A origem dos médicos
Milhares de anos atrás, no berço da civilização, entre a região norte da África e o Oriente Médio, não havia médicos propriamente ditos. Havia xamãs, homens capazes de, através de suas danças, ervas e convocações de espíritos, tentar curar os doentes. Eles, entretanto, não conseguiam sucesso todas as vezes, e muitos morriam em suas mãos.
Um dia, porém, uma mulher deu à luz dois bebês que iriam mudar o mundo para sempre. No entanto, durante o parto, a mãe morreu, e os dois filhos ficaram nas mãos do xamã que havia feito o seu parto. O primeiro era uma menina, que ele chamou de Sol da Meia Noite, pela brancura da sua pele; o segundo, um menino, que ele chamou de Estrela da Manhã, na linguagem antiga que usavam na época, devido à marca que possuía em seu rosto.
O xamã, dotado de seus poderes mágicos, soube, no momento em que viu as duas crianças, o que ocorreria em seu destino e dos incríveis poderes de que eram dotadas. Assim, levou a garota, Sol, para si. E, quanto ao garoto? Bem, deixou-o à própria sorte, no meio da estrada.
Mas o destino é muito mais poderoso do que qualquer homem, e ninguém pode influenciá-lo. Algumas horas depois, conforme um viajante se aproximava pela estrada, ouviu o fraco choro do menino e o resgatou; era um mercador do deserto e iria levá-lo consigo para que sua esposa cuidasse. Achou que era um presente dos céus, pois já há muito queria um filho, mas sua mulher era infértil.
O tempo passou. Conforme foi crescendo, o mercador percebeu que Estrela da Manhã não era um garoto normal. Toda vez que caía ou se machucava, em muito pouco tempo estava recuperado; e, não só isso. Certa vez, seu camelo ficou preso nas traiçoeiras areias do deserto e quebrou a pata dianteira; apenas de tocá-lo, Estrela conseguiu curá-lo. Outra vez, o próprio mercador caiu doente, e, apenas de pôr a mão em sua testa, Estrela o recuperou.
– Ahmed – ele falou, pois era assim que o chamava. – Quero fazer um teste com você – ele disse, certo dia. – Você sabe que você não tem irmãos, pois a sua mãe… Não consegue gerar nenhuma criança em seu ventre, certo?
– Sim, papa – ele disse. Sempre soube da história de sua vida, que havia sido encontrado na estrada, mas nunca tivera vontade de conhecer seus pais de verdade. Afinal, se havia sido abandonado, havia um motivo.
– Será que você consegue curá-la com os seus incríveis poderes?
– Acho que sim.
O garoto apenas encostou no ventre da mãe; e, de fato, pouco tempo depois, a mulher já sabia que estava grávida.
– Você consegue curar tudo, Ahmed! Tudo!
A notícia logo se espalhou pela pequena aldeia onde moravam e, de lá, por toda a região. Em pouco tempo, dezenas de pessoas perfaziam grandes distâncias para encontrar o garoto miraculoso, que poderia curar tudo e todos – e saíam satisfeito, pois ele era de uma família simples, não tinha qualquer ambição ou ganância e curava as pessoas simplesmente por amor ao que fazia e amor à vida.
Não que não o agradecessem; quem podia, dava-lhe dinheiro, ovelhas, porcos, galinhas, legumes, o que dispusesse. Estrela e seu pai agradeciam, mas nunca cobraram ninguém que não trouxe nada.
E assim o tempo foi passando, e Estrela se tornou um grande homem.
Porém, do outro lado do continente, ao norte, para onde o xamã havia levado Sol…
Lá havia grandes cidades, as pessoas eram ricas e padeciam de grandes doenças. Mas Sol estava sempre lá para tratar de todos – por um preço, logicamente. Rapidamente, o xamã fez uma grande fortuna às custas da menina. Na época em que era adolescente, eram os mais ricos daquela localidade, e pessoas vinham de todas as direções, inclusive da Índia e da Ásia, para conseguirem o tratamento.
E, se a pessoa não pudesse pagar…
– Sinto muito. Próximo! – dizia o xamã. Não perdia tempo com pobretões.
Contudo, o xamã acabou ouvindo falar de um tal de Ahmed, que morava em um país muito distante, ao sul, que curava todos de graça.
– Não pode ser!
Imediatamente, ele soube que se tratava de Estrela da Manhã – e que, enquanto o garoto continuasse vivo, ele correria riscos. Se todos decidissem se tratar com ele, quem estaria disposto a pagar para se tratar com Sol?
Ele contratou um grupo de mercenários e mandou que achassem o homem e o trouxessem até ele – vivo ou morto.
Encontrá-lo não foi difícil; bastou ir perguntando, conforme rumavam para o sul, pelo homem que poderia curar quaisquer males, e foram lhes indicando. Após duas semanas de viagem, os homens chegaram àquela região desértica onde moravam e viram, em uma cabana simples, um homem sentado em uma cadeira, ao lado de outro, que se apoiava em um cajado. Diante do homem sentado, uma fila, que trazia objetos em suas mãos, entregavam ao homem de cajado, ajoelhavam-se diante do outro, e esperavam que ele colocasse sua mão em suas cabeças, para curá-los.
E assim ele fazia; mas, ocasionalmente, levantava e abraçava a pessoa, que saía chorando de tanta felicidade.
Os mercenários, embora por natureza violentos, vendo uma fila tão pacífica de pessoas, decidiram entrar na fila e tentar convocar o homem sem levantar suspeitas.
– O senhor é Ahmed, aquele que cura tudo e todos?
Estrela assentiu.
– Senhor Ahmed, o grande xamã do norte deseja falar com o senhor em particular.
O homem ficou um pouco em silêncio.
– Ele não pode vir aqui?
– Infelizmente, não. Necessita que o senhor vá até lá.
– É caso de vida ou morte?
– Sim.
– Mas não posso abandonar meu posto… Há outras pessoas morrendo por aqui.
– O grande xamã paga o quanto desejar.
– Não é uma questão de dinheiro. É uma questão de quantidade de pessoas… Mas esperem. Até o final da tarde, lhes darei a resposta.
Os mercenários não ficaram muito satisfeitos com a decisão do homem, mas optaram por esperar; só usariam força, se ele realmente se recusasse a ir por alguma bobagem como pessoas que não iria curar no tempo em que estivesse fora.
Na cabeça de Estrela, porém, ficava a pesar as duas situações: se fosse, deixaria de atender centenas de pessoas que poderiam vir nas próximas semanas. Por outro lado, se não fosse, tinha certeza de que deixaria um doente, possivelmente grave – ou não teria mandado seus emissários em uma jornada tão longa e perigosa – à própria sorte. E não conseguiria dormir com isso.
Assim, ao final do dia, anunciou ao seu pai que iria com os emissários. E, quanto aos doentes que viessem nos dias seguintes… Bem, pediria que voltassem dali a algumas semanas ou, se fosse muito urgente, que esperassem até seu retorno.
A viagem foi rápida; Estrela exigiu que andassem o mais rápido que pudessem, para que pudessem retornar igualmente rápido, e o mínimo de pessoas sofresse com sua ausência. A jornada, que deveria levar uma semana e meia, levou apenas cinco dias.
Quando o xamã soube da notícia, não conseguiu se conter de felicidade; imediatamente veio se encontrar com o homem.
– Então, você é Ahmed, o homem que pode curar tudo?
– Sim, meu senhor – ele falou.
– Conseguiria curar o braço deste homem? – ele indagou, apontando para o mercenário que estava ao seu lado.
– Mas o braço dele não está doente.
De súbito, o xamã puxou sua espada e arrancou a mão do homem; imediatamente, os outros mercenários sacaram as suas armas, mas ele ordenou que todos esperassem.
– Vamos ver se o que Ahmed diz é verdade.
Estrela deu um passo à frente, pegou a mão que estava caída no chão, encostou-a no coto e, como mágica, ela estava grudada novamente e se movendo como se nada houvesse ocorrido.
O mercenário não conseguia acreditar no que havia acontecido.
– Muito bem – o xamã falou, dando tapinhas no ombro do mercenário, para que saísse do caminho. Em seguida, pegou o homem pela boca, puxando-o para perto de si para perscrutar sua face. Encontrou a marca de nascença na lateral esquerda, bem próxima ao olho; ainda parecia uma estrela, embora bem menor do que antes. – Ora, ora, é você mesmo, Estrela da Manhã…
O homem não conseguia compreender o que estava acontecendo.
– Estrela da Manhã?
– Levem-no para os calabouços! – exclamou. – Imediatamente!
Ainda que um tanto incertos, depois do que acontecera, os mercenários agarraram o homem, segurando suas mãos atrás das costas, e o levaram para a cela, onde o trancafiaram. Estrela inicialmente tentou brigar, mas não por muito; era uma pessoa pacífica e, acima de tudo, de fé. Sabia que tudo caminharia para o melhor e, se tivesse mesmo de passar por aquilo, havia um motivo.
Quando retornaram para receber seu pagamento, o xamã lhes deu o combinado – e nada mais.
– E se ele não conseguisse curar o meu braço? – o homem indagou.
– Ora, ora – o xamã respondeu, batendo-lhe de leve na face. – Se não conseguisse, iria significar que vocês fizeram o trabalho errado. Considere, então, como… Um trabalho bem feito.
Estrela ficou preso no calabouço por um longo tempo, durante o qual só tinha informações a respeito do que acontecia através dos comentários dos guardas. Quando entreouviu uma conversa a respeito de Sol, chamou um deles e perguntou quem era.
– Sol é uma mulher, a filha do Grande Xamã. Ela pode curar tudo e todos – o homem disse. – Mas, para isso, ela solicita uma quantia enorme de dinheiro. Pessoas vêm de todos os lugares, vendem suas casas, camelos, cavalos, tudo para que ela possa curá-los.
– E se a pessoa não tiver dinheiro? – perguntou o prisioneiro, surpreso.
– Ela não cura.
– Mas isto é… Ela ou o Grande Xamã quem diz?
– Acho que no começo, ela era uma boa pessoa – respondeu o guarda. – Mas, agora, está igualzinha ao pai. Tão mesquinha quanto.
Estrela sentou-se na cela, pensando. A mulher possuía os mesmos poderes que ele, e era filha do xamã – seria ele, então, também filho dele? Isso explicaria por que tinha estes poderes, e mais, explicaria por que ele fizera com que o buscassem.
Mas, por que havia o xamã o deixado na estrada, onde seu pai o encontrou? Se tivesse duas pessoas capazes de curar, não seria melhor?
Contudo, o mais importante era: precisava sair dali. Não poderia ficar o resto da vida trancafiado naquele calabouço; havia pessoas que necessitavam da sua ajuda. Sabia que seu pai viria buscá-lo, se percebesse que não voltava, mas quanto tempo levaria isto? E mais: seria seguro para ele?
Porém… Como escapar?
A solução veio quando um dos guardas que veio lhe trazer a comida estava mancando.
– O que aconteceu? – ele perguntou.
– Eu tenho esta dor no quadril há muitos anos… De vez em quando, me ataca forte. Por isso, fui transferido para esta função…
– E por que não pediu para Sol curá-lo? Se vocês trabalham para o Grande Xamã, tenho certeza de que sua filha iria curá-los de bom grado.
– De forma alguma! – ele respondeu. – O último de nós que precisou fazer uma solicitação para que Sol curasse o seu filho não conseguiu nada! Ela disse que só iria curá-lo, se lhe pagasse o valor da sua casa e mais um pouco. Mas o homem não tinha como, até tentou vender a casa, mas não conseguiu a tempo. Seu filho morreu antes.
– Como Sol é cruel, não?
– Demais. Acho que o poder subiu à sua cabeça. Logo, vai se declarar rainha deste lugar…
Ficaram ambos em silêncio por um pouco.
– Por favor, me dê a sua mão – Estrela pediu.
– A minha mão? O que você vai aprontar, prisioneiro?
– Só um segundo. Prometo que vai ajudá-lo com a dor no quadril.
O guarda o encarou com incerteza. Como os mercenários haviam participado de tudo e ido embora, ele não sabia quem era o prisioneiro, ou por que estava lá, e muito menos de seus poderes impressionantes. Mas o quadril lhe doía tanto! Bem, o que lhe custaria dar a mão, não? Manteve a direita apoiada em sua espada e estendeu a esquerda pela pequena janela que havia na porta de metal.
Estrela pegou a mão dele nas suas, e algo como uma lufada de ar quente percorreu o corpo do guarda. Quando percebeu, a lufada havia levado embora toda a dor.
– Mas isto é… Quem é você? Como?
– Eu sou Ahmed. E, considerando que o Grande Xamã mandou me prender, acho que sou irmão de Sol da Meia Noite. Faço isto que fiz com o senhor há muitos anos na minha terra, mas sem cobrar nada.
O guarda ficou surpreso.
– Eu preciso sair daqui. E eu preciso falar com Sol. O Grande Xamã deve estar usando ela a seu favor. Deve ter colocado toda esta maldade em sua cabeça!
– Espere um pouco. Nós vamos dar um jeito.
Pouco tempo depois, todos os homens que faziam guarda naqueles calabouços desceram as escadas e se postaram diante da cela de Estrela.
– Sol está neste momento no grande salão, atendendo aos pedidos. É só subir aquela escada, no fim do corredor. Estaremos todos atendendo uma intercorrência no andar inferior. E, curiosamente… – sussurrava o guarda que havia sido curado. Puxou a argola que continha as chaves e a deixou cair no chão, diante da cela. – Curiosamente, deixamos cair a chave aqui, na frente da sua sala, na pressa de descer para cuidar da intercorrência. Está certo?
O homem assentiu; e, em seguida, todos os guardas se foram, gritando que havia algo errado no andar inferior. Estrela pegou a chave do chão, abriu a porta da cela e fugiu; no fim do corredor, pegou uma capa que estava pendurada à parede, enrolou-se e subiu.
Não foi difícil encontrar o grande salão; havia uma fila de pessoas, que passavam primeiramente com o Grande Xamã, que lhes perguntava o que tinham e cobrava de acordo, e depois com Sol, que os curava. Seu irmão entrou no fim da fila, encoberto, e foi caminhando atrás; pôde observar como Sol parecia estar extremamente enfadada com o que fazia, sem ter o menor amor, completamente diferente dele.
Por fim, chegou a sua vez; poderia dizer que não tinha dinheiro algum e ir embora; poderia, aliás, ter saído antes da fila. Entretanto, ele queria ver a sua irmã de perto, queria ver a mulher que curava apenas através de pagamentos e que parecia ser a segunda pessoa mais cruel de todo aquele país.
– Qual o seu problema, homem? – indagou o Grande Xamã.
– Eu tenho algo em meu peito… Que acho que nem mesmo minha irmã será capaz de curar.
– Como é? – indagou o outro.
Estrela abaixou seu capuz e olhou diretamente para Sol; a moça era mais branca que o leite, como se fosse realmente a lua cheia, a brilhar no meio da noite. Mas seus olhos… Seus olhos eram tão frios como os da lua.
Talvez…
Talvez não tivesse sido o Xamã quem a deixara assim; talvez, ela já tivesse nascido assim. Duas pessoas totalmente diferentes, apesar de irmãos…
– Eu tenho uma dúvida em meu peito… Quem é nosso pai?
Sol parecia não compreender.
– Quem é você? Como pode dizer que é meu irmão? Não tenho irmãos – ela falou.
– Guardas! Guardas! – o xamã gritou, mas não havia ninguém; haviam todos descido para cuidar da intercorrência.
– Porque nós compartilhamos um poder inacreditável… E eu sei que não sou filho do homem que me criou. E também tenho certeza de que você não é filha deste homem que se diz seu pai.
– Estrela! – gritou o xamã. – Fique quieto!
– Me diga, Sol… Por que você faz isso? Por que cobra para curar as pessoas?
– É o meu trabalho – ela respondeu, simplesmente.
– Mas, você acha certo que pessoas que não podem pagar não sejam curadas?
Ela não respondeu, mas seus olhos permaneciam gélidos.
O Grande Xamã, vendo que a situação se tornava cada vez mais perigosa, sacou a sua espada e investiu contra Estrela; este desviou uma vez, desviou outra, mas acabou sendo perfurado no coração pela espada.
Segurou-se com toda a força à lâmina, fincando-a mais no peito; o xamã não compreendia o que ele fazia. Por fim, desmoronou sobre o trono de Sol, perfurando-a também.
– Não! – gritou o xamã. – Nããããooo!!!
Ele caiu de joelhos; os dois haviam morrido, devido à sua ganância. Poderia ter deixado que Estrela vivesse em seus confins; poderia ter deixado tudo da forma como estava, mas não. Queria que Sol dominasse tudo. Aliás; queria ele mesmo dominar tudo.
Quando as duas almas deixaram seus corpos, um vento frio entrou no Grande Salão, circundando-as. Quem estava lá pôde ouvir os seguintes dizeres:
Pobres de vós, homens, que não sabeis apreciar o que vos dei. Doravante, nunca mais podereis curar nada completamente. Nunca mais tereis a capacidade de curar através de suas próprias mãos. Doravante, dependereis dos conhecimentos vós adquirirdes e nada mais.
Quando os guardas retornaram e viram o que havia acontecido, o xamã os ameaçou de morte, chamando-os de incompetentes. Puxou a espada do cadáver de Estrela, mas, antes que conseguisse empunhá-la para ameaçar os guardas, eles já o haviam segurado pelos braços e pernas e, sem que sequer pudesse espernear ou ameaçar, executaram-no com a própria espada.
E foi assim que surgiram os médicos; a partir de Sol e Estrela, a medicina começou a se desenvolver, porém sempre com este empecilho: nunca mais conseguiriam curar tudo ou todos, e dependeriam exclusivamente de seus conhecimentos.
Nota do autor, outubro de 2021: não me lembro exatamente de onde tive a ideia para esta história, mas me lembro que a escrevi enquanto estava viajando para o Rio Grande do Sul, em 2013. Inclusive, acho que a terminei no aeroporto, na volta!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais