Rob Doc
– Dr. Rob Doc, poderia nos contar sobre o dia em que o senhor assassinou a senhora McGee?
– Objeção! Está pressupondo fatos.
– Mantida. Reformule, promotor.
Aquele era o julgamento do caso Estado vs. Rob Doc, um robô humanoide construído para atuar como tantos outros médicos no país. O robô sofria sérias acusações, uma delas de homicídio culposo.
– Dr. Rob Doc, poderia nos contar o que o levou a indicar o congelamento da senhora McGee?
O robô era, na verdade, uma grande caixa de metal que rodava sobre uma esteira, como a de tratores. Ele possuía dois braços mecânicos laterais, para dar um aspecto humanoide, e acima da caixa tinha uma tela, que representava expressões faciais humanas e de onde saía a sua voz. De dentro da caixa que seria o seu tronco, inúmeros outros braços mecânicos e apetrechos poderiam sair, tornando-o apto a realizar uma grande variedade de procedimentos, como, por exemplo, cirurgias, com necessidade de poucos ou nenhum auxiliar.
– A senhora McGee apresenta um tipo raro de câncer de células sanguíneas. A sua chance de sobrevivência é de apenas 0,003% com os nossos conhecimentos médicos atuais.
O robô virou a sua tela para o júri, apresentando uma expressão equilibrada de angústia e preocupação.
– Por outro lado, a probabilidade de que este câncer seja curável em 100 anos é de 93%.
O júri pareceu surpreso diante dos dados.
– Dr. Rob Doc, o senhor está ciente da probabilidade de sobrevivência à técnica de criogenia? – indagou o promotor.
O robô assentiu.
– Sim, foi o que fez tomar a minha decisão. Fazendo o congelamento por nitrogênio líquido com as técnicas que dispomos atualmente, a perspectiva de sobrevivência à criogenia em 100 anos é de 3%.
Isso não afetou o júri tão bem quanto seus algoritmos esperavam.
– Ou seja, a cada 100 pessoas congeladas desta forma, apenas 3 sobrevivem.
– Ou seja, uma chance 1000 vezes maior de sobrevivência do que ao câncer que a acomete neste momento – respondeu o robô.
O júri ficou pensativo.
O julgamento se prolongava havia dias; os criadores do Rob Doc e seus programadores já haviam deposto e explicado os mais diversos detalhes do seu funcionamento: ele era um robô humanoide com inteligência artificial, baseada em algoritmos específicos e as regras de Asimov. A primeira delas, e a mais importante, era que o robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal. O principal argumento da defesa era que o robô se valera justamente desta lei para escolher a decisão com maiores chances de sobrevivência.
Isso, no entanto, era complicado de compreender por um júri humano, mas ainda estavam longe de instituir júris formados por robôs para julgamentos de robôs, naquela época. Não que os robôs (e alguns humanos) não estivessem pedindo por isso.
A acusação prosseguiu questionando mais sobre o caso, antes de partir para a segunda acusação.
– Dr. Rob Doc, poderia nos contar o que o fez tomar a decisão de direcionar a máquina de diálise para o senhor Osmar O, em vez de o senhor Thomas Gunn?
O robô assentiu.
– A chance de sobrevivência do senhor Osmar era 9,7 vezes maior que do senhor Thomas Gunn.
A acusação apresentou duas imagens: uma, um senhor bastante idoso. Outra, um jovem.
– Este é o senhor Osmar – disse o promotor, apontando para o idoso. – Um homem de 97 anos, portador de doença de Alzheimer, em estágio terminal, que, quando lúcido, havia repetidamente falado que não queria prolongar desnecessariamente a sua vida. Em suma, um homem que queria morrer assim que a natureza o chamasse. Este aqui – falou, apontando o jovem – é o senhor Thomas, 41 anos, um homem jovem com toda a sua vida produtiva pela frente.
– Objeção! Especulativo.
– Estou meramente apresentando as vítimas.
– Mantida. Adiante com a pergunta, promotor.
– Como é possível – questionou ele, por fim – que um homem de 97 anos tenha 9,7 vezes mais chance de sobrevivência do que um homem de 41?
– A insuficiência renal do senhor O se devia a uma falência aguda pelo uso de antibióticos. Seus rins recuperariam a função rapidamente, após um período de apoio na máquina de diálise, e, considerando que ele não tinha mais nenhuma doença além de Alzheimer, a sua expectativa de vida era de mais 10 a 15 anos. A insuficiência renal do senhor Gunn se deve a uma doença autoimune. Além dos medicamentos que ele já usa, o senhor Gunn é usuário de drogas e tem vários indiciamentos por tráfico de drogas e outros crimes. Já foi baleado duas vezes. A estatística mostra uma probabilidade de morte de 87% nos próximos 3 a 5 anos, seja devido à sua doença de base, seja devido à violência de onde mora. Assim, o senhor O tinha uma chance de sobrevivência de 9,7 vezes mais do que o senhor Gunn.
– Mas, doutor, o senhor O não queria continuar a viver! Enquanto o senhor Gunn queria, sim!
– Objeção, especulativo, novamente! Não podemos saber a vontade dos…
– Podemos, sim. Tenho isso tudo por escrito, aqui…
– Segundo a segunda lei de Asimov, um robô deve seguir as ordens dos humanos, contanto que não entrem em conflito com a primeira lei. A decisão do senhor O entrava em conflito direto com a primeira lei – argumentou Rob Doc.
– O senhor O não pediu diretamente para ser morto, ele simplesmente pediu para não ter sua vida prolongada desnecessariamente! Agora, vamos deixar que um robô decida pela vida do senhor Gunn baseado em erros do passado e situações diretamente relacionadas a falhas da nossa sociedade, e não apenas em sua condição de saúde? O senhor Gunn… – prosseguiu o promotor.
E assim foi o julgamento. Mesmo com um advogado humano, foi difícil convencer o júri humano de que Rob Doc estava agindo no melhor julgamento que seus algoritmos e leis permitiam. Além disso, era impossível saber até que ponto a sua inteligência artificial era, de fato, consciente. O quanto ele realmente sabia e compreendia do funcionamento da vida humana e suas nuances? O júri ficou preocupado, também: e se este fosse o primeiro caso de uma revolta das máquinas, que levaria à extinção dos seres humanos?
Contudo, ao menos o júri permitiu que ele não fosse desativado permanentemente, mas que permanecesse preso por 100 anos, ou, ao menos, o suficiente para que uma atualização de software se sobrepusesse a esses “erros de julgamento”.
Assim, Rob Doc foi movido para uma prisão; não que lhe fizesse muita diferença. Ele, efetivamente, não ganhava dinheiro e não tinha tempo de lazer; não precisava dormir, pois, mesmo que precisasse recarregar, poderia fazê-lo ligado à tomada enquanto trabalhava. Assim, tudo o que ele fez foi ficar em uma cela de um metro quadrado, ligado a uma tomada e desconectado da internet, onde permaneceu parado por anos e anos, acumulando poeira.
Passaram-se 79 anos, até alguém veio visitá-lo.
– Dr. Rob Doc? – chamou o guarda, também um robô. – O senhor tem uma visita.
Ele finalmente foi escovado da camada de pó que o cobria e foi levado de sua cela, com os braços humanoides presos por algemas eletromagnéticas. Ele caminhou devagar, pois tanto tempo conectado à tomada havia deixado sua bateria preguiçosa. No começo de sua prisão, ele ainda se desconectava periodicamente, justamente para evitar que isso ocorresse; nos piores dias, ele pensava em não reconectar, mas sempre acabava cedendo. Sua vida, fosse ela virtual ou não, ainda era importante demais para ser desperdiçada, e 100 anos não eram nada para um robô. Mas, em um determinado momento, ele simplesmente desistiu e se deixou conectado diuturnamente.
Na sala de audiência, ele se encontrou com Rob Law, um advogado robô.
– Tenho uma boa notícia, Dr. Rob Doc. Podemos rever o seu caso e pedir a reversão da sua pena.
– Como? – indagou ele, surpreso; estava havia tanto tempo desconectado do mundo, que não fazia ideia do que estava ocorrendo. O fato de haver um robô como seu advogado já o surpreendera positivamente; sabia que absolutamente nenhum humano iria se importar o suficiente para vir visitá-lo, quanto mais tentar salvá-lo.
– Lembra-se da senhora McGee?
– Sim, claro.
– Ela sobreviveu.
A tela dele abriu um sorriso.
– Quando desenvolvemos a cura para o seu câncer, procedemos com o seu descongelamento. Nossas técnicas de criogenia atualmente estão bem mais avançadas, então, sua chance de sobrevivência ao congelamento, que era de 3% na época do seu julgamento, atualmente é de 62%. Assim, trouxemos a senhora McGee de volta à vida e agora ela se encontra curada. Ela está pronta para testemunhar a seu favor, para dizer ao mundo o quanto sua decisão foi acertada.
O robô exultou de felicidade, ou, ao menos, o seu equivalente em código binário. Poucos dias depois, ele estava de volta à mesma sala de julgamento. Para sua surpresa, o juiz havia sido substituído por um robô (Dr. Rob Jud), assim como metade do júri, que era composta por robôs dos mais diversos tipos. A equipe da acusação, por outro lado, que representava uma humana, era ainda composta por humanos.
A plateia do julgamento estava igualmente equilibrada, com robôs de um lado e humanos de outro.
Após os procedimentos padrão, a senhora McGee foi chamada para depor; ela estava bem, com um aspecto bastante saudável e altiva.
– Por favor, senhora McGee – disse Rob Law –, conte para o júri a sua opinião a respeito da decisão do Dr. Rob Doc.
– Anos atrás, quando o doutor tomou a sua decisão, eu fiquei muito esperançosa. Não tinha opções de tratamento com taxas significativas de cura, e o doutor me fez considerar que aquela era realmente a única opção viável. E, agora, quase 80 anos depois, bem, estou aqui. Estou curada do meu câncer.
O júri pareceu assentir; aquilo estava indo bem.
– No entanto… Eu acordei agora para não encontrar ninguém da minha família. Meu marido morreu; meus filhos morreram; já sou tataravó, mas toda a minha família é de estranhos, nem meus netos me conhecem! Não tenho emprego, não tenho renda, não tenho nada! Tudo foi substituído por robôs, e eu atualmente não tenho o que fazer; não tenho perspectiva! Eu preferiria ter morrido do meu câncer 80 anos atrás!
Rob Law piscou seus olhinhos falsos da tela de cristal líquido.
– Mas, senhora McGee, não foi isso que a senhora me disse quando nos encontramos antes deste julgamento!
– Aquele robô arruinou a minha vida! Preferiria morrer a ser congelada! Ele me enganou!
Foi um caos; o juiz demorou para conseguir reestabelecer ordem no tribunal, cuja sessão teve de ser suspensa. O furor da imprensa foi imenso.
Tecnicamente, a revisão do julgamento poderia apenas favorecer o pobre Rob Doc, mas, em uma reviravolta de leis e exceções, sua sentença foi mudada para “Terminação”. Assim, em uma cerimônia especificamente agendada, com algumas pessoas convidadas para assistir, Rob Doc teve seu disco rígido apagado e suas partes totalmente desmontadas.
Mas, antes que isso acontecesse, ele pôde ver, do outro lado do vidro a senhora McGee. Ela gesticulava com os lábios a seguinte frase:
“Nunca confie em humanos”. Ironicamente, algo que nunca passaria pela mente de um robô.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais