O Caso do Dia das Bruxas
– Nós precisamos nos preparar para o Dia das Bruxas!
Foi exatamente assim que a Isabella começou a falar comigo naquele dia. Eu já havia me acostumado; ocasionalmente, ela falava comigo como se estivéssemos continuando alguma conversa que ela provavelmente já tinha criado na sua mente, incluindo, certamente, todas as minhas respostas. Isso, no entanto, não me impedia de todo de ficar totalmente perdido.
– Do que você está falando, Isa?
Porque, se tinha uma coisa que eu sabia, e que tinha ficado tremendamente claro para mim depois do “Caso do Filme de Terror”, era que Isabella Angier não acreditava em absolutamente nada sobrenatural. Assim, seu interesse pelo Dia das Bruxas, ou pelo Dia de los muertos, em outras culturas, não passava de uma mera curiosidade sociológica.
– Não vai me dizer que você quer sair por aí falando gostosuras ou travessuras? – perguntei, com um sorriso.
Ela me deu um selinho, sorrindo também.
– Seria divertido, mas não. Eu estou falando de uma coisa muito triste. Me acompanhe.
Eu fui com ela até o nosso escritório compartilhado. Nós morávamos em um apartamento com três quartos, mas, como não tínhamos filhos, nem planos de ter, um dos quartos havia virado quarto de hóspedes, e o outro, um escritório que compartilhávamos. Do lado dela, ela puxou uma gaveta arquivo e dele retirou uma pasta, onde estava escrito “O Caso do Dia das Bruxas”.
– O que é isso, Isa?
– Há alguns anos eu venho coletando informações de casos que me aparecem no IML perto do Halloween – ela disse.
Isso não era surpreendente; Isa sempre coletava dados de tudo, tentando encontrar padrões onde a gente não encontrava absolutamente nada. O que era surpreendente, porém, era ela fazer isso a mão, e não no computador.
Logo compreendi por quê.
Ela abriu a pasta e dentro havia pequenos arquivos com descrições pormenorizadas de casos que ela avaliara nesta época do ano.
– Há aproximadamente cinco anos, venho observando um padrão. Crianças que vêm ao IML após as festas de Dia das Bruxas. Na maioria das vezes, elas passam mal, vomitam, às vezes convulsionam, mas, invariavelmente, morrem. Algumas durante a própria festa, algumas, depois, algumas vários dias depois.
– Quantas crianças você juntou até agora?
– 17 – ela disse.
– É muita gente. E você acha que tem um padrão? – questionei.
– Tem um padrão claro – ela falou. – Mortes de crianças sempre me chamam a atenção. Nem todas elas vão para o IML; algumas os pais conseguem a assinatura de dois médicos para evitar a autópsia. No entanto, se elas morrem logo depois de chegar ao hospital, ou em menos de seis horas, os casos vêm para mim. Mortes de crianças não são comuns, ainda bem, mas, nesta época do ano, chamam ainda mais a atenção.
– Eu não estou entendendo aonde você quer chegar, Isa.
– Essas crianças estão morrendo por algum tipo de intoxicação. Eu venho testando diversas coisas ao longo dos anos, até que… Ano passado, eu consegui.
Eu a observei, com expectativa, enquanto ela me mostrava o resultado de um teste de espectrometria que não fazia o menor sentido para mim.
– Ahm… É claro, como não pensei nisso! Logicamente, é o…
– Cianeto! – ela falou, empolgada. Tenho certeza de que não consegui enganá-la, mas enfim. – A grande questão é: como? E por quê? Normalmente a intoxicação por cianeto se relaciona a fumaça, ou alguns tipos de alimentos, mas elas com certeza não vão ingerir mandioca nem semente de maçã em quantidades suficientes. E por que teria algo a ver com fumaça no Halloween?
– Eu… Não faço a menor ideia.
– De qualquer forma, eu dei uma de detetive eu mesma, André, e veja o que encontrei.
Ela abriu um mapa – ela realmente era uma detetive raiz – onde havia circulado uma área e demarcado diversas casas.
– Quase todas essas crianças moravam na região de Alto de Pinheiros.
– Pode ser uma intoxicação local pela água?
– Que só acontece no Dia das Bruxas? Não, André, alguém está fazendo isso de propósito. E só tem um jeito de a gente descobrir.
– Se fantasiando e pedindo doces por aí?
– Exatamente!
Mais uma prova de que a Isabella nunca cansa de me surpreender.
Dali a uma semana, estávamos ambos a caráter.
– Você está fantasiada de… Ahm… Wandinha?
– Não – ela falou. – Marie Curie.
– Ah!
– E você quase não está entregando a sua função nessa investigação, não é?
– Por que você acha isso? – perguntei, fingindo uma tragada no meu cachimbo.
Eu estava com a melhor fantasia de Sherlock Holmes que a Amazon podia entregar. Bem, talvez não a melhor, mas a mais em conta.
– Você pode guardar essa fantasia para depois, pode ser interessante.
– Bem, com relação à sua, eu acho que…
Mas fomos interrompidos pelo interfone.
– Quem é a essa hora?
– A pessoa para tornar tudo mais crível.
Pouco depois, uma Wandinha de verdade cruzava a porta.
– Melina! – disse Isa, dando um abraço na sua sobrinha mais nova. – Sua irmã não quis vir?
– Disse que já está muito velha para isso.
– Ninguém nunca está velho demais para se fantasiar e sair por aí pedindo doces. Olha o seu tio.
A irmã de Isabella tinha uma filha mais velha, que, na verdade, naquela época, já estava na faculdade, e, com um intervalo de quase dez anos, uma segunda filha, Melina, que estava, naquele momento, com quase dez. Era o mais próximo de crianças que tínhamos na família.
Eu a cumprimentei e nós seguimos para o carro.
– Como você sabe que hoje é o dia de coleta de doces, Isa?
– Os casos que lhe falei sempre começam no dia 31 – ela disse. – E este ano é em uma sexta-feira. É perfeito!
Ela se virou no banco do passageiro e olhou com seriedade para a sobrinha.
– Milena, me prometa uma coisa.
– Sim, tia.
– Você pode pegar todas as balas que quiser, mas não pode comer enquanto a gente não voltar para casa, está bem?
– Tudo bem, tia – ela falou, mas eu tenho minhas dúvidas se não estava cruzando os dedos atrás das costas.
Andamos pela cidade até o bairro do Alto de Pinheiros, que é um dos mais ricos da cidade de São Paulo. Tudo lá respira a riqueza: as árvores, as casas, a segurança nas ruas, que se observava pelas pessoas andando, passeando com os cachorros, correndo, andando de bicicleta e… Circulando fantasiadas por aí.
– Nem parece que a gente tá em São Paulo, tia! – Melina falou.
E realmente era verdade. Inacreditável pensar que alguém andaria com tanta tranquilidade, ou que abriria suas portas para estranhos, fora de um condomínio fechado nesta cidade. Eu estava me sentindo como naqueles filmes dos Estados Unidos, com as casas enfeitadas e as crianças perambulando.
– Vamos cobrir essas ruas aqui – disse Isabella, apontando. – Não pode ser muito fora desta área de abrangência, porque as crianças que moram nesta ponta não iriam circular até muito além desta aqui. A casa deve estar bem neste miolo.
Nós fomos andando, então, pelas ruas no entorno da praça Pan-Americana. Havia diversas casas enfeitadas com as costumeiras abóboras, fantasmas, teias de aranha etc. Uma delas, inclusive, tinha feito um grande salão na garagem, repleto de enfeites, fantasias e até um trajeto assustador para quem tivesse coragem.
– Gostosuras ou travessuras? – disse Melina, batendo diante de uma porta.
Um homem vestido de vampiro abriu e disse:
– Gostosuras, é claro, minha cara Wandinha! – disse ele.
Melina estendeu a mão para pegar alguns doces de um pote em forma de abóbora, e Isabella imediatamente pegou um ziplock.
– Aqui, Wandinha, vamos colocar neste saco para avaliar se tem radiação – disse ela, entrando no personagem. – Sherlock, arquive como evidência A.
Eu fui pego de surpresa, mas consegui entrar na brincadeira e disse:
– Claro! Evidência A, rua… Ahm… Antônio Gouveia. Elementar, cara Marie.
Quando nos afastamos da casa sob risadas de um vampiro barrigudo, Melina disse:
– Vocês são estranhos.
Passamos por diversas casas, repletas de crianças correndo para cima e para baixo pegando sacolas e mais sacolas de doces. Melina diligentemente resistiu a todos os seus doces serem ensacados, como se fossem evidências de um crime real, até que chegamos a uma casa que tinha uma bruxa mexendo um caldeirão do qual saía fumaça de verdade.
– Vai, tia, deixa eu comer só uma, vai?
– Não, vamos ensacar tudo, faz parte da nossa fantasia. Pesquisar pela radiação.
– Ho, ho, minha querida – disse a bruxa, com uma voz forçada para parecer aquelas de contos de fadas, mesmo. – E que tal então uma maçã do amor?
– Deixa, tia, deixaaaaa! – ela falou.
– Ah, tá bom, Melina, tá bom – Isabella consentiu. – Pode comer a maçã.
– Oba!
A velha bruxa puxou a maçã de dentro do caldeirão – que na verdade só tinha fumaça – e a entregou para Melina, que saiu toda feliz e saltitante da casa.
Seguimos um pouco adiante, olhando para o mapa.
– Vimos praticamente todas as casas dessa região – eu falei. – Só se ela estiver fora da área de abrangência.
– O importante é coletarmos amostras de todas as casas – Isabella falou. – Depois, mandar tudo para testes. Pode ser que eu não consiga agora, André, mas, definitivamente, este ano vou ter uma localização do culpado.
– E se você não achar nada nos doces?
– Se tivermos mais casos, e não tiver nada nos doces, quer dizer que o culpado realmente está além desta área de abrangência – ela falou. – Agora, se não tiver caso nenhum, quer dizer que ele não trabalhou neste Halloween, o que vai nos deixar algumas outras casas para investigar. Vai ser mais difícil. Mas, precisamos pegar o culpado de qualquer jeito!
Fomos para o carro e estávamos no meio do caminho para casa quando Melina disse, do banco de trás:
– Tia, não estou me sentindo muito bem. Acho que vou vomitar…
Isabella arregalou os olhos e se virou imediatamente.
– Você comeu algum doce, Melina?
– Não, só a maçã.
– Tem certeza?
– Eu juro! Só a maçã!
De fato, o talo da maçã estava do lado dela, no banco de trás no carro.
– Sério, tia, eu tô esquisita, meu coração tá acelerado…
– Merda! – falei, colocando o giroflex no teto do carro. – Qual o hospital mais próximo?
– Corre para o HC.
Subi a toda a velocidade a Teodoro Sampaio até o Instituto Central e deixei as duas no pronto-socorro.
– André, a bruxa com o caldeirão – Isabella falou. – É ela. Só pode ser ela.
– Mas você disse que não tinha como ser com semente de maçã, nem fumaça!
– Ela deve ter colocado na casca de açúcar. Rápido, André! Você precisa prender aquela mulher!
Na época, eu não trabalhava mais para o DHPP, sendo apenas um investigador privado. Tecnicamente, nem o Giroflex eu deveria usar, mas eu só guardava para emergências como aquela. Para efetuar uma prisão, porém, eu precisaria da ajuda da polícia de verdade, mas isso não me impediria de ir até lá e confrontar a mulher eu mesmo.
Assim, liguei para meu amigo Roberto, informei sobre o caso e segui de volta para a casa.
Quando cheguei, a bruxa ainda estava lá, remexendo o seu caldeirão, embora o movimento já tivesse baixado muito.
– Ainda tem doces por aí? – perguntei.
– Ora, se não é o Sherlock Holmes. Você já passou por aqui hoje, não passou?
Eu não respondi, mas segui até o caldeirão.
– Ainda tem daquelas maçãs?
– Tenho, sim – ela disse. – Mas os doces acabaram. Sempre sobram maçãs.
Ela me entregou uma.
– Me parece bem apetitosa.
– Como a da Branca de Neve. Linda e vermelhinha.
Eu a encarei, e ela olhou de volta: parecia uma mulher de algo em torno de cinquenta anos, mas bem escondida sob a maquiagem de bruxa. Acho que foi neste olhar que ela percebeu, porque imediatamente virou o caldeirão em minha direção e saiu correndo em direção à rua.
– Parada! – falei, o que, é claro, nunca funciona. – Polícia!
Isso saiu pela força do hábito.
Ela correu pela rua, e eu fui logo atrás; ela estava bem para uma pessoa daquela idade, mas as crianças pelas ruas atrapalhavam. Ela dobrou uma esquina e estava chegando quase à praça Pan-americana, quando Roberto parou diante dela, apontando a arma.
– Sherlock Holmes perseguindo uma bruxa – ele falou. – Tá aí uma coisa que eu nunca esperei ver.
Ajudei Roberto com os procedimentos para a prisão em flagrante da mulher. Tínhamos várias maçãs ainda para avaliar e conseguir dosar o veneno, mas precisávamos torcer para que ela tivesse, de fato, envenenado todas e não apenas algumas. A polícia passou a noite indo de casa em casa e avisando aos pais sobre a maçã envenenada e os sinais de intoxicação por cianeto; enquanto isso, eu voltei ao hospital.
– Normalmente, a intoxicação causa sequelas, quando não leva à morte – Isabella falou, enquanto observávamos nossa sobrinha na cama, em sono profundo. – Mas conseguimos pegar cedo o suficiente. Talvez a dose fosse letal para uma criança menor, mas a Melina é grande para a idade. Vamos torcer agora. Os médicos acham que ela vai evoluir bem.
Sentei-me, aliviado, e lhe dei a mão.
– E a bruxa?
– Moretti fez a prisão – falei. – Estão interrogando ela agora, mas… Eu não consigo entender. Por quê?
– Já tem o nome dela?
– Maria Julia Navarro-Dias.
– Navarro-Dias? Espera…
Ela pegou o celular e começou a procurar em alguma plataforma de dados. Pouco depois, puxou uma ficha.
– Aqui está. Sabia que o nome me era familiar. Uma criança falecida oito anos atrás. Coma hiperglicêmico.
– Como é?
– Tinha 8 anos de idade. Morreu no Dia das Bruxas, depois de pegar doces demais e comer tudo de uma vez. A família não sabia que era diabética. Provavelmente, já estava descontrolado antes, e o Dia das Bruxas só piorou.
Ficamos em silêncio por alguns instantes.
– Eu não entendo – falei. – Toda aquela produção, entregando os doces… É uma forma de vingança?
– As pessoas lidam com o luto de formas diferentes. Estranhas, no mínimo.
– Mas matar os filhos dos outros para aplacar a própria dor? Ela segurou minha mão novamente e apoiou sua cabeça no meu ombro. Havíamos salvado a vida de diversas crianças, mas, mesmo assim, aquele dia ainda ficou com o gosto amargo de uma maçã envenenada.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais