Apagão
Vanusa estava desaparecida havia alguns meses; eu achava que se tratava do Big Brother, que é um programa que ela ama, sabe Deus por que, considerando-se que ela consegue ver basicamente a Terra inteira ao mesmo tempo com a sua tecnologia (será que a Terra não é, na verdade, o Big Brother de Vênus? Vai saber).
Eu achei que ela voltaria quando o BBB acabasse, mas, ó! Cadê Vanusa? Escafedeu-se. Eu acredito que é porque ela se cansou um pouco de tanta baboseira política (troca o governo, mas o descaso continua). Dá para entender; eu mesmo estou cansado e gostaria de umas férias.
Mas, eis que de repente, Vanusa reaparece na minha frente, depois de meses!
– Mudou de casa?
– Vanusa! Você voltou?
– Algum dia eu fui verdadeiramente embora?
Fiquei com medo dessa afirmação; ela podia ficar invisível – será que não estava me observando esse tempo todo?
– Apareci lá na sua casa antiga, não tinha ninguém.
– Nem te conto o rolo que foi, mas, pelo menos, estou ainda no mesmo condomínio.
Ela olhou ao redor.
– Mais apertadinho esse escritório, não?
– Pelo menos não alaga. Nem está apodrecendo.
– Perdeu a biblioteca.
– Mas não os livros – comentei, mostrando, orgulhosamente, meus livros distribuídos por todas as superfícies disponíveis dos armários. – Mas, Van-van, o que aconteceu? Por que você sumiu?
– Você sabe que não existe só você no mundo, não é? Eu tive muita gente para entrevistar.
Eu ergui a sobrancelha (sim, só uma).
– Como você faz para erguer uma só?? – exclamou ela, surpresa.
– Sei lá, aprendi de criança. Acho que é algo genético, meu filho faz isso também. Olha só.
Ergui uma, depois outra, fiz uma onda indo e vindo.
– Uau! Se tudo der errado, você pode ir pro circo!
Ergui a esquerda em reprovação.
– Agora, sério, eu tenho uma pergunta muito importante: em meados de agosto deste ano… Você passou por um apagão?
– Elétrico? Sim. Era uma terça-feira de manhã, foi estranho demais!
– Como você se sentiu?
– Parecia um livro meu! Tem uma hora em que acaba a eletricidade da cidade onde o personagem mora, e ele está sozinho no mundo. Ele testa uma coisa, testa outra, e nada! Daí, vem o desespero: como viver em um mundo sem eletricidade?
Ela me encarou, instigando para que continuasse.
– Meu filho estava em uma aula online, com uma professora de Minas; a energia acabou aqui, caiu a internet, claro, e ela falou pelo zap que lá acabou, também. Mas, pouco depois, o sinal do celular ficou péssimo, e a gente mal conseguia se ligar, o que significava que tinha afetado também as linhas de telefonia. Imagine! Um apagão enorme desses, que pegou Minas e São Paulo, e ainda afetou os telefones? E se fosse igual ao meu livro?
– E aí, o que você fez?
– Fui para o carro, liguei em uma estação de notícias, na expectativa de que alguém soubesse o que estava acontecendo. E, ainda bem, ou nas rádios eles têm geradores, ou elas não tinham sido afetadas, mas eles estavam transmitindo tudo o que estava acontecendo, todos os estados que estavam sem energia. Pouco depois, voltou, mas, olha, fiquei aliviado. Imagina! Sem eletricidade? Não dá para viver! Ninguém tem dinheiro vivo, não dá para comprar comida, não dá para a gente se comunicar… Loucura! Ainda vou escrever um livro sobre isso!
– Uhm…
– O que foi, Vanusa?
– Nada.
– Você está me olhando com cara de culpada.
– Como assim?
– Você sabe o que aconteceu?
– Eu não…
– Ah, você sabe, sim! O que foi? Por que teve aquele apagão?
Ela suspirou.
– Acabou a bateria da minha nave.
– Como é?
– O motor de fusão. Para iniciar, precisa da bateria, e ela acabou. O painel solar queimou.
– Como um painel solar de Vênus queima??
– Tava frio demais.
Fiquei piscando, sem (querer) compreender.
– Enfim, precisei ligar na rede elétrica de vocês para fazer uma… Como vocês chamam? Chupeta?
Continuei piscando.
– Daí a rede caiu.
– Então… Foi você que causou o apagão?
– É, acho que foi – falou ela, um tanto sem graça. – Mas deu tudo certo! – completou. – Entre mortos e feridos, todos sobreviveram!
– Vanusa!
– Mas, vai dizer: não foi emocionante?
Eu a encarei.
– Deixa eu ir.
Será que tinha sido um apagão acidental, mesmo? Ou só um teste para ver como a gente reagiria a um apagão global? Melhor eu começar a estocar lanternas e papel higiênico. Nunca se sabe quando a Vanusa vai criar outro apocalipse.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais