A abolição das vogais
Um tempo atrás, se você bem acompanha a política do Pernil, deve se lembrar de que o ministro da cultura havia sugerido que fossem abolidos os números dosmanos, já que ninguém conseguia compreender exatamente o que eles significavam. Nesta linha de inclusivismo, cada um foi dando o seu pitaco, até o ponto em que haviam decidido se comunicar apenas por desenhos ou vídeos.
Pois bem: a medida foi enviada ao congresso, a PEC do inclusivismo. Só que, se você achava que ela sairia exatamente como previsto… Bem, não foi assim.
Depois de passar por diversos deputados e senadores, a PEC foi transformada a um ponto em que se tornara irreconhecível; os números dosmanos não foram abolidos, nem os museus foram fechados (mas a verba da saúde foi realmente desviada para dar celulares a moradores de áreas remotas sem sinal de telefonia), mas os senadores vieram com uma nova proposta: abolição das vogais!
– Abolição das vogais! – disse o presidente Embolsonada. – 01! Como que você não pensou nisso?
– Ah, pai, eu…
– Tá deposto. Agora é o 04.
– Mas, pai, você só tem três filhos!
– Então. O Loló tá na frente.
– Mas ele é um periquito!
Embolsonada deu de ombros.
– Chama o nosso Ministro da Curtura¹! – ele falou, não sem uma risada.
Em poucos instantes, veio o Ministro, cujo nome Embolsonada desconhecia.
– Ô, ministro, explica pra gente o que raios é isso aqui, talquei?
O ministro engoliu em seco, arrumou os óculos e leu a notícia.
– A partir de amanhã, as vogais estão abolidas dos textos escritos – ele anunciou.
– O que isso quer dizer? – perguntou Gorducho, o 04.
– A gente não vai mais usar vogais para escrever? É isso? – perguntou o presidente.
– Exatamente! – respondeu o ministro. – A ideia é que a gente consegue compreender as palavras pelo seu contexto, sem precisar de praticamente nenhuma vogal. Isso vai economizar muito tempo!
– Mas, e as palavras que começam com vogais? Tipo Emirados Unidos da Arrogância? A sigla é EUA – questionou 04.
– Vai usar a primeira consoante. Fica M, N…
– Ô, 04, para de encher o saco, ou você vai virar 05, talquei?
– Mas o que pode ter ainda depois de mim? – ele respondeu com um muxoxo.
– Tem o peixe beta do Loló.
– O periquito tem um peixe beta? – ele não sabia se estava mais injuriado por ficar depois do peixe beta, ou pelo fato de que o pássaro tinha um peixe e ele não.
– Bem, chega dessa baboseira toda. Eu vou andar de Jet Ski.
No dia seguinte, as manchetes do Pernil eram as seguintes:
“Ps Prnl nc nv crd rtgrfc: vgs n ms”.
Isso queria dizer, originalmente, “País Pernil inicia novo acordo ortográfico: vogais não mais”. Só que… Bem, cada um entendia como queria.
Isso, na verdade, não fez diferença nenhuma para Embolsonada e seu gabinete de guerra: eles não liam, mesmo! Como se comunicavam ou por mensagens de áudio, ou por vídeo, não fazia em absoluto qualquer diferença no seu dia a dia.
O povo do Pernil, por outro lado, estava ficando maluco. Os contratos redigidos sem vogais abriam precedentes para incontáveis contestações pelos advogados. Afinal de contas, como seria possível saber se M significava Ema, Emu, Uma, Um, Mãe, Meu, ou Me? Imagine as outras palavras, então!
Só que havia um motivo para Pernília ficar em um planalto isolado no meio do país: era para não ter contato em absoluto com seu povo. E lá, na ilha do isolamento, Embolsonada não fazia ideia do que estava acontecendo, até que um certo papel foi parar em sua mesa.
Estava escrito assim:
“TNC MNR
MC PRNL
GRRF SC”.
Assustado com o que leu, Embolsonada ligou imediatamente para seu filho:
– Gorducho, venha aqui no meu gabinete agora! E chame os outros!
Em questão de três minutos, estavam todos lá: Saulo Greves, o ministro da Economia; Damales Avós, ministra da família; o ministro da Curtura, cujo nome ninguém sabia; 01, 02, 03 e 04 (sim, até Loló estava lá, mas não o peixe, porque ninguém trouxera o aquário).
– Vejam isso! Vejam isso!
Todos olharam para o papel sobre a mesa do presidente.
– Não conseguem ver a gravidade do que está escrito aqui?
Eles ficaram se entreolhando, sem compreender.
– Não tem… Ahm… Um desenho? – tentou Gorducho.
– É claro que não!
– Um vídeo? – questionou Damales.
– Menos ainda! Gente, isso aqui tá claro! É uma declaração de guerra!
– Cumé? – perguntaram todos.
– Vejam! Atenção: Emirados Unidos da Arrogância…
– Mas, pai, essas letras…
– Lembra que falei que pegava as primeiras consoantes? – comentou o ministro da Curtura.
– Ah, verdade. Segue!
– Ameaça ao Pernil, talquei? Guerra Física!
– Meu Deus do céu! – falou Damales.
– Não é possível! – exclamou 01.
– Talquei! Talquei! – exclamou 03, provando que talvez fosse um papagaio, e não um periquito.
– O que vamos fazer? – questionou Saulo. – A economia… Não temos como arcar com uma guerra!
– Não vamos nos render! – exclamou Embolsonada. – De jeito nenhum que vou deixar a nossa bandeira verde e amarela…
– Mas, senhor presidente, com todo o respeito – tentou o ministro da Curtura. – Nosso exército não é páreo para os Emirados Unidos!
– É, pai… Será que não tem como a gente… Entrar em um acordo?
– Acordo? Um acordo, Gorducho? De jeito nenhum! Você não é mais meu filho, talquei? Virou o 09.
– 09, pai?
– Exato. O peixe beta tá antes. O Greves também. E a Damales. E o ministro lá que eu não sei o nome, talquei?
– Mas, pai, a gente não pode entrar em guerra…
– É loucura!
– Não é possível…
– Deve ser um mal entendido…
Foi a maior balbúrdia. Enquanto eles discutiam, Embolsonada cada vez mais pilhado para a guerra contra a maior potência do planeta Areia, o zelador chegou.
– Ah, senhor presidente, desculpe! Eu acho que… Esqueci um papel meu aqui – ele disse.
– Papel?
– Sim, esse aí que está na sua mão.
– Ah, ora vejam só! Se tem alguém que pode resolver isso pra gente é o meu caro… Ahm… Como é seu nome, mesmo, amigo?
– Jeferson.
– Jeferson! Vamos lá, Jefão. Fala pra nós. Isso aqui é ou não é um documento provando que os Emirados Unidos declararam guerra contra a gente?
– Isso aqui?
– Sim! – falaram todos.
– Uma declaração de guerra?
– Sim!! – exclamaram em uníssono.
– Jeferson, o futuro da nossa nação depende de você! – disse o presidente.
Ele olhou para eles, depois para o papel, depois para eles e, finalmente, pegou o papel.
– Isso aqui é só uma lista de compras – ele concluiu.
– Cumé? – perguntaram todos.
– É, sim. Veja. Tônica Maneira. Aquela de Manos Gerais, sabe? É uma delícia!
– Mas, e a Ameaça ao Pernil?
– Isso aqui? Não, isso é Maçã Para a Nola. Nola é a minha esposa.
– Mas e a Guerra Física? – tentou ainda Embolsonada, totalmente inconformado.
– Ah, não, não. Isso é garrafa e suco. Eu ainda não terminei de fazer a lista…
Todos pararam, encarando-o sem acreditar.
– Eu, ahm… Posso pegar?
Ninguém falou nada.
– Pensando bem… Deixa. Eu, ahm… Sei de cabeça.
Ele foi saindo da sala, devagarzinho.
– Aliás, senhor presidente, achei ótima essa nova lei de não usar vogais. Economiza tanto tempo! E fica tão mais claro! Até mais, gente!
E se foi pela porta.
Os três se entreolharam.
– E se a gente abolisse as consoantes? – tentou Gorducho.
¹ Sim, dentre as mudanças que Embolsonada fez no governo, uma delas foi chamar o Ministério da Cultura de Ministério da Curtura. A explicação é óbvia: a cultura dele era tão curta, que fazia todo o sentido. Embolsonada, aliás, vivia rindo sozinho, toda vez que falava este título, porque se achava particularmente espirituoso por ter feito esse trocadilho.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais