O garoto que era fascinado por pessoas
– Eu sou fascinado por pessoas – disse ele, finalmente, após um exaustivo silêncio.
– Como é? – indagou o seu amigo, sentado à sua frente em um daqueles bancos reservados, típicos de lanchonetes estadunidenses, que comportariam quatro pessoas em um banco longo e estofado, com uma mesa no centro e uma espécie de separação entre os outros bancos.
– Eu sou fascinado por pessoas. Simplesmente fascinado.
– O que você quer dizer com isso? Eu não estou te entendendo.
– O que eu quero dizer é que eu sou fascinado por imaginar a vida delas, sabe?
– Você quer dizer, você é um enxerido de carteirinha.
– Não, não é isso, você não está me entendendo – retrucou o pobre garoto autor de crônicas que ninguém lia.
– Fascinado por pessoas é um novo modo de se dizer enxerido? Ou isso é só mais um daqueles pensamentos que você tem depois de ver televisão demais até tarde da noite?
– Não! Deixa eu explicar. Quando eu vejo uma pessoa, um desconhecido, é como se tivéssemos acabado de nos encontrar…
– Se é um desconhecido, é óbvio que vocês…
– Deixa eu terminar! O que eu quero dizer é que, digamos, eu acabei de conhecer uma pessoa, mas eu não sei absolutamente nada sobre ela. Sobre o seu passado, sobre a sua história. É como se fossemos duas cordas distintas, e, em um momento, o destino nos uniu com um nó, mas um nó minúsculo, em um pequeno momento de nossas vidas, como uma gota no oceano…
– Ah, não, lá vem a filosofia de livros de autoajuda! – retrucou o amigo, um loiro de cabelos longos presos em um rabo de cavalo ridículo, enquanto limpava os óculos.
(Pensamento depois de ver tv às altas horas da noite: como uma pessoa com catarata consegue limpar os seus óculos? E mais, como o Mr. Magoo fazia tudo aquilo?)
“Pare de pensar besteiras!”, murmurou para si mesmo o “escritor”.
– Deixa eu terminar. O que eu estou tentando dizer é que, antes daquele nó, há muitos outros nós, muitos outros acontecimentos. Do mesmo modo, depois do meu nó…
– E você já está se amarrando com um desconhecido? Isso é feio…
Ele ignorou o comentário.
– … Haverá muitos outros acontecimentos. E é isso que eu gosto de imaginar. O que a pessoa fez antes de me conhecer? O que a pessoa vai fazer depois? Do mesmo modo, no final do dia, eu vou para a minha casa, tomar banho, ver televisão, quem sabe mexer um pouco na internet antes de me deitar, mas, e aquela atendente ali, está vendo?
– Aquela um tanto avantajada nos…
– Isso, ela mesma. O que ela vai fazer quando acabar de trabalhar? Voltar para casa para o marido e filhos? Ir para a casa da mãe? Será que vai ver o namorado? Ou a namorada, de repente? E mais, o que ela fez antes de vir para cá? Como foi a sua infância? O seu pai ainda está vivo? E quem foi o pai do seu pai? De onde veio seu avô?
– Pára que você já está me perdendo! Você está viajando demais!
Uma garçonete parou ao lado dos dois, com um bloquinho na mão esquerda e uma caneta na mão direita, um boné assustador cobrindo os cabelos, no mesmo estilo de uniforme que todos tinham de usar naquele lugar.
– O que vão pedir? – indagou, no que o loiro quase chorava de agradecimento pela pausa.
– Eu quero um hambúrguer com fritas e um milquesheique de chocolate.
– Eu só quero um café com leite – respondeu o outro.
– Sempre café com leite! – murmurou o amigo para si mesmo.
– Mesmo assim, e você? – indagou o garoto-pentelho-escritor-mal-sucedido para a moça.
– Como, e eu? – retrucou a outra, sem entender.
– Quero dizer, o que você faz da sua vida? Além de trabalhar, claro.
– O que isso…
– Tem um cachorrinho, algo assim? Um peixe dourado, talvez? Você tem cara de quem tem uma casa própria, deve estar terminando a faculdade, eu acho. Algo me diz isso.
– Eu só tenho dezessete e moro com os meus pais.
– É, eu nunca fui bom em medir idades… Mas, mesmo assim, o que você fez nestes dezessete anos? E o que vai fazer depois? Não tenho nenhum fato memorável que você queira nos contar?
A garçonete se virou e deixou o garoto falando sozinho com o ar, enquanto o outro só ria.
– Entende o que eu quero dizer? Eu sou fascinado por imaginar as vidas das pessoas.
– Acho que você não tem o que fazer da vida, se quer saber a verdade.
– Não… Aliás, sim. Mas, mesmo assim, eu acho incrível isso. Por isso que eu adoro o metrô.
– Porque o metrô de São Paulo é o mais limpo do mundo?
– Também. O que eu quero dizer é que o metrô é uma coisa incrível. Você entra em um vagão por debaixo da terra, em uma enorme estação, repleta de pessoas, todas desconhecidas. Eu fico como louco lá. O que será que aquele fez? E aquele ali? Para onde aquela mulher com um saco de compras está indo? Por que aquelas freiras estão ali? Aquele cara com uma arma na mão comprou ela em uma loja de brinquedos?
– Você está ficando doido. Deveria para de tomar tanto café.
– É a mesma coisa na rodoviária. É incrível, cara. Ver todas aquelas pessoas, carregadas de malas, indo daqui para não sei onde, não sei por quê, para fazer não sei o quê… É como se, por um único segundo, todas as nossas vidas estivessem unidas, em um grande nó, antes que a vida siga adiante… E nós nos separemos, cada um para o seu canto. Eu acho que isso é uma nova visão para a teoria das supercordas.
– Uma coisa não tem nada a ver com a outra…
– Mas o que é a nossa vida, se não uma enorme corda? Uma corda que se desenrola…
“Pronto, começou a filosofar. Agora é só esperar um pouquinho…”, pensou o amigo, olhando em volta, desesperado.
– … Adiante em inúmeros caminhos…
“Quatro. Três…”.
– … E cada uma se encontra com outra…
“Dois, um…”.
– … Que, de repente, não tem nada a ver com ela, mas se junta em seu intrincado nó, e todos nós estamos unidos naquele momento…
– Aqui está o pedido – disse um garçom, deixando uma bandeja sobre a mesa; a garçonete estava com medo demais para voltar.
– Oba, meu café-com-leite! – exclamou o cronista-fascinado-por-pessoas-com-enorme-tempo-livre-disponivel, adicionando açúcar, chocolate em pó, misturando, comendo a espuma e tomando um gole e queimando a língua, tudo ao mesmo tempo.
O amigo suspirou aliviado.
– Do que eu estava falando mesmo? Perdi a linha de pensamento.
– Nada de muito útil. Você só estava viajando de novo. Agora toma o seu café que você fica normal de novo. Não esquece de tomar de novo em duas horas, hem? – lembrou o amigo, mordendo o hambúrguer. A bebida era o remédio, uma espécie de Prozac. Fascinação ou não fascinação, já estava de saco cheio daquilo. Era coisa demais para a sua cabeça. Afinal, se ele já tinha problemas em se lembrar do que ele mesmo havia feito ou viria fazer, quem diria imaginar a vida de outras pessoas? Que falta do que fazer! Logo mais, ele iria filmar pessoas em uma casa, vinte e quatro horas por dia, e ficar olhando lá feito louco!
“Fascinado por pessoas, onde já se viu… Esses escritores são todos meio doidos mesmo”.
Nota do autor, outubro de 2020: Pois é, boa parte do trabalho de um escritor é imaginar a vida alheia. E, devo dizer, isso diminuiu muito com o tempo, conforme eu passei de mero colegial para graduando e, dali, para residente, empregado, professor e tudo mais.
De vez em quando, tenho saudade da época em que podia ficar sentado com um amigo, tomando café e jogando conversa fora…

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais