elogios ou as glórias pelas resoluções de casos.
– A propósito, quando você for passar na farmácia, compra mais cotonete para mim?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais