A robomorfose
Quando certa manhã Gregório Machina despertou de sonos intranquilos, encontrou-se totalmente transformado em um robô. Sua primeira sensação, na realidade, não foi do frio das suas partes metálicas que ficavam à temperatura ambiente, ao esfregar seus olhos de pálpebras metálicas, nem o peso excessivo que seu corpo exercia na cama já envergada, muito menos o fato de que respirar era totalmente opcional; sua primeira sensação foi uma enxurrada de informações. Primeiro, o local onde estava, porém não simplesmente um quarto, mas, sim, as coordenadas geográficas deste quarto em detalhes tridimensionais; segundo, a temperatura local – dezoito graus Celsius –, o horário do dia – sete horas e três minutos da manhã, horário GMT -3 –, terceiro, a pressão atmosférica, de pouco menos que uma atmosfera; quarto, a sensibilidade de pressão por milímetros quadrados de cada um dos seus nanossensores que lhe permitiam saber que ele estava deitado em uma cama.
Essa avalanche de informações, no entanto, não lhe pareceu estranha; ele simplesmente concluiu que estava deitado em seu quarto e que estava frio, portanto, deveria se levantar, lavar o rosto e colocar uma roupa mais quente para poder ir trabalhar naquele dia. Porém, ao entrar no banheiro e olhar para o espelho, seus sensores ópticos identificaram uma imagem muito diferente: era ele, mas não era ele. Era ele, no sentido de que possuía dos olhos, um nariz e uma boca; não era ele, no sentido de que sua pele era agora toda de metal, suas sobrancelhas, partes móveis de metal, suas bochechas, nada além de uma elevação de metal, e seus dentes, bem, uma fileira metalizada que era, na realidade, meramente ilustrativa, porque seu sistema digestório terminava na garganta, pode onde emitia o som da sua voz.
Diante de tal assustadora transformação, tudo o que Gregório pôde pensar neste momento foi:
Como vou explicar essa cara prateada para o meu chefe?
E o pior! Era seu último dia do período de experiência, o que queria dizer que era a oportunidade perfeita para seu chefe demiti-lo!
Por outro lado, ser um robô tinha lá as suas vantagens, e logo seu cérebro viajava a velocidades fotônicas pela internet, buscando alternativas para deixar o seu rosto de forma apresentável. Infelizmente, todas elas envolveriam obter materiais que só poderiam ser comprados mais tarde no dia, ou entregues dali a alguns dias em sua casa.
Não tem jeito.
Ele se trocou, colocou um gorro para cobrir sua cabeça prateada e brilhante, óculos escuros para esconder seus olhos vermelhos penetrantes e estava quase saindo, quando sua irmã viu a sua mão metálica na maçaneta.
– Greg! O que é isso?
– Eu não sei – ele falou. – Mas parece que, à semelhança de Gregor Samsa, eu sofri uma transformação durante a noite!
– Do que você está falando?
Naqueles poucos segundos em que a sua irmã lhe perguntara “o que é isso?”, ele conseguira pesquisar na internet a palavra “Transformação” e, depois, “Metamorfose”, e logo lhe surgiu o livro de Kafka.
– O personagem de Kafka que vira um baratão.
– Ai, meu Deus! Achei que isso fosse ficção!
– Pois parece que não. Ao menos, para mim – ele retrucou, olhando para as mãos metálicas.
– E você vai simplesmente sair por aí desse jeito?
– Preciso trabalhar – ele falou. – Não posso perder o emprego, vocês dependem de mim.
– Você não consegue, de repente… Fazer um holograma ou coisa do tipo, igual o Visão faz, não é?
Ele balançou a cabeça; não tinha tanta tecnologia quanto os super-heróis.
– Bom, você trabalha em uma linha de produção de burritos. Duvido que alguém olhe duas vezes para você.
– Isso lá é verdade.
– Coloque essa máscara aqui, como se estivesse resfriado, e acho que você vai passar pelo transporte público sem problemas.
Assim, Gregório saiu, com camisa de manga longa, calça, gorro, óculos de sol e máscara. O dia já começava a esquentar e uma pessoa normalmente sentiria muito calor com estas roupas, mas, para Gregório, a temperatura de 30 graus era totalmente indiferente da temperatura de 18; seu corpo continuava funcionando perfeitamente, e ele não tinha mais glândulas sudoríparas. Só iria superaquecer se ficasse parado no sol por muito tempo. Assim, ele passou sem ser notado pelos trens, bateu seu cartão sem ser notado pelos colegas e se pôs a trabalhar na linha de produção, ainda de gorro, máscara e óculos escuros.
Porém, logo ele descobriu que conseguia trabalhar muito mais rápido do que antigamente. Tão mais rápido, que conseguiu acelerar a velocidade da sua esteira, enquanto dobrava os burritos. Sua produtividade, subitamente, aumentou em dez vezes, e embora ele tivesse feito isso com inocência, logo o seu chefe apareceu para ver por que ele estava produzindo tantos burritos, que a equipe de embalagem não estava dando conta.
Ele não soube explicar.
– Estou trabalhando mais rápido do que antes – disse ele, com a sua voz mecânica.
– Uhm… – respondeu o chefe.
Pouco depois, ele reorganizou toda a equipe; colocou todos os outros que antes também dobravam burritos para a parte de embalagem, e Gregório ficou na linha de frente, produzindo o equivalente ao que dez pessoas normalmente fariam.
Seus sensores, porém, não indicavam esgotamento nem nada do tipo; tinha bateria suficiente para três dias e não ficava cansado de ficar em pé ou de fazer o mesmo movimento repetitivo. Não precisa comer nem ir ao banheiro; não precisava, na verdade, fazer nada além de trabalhar. Então, no horário de almoço e nas pausas, ele continuou trabalhando, até dar o horário de bater o cartão e voltar para casa.
Quando voltou para casa, enquanto a família comia, ele ficou sentado à mesa, observando; ofereceu-se para lavar a louça e o fez tão rápido quanto a sua mãe tirou a mesa; depois, sentou-se com a família para assistir à televisão, mas os programas não pareciam lhe fazer qualquer sentido. Só sabia que deveria rir, quando os outros estavam rindo também; sabia que deveria ficar emocionado, mas não conseguia entender por que uma ponte que caiu com pessoas em cima deveria ser tocante, e não um problema de incompetência da gestão municipal. Os comerciais não lhe trouxeram nenhum apelo; não precisava de roupas, nem de comida, nem de maquiagem, nem de, bem, nada além de uma tomada.
E, por fim, quando todos se retiraram para dormir, ele simplesmente ficou sentado na cama, olhando para o nada, esperando o momento de o dia nascer e ele poder ir trabalhar de novo.
Esta foi a sua rotina por cinco dias (no terceiro, ele precisou ficar sentado e ligado na tomada para recarregar a bateria, o que gastou toda a noite), até que a sua irmã, que levantara para tomar água, encontrou-o no quarto, sozinho e silencioso.
– O que está fazendo?
– Nada – ele respondeu, simplesmente.
– Você não dorme?
– Não sinto sono, e minha bateria está em 37%.
– Mas não ficou cansado de trabalhar hoje o dia todo?
– Nem um pouco.
– Uhm… – ela falou, pensativa.
Gregório não precisava descansar, o que significava que ele podia trabalhar o tempo todo, todos os dias. Assim, sua irmã deu um jeito de ele conseguir dois empregos noturnos, em dias intercalados, e um emprego diurno para o fim de semana. Em pouco tempo, Gregório trabalhava o suficiente para quatro pessoas.
Não que ele se importasse; na verdade, ele não sabia fazer outra coisa, pois era um robô, afinal de contas.
A família ficou muito feliz; nunca esteve tão bem de vida! Juntando a aposentadoria do pai, o salário da mãe e os bicos que a irmã fazia com o que Gregório ganhava, estavam quase ricos!
Só que Gregório, no tempo em que ficava fazendo seus trabalhos repetitivos e que exigiam praticamente nada de sua memória RAM, começou a pesquisar outras coisas: começou a se perguntar sobre o sentido da vida. Se bem que ele não saberia dizer se era um ser vivo ou não, já que era um robô, mas ao menos achava que tinha uma consciência, e, bem, apenas seres vivos têm consciência, não é?
Ele não saberia responder, mas logo começou a pensar que aquele trabalho não servia para nada. Quer dizer, servir, servia, mas era o tipo de coisa que qualquer um poderia fazer, não era? Ora, ele era um robô, afinal de contas! Capaz de fazer contas complicadíssimas, de pesquisar coisas na internet em nanossegundos, de resolver até mesmo os mais misteriosos dilemas da física, se lhe dessem tempo e informações!
Tomou, assim, uma decisão.
– Vou fazer engenharia! – anunciou de manhã, quando estava fazendo a troca de turno de um lugar para outro.
– Como é? – questionou sua mãe.
– Preciso fazer algo significativo da minha vida.
O vestibular não estava longe, e ele precisaria de quanto? Dois dias para aprender toda a matéria?
Bem, o tempo passou, ele se inscreveu, foi fazer a prova – já tinha passado tempo o suficiente para ele conseguir fazer uma máscara de silicone que cobrisse seu rosto, de forma que ele parecia um humano comum – e só não gabaritou, porque sua irmã lhe deu a dica de que iria chamar atenção demais. Assim, ele errou propositalmente algumas questões e conseguiu entrar em segundo lugar na faculdade pública de engenharia.
Uma vez lá, deparou-se com um grande problema: ele poderia aprender tudo que havia para se aprender em um mês, talvez menos. No entanto, ele precisaria cumprir todos os anos de curso! Cinco anos seriam tempo demais!
Assim, ele tentou conversar com o diretor.
– Eu faço as provas – ele falou. – Se eu acertar tudo, vocês me deixam ir avançando de ano?
Bem, os professores acharam a proposta maluca, mas, afinal, qual seria a chance de um aluno gabaritar, fazendo uma prova por semana? (Ele queria uma prova por dia, mas os professores definitivamente não deixaram, até porque eles mesmos não teriam tempo de fazê-las).
Assim, durante o dia Gregório fazia faculdade; à noite e aos fins de semana, ele trabalhava; e, enquanto trabalhava, ele devorava os livros. Logicamente, gabaritou a primeira prova; depois, a segunda; depois, a terceira. Os professores começaram a disputar para fazer questões que ele não conseguisse resolver, mas era o mesmo que tentar jogar xadrez com um computador. Não havia como ganhar.
Por mais estranho que fosse, Gregório conseguiu se formar em engenharia em seis meses (muito mais tempo do que ele gostaria, mas tempo o suficiente para que os cérebros dos professores e diretores não explodissem. Por pouco). Logo, começou a trabalhar em um escritório e aproveitou para abusar de sua altíssima produtividade.
Foi tanta, mas tanta, que, ao final da primeira semana, o seu chefe foi chamá-lo.
– Gregório, como você faz para trabalhar tão rápido? Projetos que seus outros colegas levam meses para entregar, você entregou em algumas horas!
– É que eu sou muito dedicado – ele falou.
– Uhm…
Gregório era o funcionário perfeito; entregava os projetos com um prazo muito adiantado, não cometia absolutamente nenhum erro, e seus desenhos eram precisos a uma escala inferior a um milímetro. Ele considerava até mesmo a expansão do solo devido a movimentos tectônicos.
No entanto, havia um problema.
– Gregório, precisamos diminuir os custos deste projeto.
– Este já é o custo mínimo.
– Não, mas veja… Podemos usar o concreto deste fornecedor aqui para esta ponte.
– Mas este concreto é de qualidade inferior. Isso diminuiria a durabilidade da ponte em 75%, além do risco de falha subir em torno de dez vezes!
O chefe suspirou.
– Gregório, Gregório… É o seguinte… Nem sempre a gente usa o material que a gente quer, sabe? Às vezes, a gente tem que usar o material que o cliente quer.
– Mas, que tipo de cliente iria querer usar um material inferior, sendo que estamos dentro do orçamento proposto?
O seu chefe deu de ombros. Gregório simplesmente não conseguiu compreender. Isso se repetiu algumas vezes, e ele percebeu que engenharia não serviria para ele. Decidiu tomar outros rumos; virou advogado.
Sua proeza já havia chamado a atenção de todos, então, desta vez ele não precisou brigar tanto para conseguir fazer sua faculdade em menos tempo. Passou na prova da ordem com menos de um ano de faculdade e começou a exercer sua profissão. Ele conhecia todas as leis e todas as dosimetrias; com um senso de justiça derivado de algoritmos de computador, achou que seria um juiz de sucesso. Passou no concurso, começou a exercer seu cargo e, em pouco tempo, trabalhando 24 horas por dia, sete dias por semana, estava conseguindo pôr as coisas em dia na morosa justiça de seu país. Contudo…
Foi publicado um ofício dizendo que os juízes não poderiam fazer mais do que cinco horas extras por semana; Gregório ficou horrorizado. Pouco depois, a mídia começou a questionar suas decisões: ele não tinha coração? Como poderia condenar, com o mesmo tempo, uma pessoa que tinha roubado um quilo de carne do açougue, e outra que tinha roubado uma casa inteira de família?
– Mas, as leis são bem claras a respeito disso! Furto é furto, não importa o tamanho ou o valor do objeto furtado!
– Mas as leis não são apenas preto no branco – explicou a sua mãe. – É preciso de um pouco de empatia.
Nada conseguia convencê-lo de que era possível acertar estando errado ou contrariando as leis, e ele resolveu desistir do direito.
– Acho que preciso fazer algo mais ligado às pessoas!
Assim, ele decidiu ser médico; no entanto, mesmo fazendo as cirurgias mais perfeitas, sem qualquer tremor da mão, e dando os diagnósticos mais acurados, com listagens de probabilidades decrescentes, ainda faltava algo.
– Não sei, ele é muito frio! – diziam.
– Falta um contato com o paciente, não sei – diziam outros.
– Ele falou que eu tinha 50% de chance de morrer, assim, na lata! – disse outro, por fim.
É, talvez, atividades com mais contato humano realmente não fossem para ele…
Optou pela matemática; criou uma teoria tão impressionante de números, capaz de revolucionar a matemática desde Pitágoras, mas ninguém compreendeu – e nem compreenderia pelos próximos 200 anos!
– Quem sabe física?
Ele desenvolveu uma teoria que unia a física quântica à relatividade geral, dava uma voltinha na teoria das cordas e ainda terminava com um laço de matéria escura. Nem Einstein entenderia; quem diria os pobres mortais que trabalhavam com ele?
Assim, depois de quatro anos como robô, Gregório mais uma vez se sentou em sua cama, olhando para a parede.
Uma máquina excepcional, capaz de mudar o mundo para melhor.
Mas ninguém conseguia compreendê-lo; pior!
Ninguém queria que o mundo mudasse.
Ele foi esquecido; começou a juntar pó; e, um dia, desanimado, esqueceu de se plugar à tomada.
Anos depois, ele foi ligado novamente; ninguém sabia quem ele era ou do que era capaz.
– O que é isso?
– Parece um robô humanoide! Olha o rosto dele!
– Será que ele consegue fazer alguma coisa?
– Não sei… Robô! Fique de pé!
Gregório, uma vez desperto, continuava perdido, sem saber o que fazer.
Bem, talvez, o melhor fosse fazer justamente isso. Fazer o que eles queriam que ele fizesse, sem pensar no que ele queria.
Gregório se levantou.
– Uau! – todos gritaram.
– Robô, qual é a raiz cúbica de 4096?
– Dezesseis – ele respondeu, mecanicamente.
– Uau!
E assim, Gregório continuou, esperando, esperando. Quem sabe, um dia, o mundo estaria pronto para ele?

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais