Uma Terapia Revolucionária
O Pernil, como já se bem sabe, é um país diferente de tudo que se vê por aí. No Pernil, já há muitos anos todos esperam que, ao passar em um médico, ele lhe prescreva uma terapia sem qualquer fundamento científico, que pode ou não trazer uma cura.
Ninguém, entretanto, liga para isso; na verdade, eles adoram terapias que podem não funcionar. Isso é o que traz graça à vida do pernileiro: por que ter a certeza de que o tratamento vai curar a sua doença, se você pode correr o risco de não funcionar e você morrer a qualquer momento? A vida é tão mais valiosa quando você não tem certeza do seu dia de amanhã!
Assim, muitos pernileiros aderiram a terapias como:
- Florais de Nach: uma misturinha de plantas, água e álcool, que pode ou não curar as mais diversas coisas, mas é especialmente eficaz para dar sono e insuficiência do fígado;
- Holeopatia: essa aqui é excelente: a teoria da holeopatia é que você pode combater uma doença usando uma toxina que tenha exatamente este mesmo efeito, porém em dose baixa. Em um exemplo clássico da holeopatia, se um paciente estiver morrendo por perda sanguínea após um tiroteio, basta você lhe dar um medicamento que faz sangrar, porém em uma dose muito, muito baixa. Ah, mas não é só isso! A concentração deste medicamento é ínfima, tão ínfima, que é como se fosse uma partícula apenas dentro de uma piscina de óleo (daí holeopatia). Você poderia pensar: mas, como isso vai funcionar? Ora, pelas qualidades da memória do óleo¹, que consegue guardar as informações e características desta uma partícula de medicamento e vai transmitir ao seu corpo que, uma vez estimulado por ele, irá reagir de acordo, fazendo o oposto, ou seja, estancando o sangramento;
- Osteodançopatia: nesta técnica, por meio de movimentos corporais, o paciente ativa os canais de energia do seu corpo, permitindo que ele se re-equilibre e corrija suas disfunções; e…
Bem, são tantas outras, que é melhor parar por aqui. O importante é que os pernileiros gostam tanto deste risco, que fazem até a famosa Roleta Trossa (que veio lá da Tróssia, na Azia, país repleto de gelo e grande consumidor de Vodka): literalmente em uma roleta, eles colocam várias coisas, dentre terapias e medicamentos. Alguns deles podem matá-lo, mas definitivamente nenhum pode curá-los. Ao girar a roleta, o participante terá de seguir o que receber. Não dá para ser mais emocionante do que isso!
Apesar disso tudo, existia um homem chamado Nãome Descartes (é isso mesmo, o pai dele tentou traduzir “Nome” do ingrês e ficou assim, Nãome. Não me pergunte por quê, eu sou só um contador de histórias), que estava totalmente inconformado com isso. Ele não podia acreditar que, quando ele ficava gripado, ele tinha de recorrer à injeção de isótopos de Hélio pelo seu rabicó, o que, a seu ver, só tornava os seus puns mais agudos.
Nãome, assim, em um dia no bar (no qual jogava Roleta Trossa de verdade, ou seja, com vodka, cachaça, absinto ou, o pior de todos, leite), decidiu que ia pôr um fim a tudo aquilo:
– Eu vou criar um tratamento que funciona de verdade! – ele bradou, em alto e bom tom, antes de heroicamente tomar o leite que havia tirado na roleta. – Uma terapia revolucionária!
Todos riram, é claro.
– E quem é que vai querer um tratamento que funcione de verdade, Descartes?
– Estamos todos perfeitamente bem sendo ou não curados!
– O que eu mais gosto são os medicamentos quânticos – falou um terceiro. – Nada como ser curado e não curado ao mesmo tempo!
– Descartem tudo isso que vocês têm em sua mente! Duvidem de tudo! Eu vou criar algo que realmente funcione!
– Eu duvido! – exclamou um deles.
– Pois está certo em duvidar! – concluiu Nãome, batendo o copinho na mesa e saindo.
– Acho que ele tomou leite demais, veja… Está até sóbrio! – falou o barman, limpando um copo.
Nãome Descartes trabalhou, trabalhou e trabalhou; após meses em que sequer parou para fazer a barba, ele conseguiu isolar, da raiz de uma árvore, um medicamento que tirava, de verdade, as dores. Nada mais de usar cristas de quartzo, imposição de pés, pedras frias², agulhas de madeira, ou fazer três tranças nas crinas de um cavalo branco e virgem em uma noite de lua cheia, o que poderia, ou não, reduzir a sua dor³.
Por fim, com o resultado miraculoso em suas mãos, Descartes decidiu anunciar ao mundo a sua descoberta! E que melhor forma de fazer isso, do que postando no Istragão⁴? Assim, ele fez um vídeo logo diante da árvore do medicamento, ainda segurando a picareta que havia usado para escavar a raiz, mostrando de onde tinha extraído o medicamento, todo o processo, plenamente reprodutível, que o levou a produzir o analgésico…
Enfim, era um vídeo longo e chato demais. Descartes poderia ser bom com ciência, mas era péssimo em engajar o povo. Assim, ele pediu ajuda ao seu amigo, Merré Cicles (ele era trancês), e juntos eles fizeram uma dupla invencível: Nãome Descartes produzindo o medicamento, Merré Cicles o vendendo.
Quando as pessoas começaram a tomar o medicamento e viram que ele realmente tirava as suas dores, ninguém acreditou. Todo mundo duvidava (ironicamente, o que Descartes sempre pedira a todos) que ele tinha realmente criado alguma coisa que funcionava.
– Só pode ser um charlatão! – é o que diziam por aí.
E pior; quando viram o vídeo de Descartes com a picareta atrás de si, começaram a chamá-lo de picareta (que, no Pernil, é o termo que usamos para uma pessoa que faz exatamente aquilo que promete), e a coisa pegou.
O debate se estendeu por meses na internet, dentre pessoas que não acreditavam naquela picaretagem, e pessoas que acreditavam (e também os quânticos que acreditavam sem acreditar, e desacreditavam acreditando). Por fim, os grandes empresários, vendo que tudo o que eles haviam plantado desde a descoberta do Pernil estava prestes a ruir (não é fácil convencer uma população de que o bom é ser ruim, e que se melhorar, piora), mexeram os pauzinhos no governo e conseguir passar uma lei, a famosa lei 131.722, de 2023, que diz o seguinte:
“É, doravante, proibida a idealização, pesquisa, confecção, criação, utilização, comercialização, e quaisquer outros verbos similares, de qualquer medicamento, tratamento, terapia, e quaisquer outros substantivos similares e seus sinônimos, mas não seus antônimos, que consiga efetivamente tratar, curar, melhorar, aliviar (e quaisquer outros verbos similares) os pacientes. A medicina pernileira é, por definição, paradoxal. Quanto pior, melhor. Já dizia Hipócrites, o pai da medicina: “Primeiro, não cure. Quanto menos curar, mais remédio tu venderás”. Aquele que descumprir esta lei será punido com prisão perpétua e banimento de quaisquer redes sociais (e substantivos sinônimos) de que participe”.
Descartes ficou perplexo; todo o seu plano, sua terapia revolucionária, havia ido por água abaixo. Ele duvidava de tudo o que ouvia e sentia; simplesmente, não era possível.
E, como qualquer pernileiro sensato (e rico), ele saiu do país e se mudou para a Soíssa. Onde, curiosamente, aquele remédio já existia fazia séculos, as terapias realmente funcionavam, e Descartes foi reconhecido como o verdadeiro filósofo que ele era.
E o Merré Cicles? Ah, ele não era bobo nem nada. Usou o remédio do Descartes como base para uma fórmula de holeopatia, com a qual conseguia causar dores no usuário. Em um país normal, nunca que isso teria ido para frente, mas estamos no Pernil, onde para frente é para trás, e ele caiu na graça do povo que queria sacanear (ou não) os outros. Roubou meu lanche na geladeira do serviço? Ora, é só colocar umas gotinhas da fórmula RC7 e pronto, vingança cumprida no próximo assalto à geladeira.
É, o Pernil não é para iniciantes, não.
¹ Vale notar que as gotas de óleo no País Pernil sofrem de Alzheimer precoce. Ao menos, este é o argumento dos holeopatas quando isso não funciona.
² Elas eram particularmente boas para dores de cabeça; bastava acertar em algum outro lugar do corpo e… Bem, você já entendeu.
³ Desnecessário dizer que, na maioria das vezes, a dor aumentava, por causa dos coices do cavalo. Em17% dos casos, ela melhorava. Curiosamente, havia também uma letalidade de 17% com este tratamento…
⁴ Uma das maiores redes sociais do planeta Areia, cujo objetivo é, exclusivamente, postar fotos uns dos outros (sempre o pior possível; nada de viagens e corpos perfeitos, apenas desgraças e sem filtros), para os outros ficarem com inveja e deprimidos (no Pernil, quanto pior, melhor, ou seja: eles competem para quem conta a história mais deprimente, e o outro ser mais deprimente do que você é meio que uma desonra). Desnecessário dizer que as empresas que criaram esta rede também dominam o mercado de medicamentos antidepressivos (que podem, ou não, curar a sua depressão).

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais