O Caso dos Caminhoneiros Acidentados
Este caso ocorreu na época em que eu ainda fazia parte do DHPP de São Paulo. Os casos do Anatomista e do Artista já haviam ficado para trás, e Isabella e eu já estávamos juntos. Ela tinha voltado a morar em São Paulo e reassumido seus vínculos de legista do IML, professora da faculdade de medicina e tudo mais.
Estávamos, especificamente, saindo para uma viagem de fim de semana, quando, na marginal Tietê, um caminhão cortou pela nossa frente, cruzando da faixa da direita diretamente para o guardrail na esquerda, onde bateu com tudo e, não fosse a amurada de concreto, teria caído no rio.
Achando aquilo estranho demais, Isabella pediu que eu parasse logo à frente dele para ver se estava tudo bem. Ela subiu na boleia do caminhão e de lá de dentro gritou:
– Ele está em parada! Chame o SAMU e venha me ajudar!
Eu liguei imediatamente para a emergência e depois subi para a boleia; conseguimos puxar o caminhoneiro para trás do banco, onde ficava um colchão no qual ele dormia, e começamos a fazer a massagem cardíaca.
– O que acha que aconteceu com ele? – perguntei.
– Talvez um infarto – ela falou. – Dê uma olhada se tem alguma medicação na cabine.
Eu procurei pelo meio da bagunça daquele caminhão, mas tudo o que encontrei foi uma Coca-Cola de 600ml, uma embalagem de omeprazol e nada mais. Nem sinal de rebite, cigarro ou qualquer outra coisa.
– Essa miose dele… – falou Isabella, erguendo as pálpebras do homem, enquanto parava para checar o pulso. As pupilas estavam minúsculas. – Não estou gostando.
– Não é sinal de que já morreu?
– Já estava com isso logo que chegamos.
Ela continuou; pouco depois, o SAMU chegou e assumiu os cuidados, removendo o paciente do veículo. Acompanhamos os trabalhos por ainda alguns minutos, antes de eu pôr meu braço sobre os ombros de Isabella e falar que já estava na hora de partir. Aquele homem, infelizmente, provavelmente não iria sobreviver.
– Podemos só passar no IML antes de ir, rapidinho?
– Não vai me dizer que você vai querer ver a resposta da autópsia?
– Não, não. Quero pedir para examinarem isso aqui no laboratório.
Ela me mostrou a garrafa de Coca-Cola do homem.
– Isa! Isso não é roubo, não?
– Talvez furto. Mas eu chamaria de investigação. Tem algo que não está cheirando bem nessa história.
– Devia ser o caminhão, isso sim…
Eu já tinha me esquecido deste incidente, quando, um mês depois, Isabella me ligou.
– André, lembra aquele caso do caminhoneiro que teve uma parada cardíaca no meio da Marginal?
– Lembro! O que tem ele?
– A Coca-Cola era um verdadeiro coquetel. Misturaram sedativos, entre outras coisas.
– Sério?
– Sim. Alguém quis matar aquele homem, André.
– Mas não foi ele quem de repente misturou…
– O homem não tomava nada. A autópsia veio totalmente inconclusiva. Ele teve uma parada cardíaca por simplesmente parar de respirar.
– Mas, e se foi suicídio?
– Não tinha nada no caminhão para se pensar nisso. Foi um assassinato. E veja… Esse não foi o primeiro caso de um caminhoneiro que morreu na estrada. Consegui encontrar outros dois que vieram parar aqui no IML, alguns mais graves, outros menos. Em todos, o caminhoneiro provavelmente dormiu no volante ou teve um ataque cardíaco fulminante, antes de colidir com algum lugar. Acho que vocês precisam dar uma olhada nisso.
Eu sabia que o faro da Isabella nunca falhava; se ela suspeitava de alguma coisa, certamente alguma coisa havia. Assim, eu peguei com ela os dados sobre os caminhoneiros e passei para a minha equipe. A grande pergunta era: por que alguém iria querer matar três caminhoneiros diferentes?
– Precisamos encontrar o que esses três homens têm de semelhante – eu falei, colocando as fichas dos três homens espalhadas na nossa mesa de trabalho.
– Preguiça de fazer a barba – disse Jonas, prontamente.
– Além do fato de serem caminhoneiros, mestre… Não vejo muita coisa – disse Daniel.
Roberto, de braços cruzados atrás dos dois e olhando por cima para as fichas, suspirou.
– Os locais do acidente foram próximos – disse, por fim. – Isabella falou quanto tempo o remédio demorava para funcionar?
– Não especificou, mas acho que a dose era alta.
– Acho que podemos ver se os caminhões têm GPS. Buscar as últimas paradas. Ou então, do jeito mais difícil: pegando o tacógrafo e calculando.
– Vamos lá.
Identificamos o pátio de apreensão para onde haviam sido levados os caminhões depois do acidente; lá, eu fui com Jonas para o primeiro, enquanto Roberto e Daniel se dirigiram cada um para um.
– E aí, Jonas?
– Sem um aparelho decente de GPS, o que é um absurdo – comentou ele. – Eu vou ver se consigo fazer uma mágica com o tacógrafo, como os maias faziam, sabe?
Eu esperei do lado de fora, enquanto ele mexia no velocímetro; aquele era o caminhão onde Isabella e eu havíamos tentado salvar o homem, sem sucesso. Segui para o outro caminhão, onde Roberto também procurava pelo tacógrafo.
– É engraçado. Não consegui achar nenhum aparelho de rastreio neste caminhão…
Depois, segui para Daniel, e algo me chamou a atenção.
– Ora, vejam só…
Pouco depois, reunimo-nos os três com os dados dos tacógrafos em mãos.
– O meu tinha começado a trabalhar fazia pouco tempo. Acho que pernoitou em algum lugar, depois começou a andar. Se eu computar os dados, consigo estimar de onde ele veio, mais ou menos. Se a distância for muito grande, ficamos vendidos – disse Jonas.
– O meu foi a mesma coisa – disse Daniel.
Roberto assentiu, também.
– Então, todos os nossos caminhoneiros provavelmente tinham acabado de pernoitar em algum lugar, começaram seu dia e dormiram ao volante – falei. – Mas, tem outra semelhança.
– Qual? – questionou Jonas.
– São todos da mesma empresa. Hortifruti Kishimoto.
Roberto ergueu a sua sobrancelha de forma característica.
– Coincidência demais, não?
– Precisamos descobrir de onde eles vieram – falei. – Jonas, de quanto tempo precisa para conseguir isso?
– Acho que consigo montar algo simples. Uma tabela de Excel basta para esses cálculos. Depois, jogar em um mapa, a partir do ponto onde bateram… Me dê algumas horas.
Seguimos de volta para a delegacia, todos perdidos em pensamentos. Por que alguém iria querer se livrar de motoristas de uma transportadora de hortifruti?
Jonas me ligou no meio da tarde.
– Difícil de dizer de onde ele veio, chefe – disse ele. – Bandeirantes, Anhanguera… Ele andou vários quilômetros. Uns 30, 40, antes de parar.
– Todos devem ter parado no mesmo lugar para pernoitar, não?
– Eu acredito que sim, mas temos muitos lugares para eles pararem. Estou tentando, mas vou demorar mais do que esperava.
Eu suspirei, desesperançoso. Talvez uma alternativa fosse, realmente, falar com o dono da empresa, mas como ele saberia onde eles pararam? Tinha algum sistema de monitoramento que não conseguimos encontrar? Os caminhoneiros tinham algum hábito de parar sempre no mesmo lugar? Difícil dizer.
Ocupei-me com outros trabalhos que tinha ao longo da tarde e, à noite, quando me encontrei com Isabella, estava meio avoado.
– Pensando nos caminhoneiros, ainda?
Olhei para ela, sabendo que era desnecessário perguntar como sabia.
– Se você enrolar mais um pouco esse macarrão, posso ligar para o Guiness e pedir registro de recorde – ela falou, limpando a boca com um guardanapo. – Com licença.
– Isa, o que vai fazer? Não me diga que você vai ligar pro Guiness, eu juro que…
Mas ela retornou com uma nota fiscal na mão.
– Quando falei para você sobre o caminhoneiro, não tive tempo de falar sobre isso.
– O que é essa nota?
– Estava junto com a Coca-Cola no caminhão.
– É o lugar onde ele esteve antes! – eu exclamei.
– Sim. Imagino que vocês estejam com dificuldade de identificar, não é?
– Tentamos pelo tacógrafo, mas não deu certo.
– Tudo indica que o caminhoneiro parou neste lugar e comprou algumas coisas antes de sair.
– Mas a Coca-Cola não está aqui na nota…
– Não. O que é estranho. Mas a nota estava literalmente grudada na garrafa de Coca-Cola, e a data e a hora são compatíveis. Aproximadamente uma hora antes de encontrarmos o sujeito desacordado.
– Um posto de gasolina na Rodovia dos Bandeirantes – falei, observando a nota, que incluía um café, dois pães na chapa e um suco de laranja. – Pouco antes das sete da manhã.
– André, os outros caminhoneiros…
– Sim! – exclamei, empolgado. – Esqueci de te falar! São todos da mesma empresa!
– Isso é curioso – ela falou. – Assim como o dia. Eles são sempre atacados de sábado pela manhã.
– Parece que vamos precisar fazer umas horas extras…
Sabendo a localização do posto, foi fácil para Jonas traçar as rotas dos caminhões: de fato, eles haviam provavelmente pernoitado no posto e saído pela manhã em direção a São Paulo. Uma vez na marginal Tietê, é possível que estivessem indo em direção ao Rodoanel ou, talvez, fossem fazer entregas pela cidade.
Assim, no próximo sábado, às seis horas da manhã, nós nos encontramos no posto da rodovia.
– Parece que eles seguem um padrão claro – eu falei. – Caminhoneiros desta empresa específica, sempre aos sábados. Houve um intervalo de dois a três sábados entre um e outro, então, é bem possível que consigamos alguma coisa hoje.
– Estamos trabalhando com a hipótese de que alguém intencionalmente drogou os caminhoneiros usando uma coca batizada, é isso mesmo, chefe?
– Exatamente.
– Mas qualquer um pode ter entregado a coca.
– Provavelmente, alguém que estava neste posto e que entregou a coca junto com a nota fiscal – eu respondi.
– Eu apostaria no caixa da conveniência – falou Roberto.
– É uma grande possibilidade.
– Mestre – falou Daniel, aproximando-se, encapotado devido ao frio. Estávamos todos em vestes civis, para não chamar a atenção. – Tem um caminhão do Hortifruti Kishimoto aqui.
– O caminhoneiro está lá dentro?
– Sim. Começou a se movimentar agora. Deve sair para ir à conveniência em breve.
– Roberto, Jonas. Fiquem dentro da conveniência. Peçam um café e fiquem de olho se algo anormal acontece. Daniel, nós vamos seguir esse homem. Vamos pegar o culpado no flagra.
Fiquei com Daniel próximo ao caminhão, de onde poderíamos observá-lo. Fiquei preocupado que ele descesse e resolvesse cozinhar algo em um fogão portátil, mas não. Para nossa sorte, e azar dele, depois de algum tempo, ele afinal desceu da boleia e seguiu em direção à conveniência. Com um sinal da cabeça, falei para Daniel ficar onde estava, pronto para seguir o caminhão quando saísse, e segui para trás do homem na conveniência. Ele entrou e se dirigiu para o caixa; eu fiquei logo atrás. Roberto estava sentado em uma mesa, tomando um café e fingindo mexer no celular, enquanto Jonas olhava pelas quinquilharia inúteis, sem tirar os olhos do homem na fila.
Ele pegou dois pães de queijo e um café e se dirigiu para uma mesa; eu pedi um café e me direcionei para uma mesa próxima à dele.
“Nada de coca por enquanto”, mandei por mensagem para meus colegas.
Cada um continuou em seu posto. O homem comia e tomava seu café, mexendo no celular, totalmente indiferente ao que havia em seu redor. Seria possível que tivessem colocado o sonífero no café?
Pouco depois, quando ele estava para sair, um dos funcionários que estava no balcão se aproximou para pegar a bandeja e, ao mesmo tempo, entregou-lhe uma pequena garrafa de Coca-Cola.
– Esqueci de entregar para o senhor – ele falou. – Brinde da casa para quem pega dois pães de queijo e um café.
“O homem que está na mesa acabou de entregar uma Coca. Disse que é brinde”, mandei.
O caminhoneiro agradeceu, levantou-se e seguiu para o caixa.
“Jonas, siga-o. Acompanhe com o Daniel depois”.
Jonas pegou uma revista aleatória e seguiu o homem para o caixa; passou logo na sequência dele, e foi para a mesma direção. Pela janela, pude observar conforme o caminhão partia, e o carro de Daniel ia logo atrás.
Levantei-me e fui me sentar de frente para Roberto.
– E aí? O que achou?
– Pode ser uma coincidência. Mas se encaixa no que estamos buscando – disse ele.
– O que achou do balconista?
– Parece um moleque. Acho que acabou de sair das fraldas. Deve estar trabalhando para pagar a faculdade ou coisa que o valha. Não me parece um mestre alquimista. E não vejo por que teria algum motivo para se vingar de caminhões de hortifruti.
– Ainda não temos certeza, mas, se o homem pegar no sono…
– Será uma prova importante.
Olhei para o meu relógio.
– Acho que temos mais uma hora pela frente.
– Precisamos ficar de olho para o balconista não resolver bater o ponto nem nada do tipo. Se aquele homem dormir no volante, esse cara vai dormir na cadeia.
Pouco mais de cinquenta minutos depois, recebi uma ligação do Daniel.
– Mestre, o homem dormiu no volante.
– Ele bateu?
– Não, o Jonas pegou carona com ele. Disse que na hora em que ele dormiu, ele conseguiu controlar o caminhão e parar no acostamento.
– Ele está bem?
– Jonas está chamando o SAMU. A respiração está irregular. Acho que vai parar logo.
– Está certo, Daniel. Me mantenha informado. E pegue a coca para levar para análise.
Eu olhei para Roberto; estava na hora de fazermos a nossa apreensão.
Fomos os dois em direção ao balcão; eu fiquei de frente para o homem, enquanto Roberto foi cobrir a única saída disponível.
– Posso ajudar?
– André Dias, DHPP. Preciso fazer umas perguntas. Aquele caminhoneiro para quem você entregou uma Coca-Cola… O que sabe dele?
O homem engoliu em seco; olhou para os lados e imediatamente se pôs a correr; vendo Roberto obstruindo a passagem, ele pulou por cima do balcão e, derrubando tudo ao seu redor, tentou correr pelo salão repleto de pessoas. É claro que não foi longe; em pouco tempo, já havia se estatelado no chão, entre cafés e sucos derramados.
– A sua inocência foi embora na hora em que saiu correndo, seu Carlos – falei, lembrando-me do nome no crachá. – O senhor está preso pela tentativa de assassinato daquele homem.
Colocamos as algemas no cidadão e o levamos para o carro.
Na delegacia, o homem estava tremendo igual vara verde.
– Eu juro, eu não sabia!
Eu suspirei, trocando olhares com Roberto. Talvez não soubesse, mesmo. Ele não parecia nenhum gênio, nem nada assim, mas, que raios de explicação poderia dar? Afinal de contas, ele tinha claramente entregado a bebida para o homem.
– A sua única chance de diminuir a sua pena é explicar direitinho o que estava acontecendo ali. Por que você deu aquela bebida para o caminhoneiro? – disse Roberto.
– Eu… – ele olhou para os lados, indeciso; eu me perguntava quanto tempo levaria para ele se lembrar de que tinha direito a um advogado. – Eu recebi um envelope.
– Um envelope?
– Sim. Tinha uma carta digitada com instruções. Tinha uma foto do cara. Um envelope e a garrafa de Coca-Cola.
– Quando recebeu isso?
– Hoje de manhã.
– O que a carta dizia?
– Que esse cara ia passar de manhã na conveniência, e que queriam que eu desse a Coca-Cola de presente para ele. Eu achei que fosse uma campanha de marketing, sei lá…
– Essa carta tinha mais alguma informação?
– Não.
– Remetente, nada?
– Não… – ele respondeu, um tanto hesitante.
– Vamos, Carlos! Sabemos que este é o quarto caminhoneiro que toma uma Coca-cola e bate o caminhão. Os outros três morreram, estamos torcendo para este não morrer, então, até onde sabemos, você é o culpado da morte de três outras pessoas.
O homem ficou branco.
– Eles… Morreram?
– Exatamente.
– Mas eu… Eu…
Ele segurou a cabeça com as mãos, olhando para baixo e se balançando na cadeira.
– Eu achei… Achei que… Era um marketing. Só isso! Nem me perguntei se…
– O que mais tinha no envelope? – eu perguntei.
Ele só ficou balançando.
– Eles morreram… Morreram…
– Tinha dinheiro? – tentei. Fazia sentido; como mais se certificar de que alguém cumprisse as suas ordens?
– Como você sabia?
– Quanto dinheiro tinha?
– Ce-cem reais…
– Uma nota?
– Vários trocados.
Troquei olhares com Roberto.
– Ainda está com as notas?
– Não, eu… Troquei com as notas do caixa antes de começar o dia.
– E a carta? – tentei.
– Joguei fora… Acho que… Já deve ter ido pro lixo de vez, agora. Mas pode ser que ainda esteja lá! – ele falou, esperançoso.
Balançamos as cabeças. Mesmo que estivesse lá, quais as chances de o autor ter deixado uma digital?
– Eles deixavam esse envelope onde?
– Em cima do balcão… Eu via logo que chegava no serviço. Estava com meu nome escrito na frente.
Se estava no balcão, é porque alguém tinha deixado. Isso significava que alguém tinha entrado na conveniência, pouco antes do início do turno dele, e deixado sobre o balcão – de forma que, se tivessem câmeras lá, poderíamos encontrar o culpado.
Assim, deixamos o balconista e voltamos para a loja de conveniência, onde conversamos com o gerente, que, claramente, já tinha ouvido falar da história.
– Ainda estamos em investigação – eu falei. – Mas o que ele nos contou é que alguém deixou para ele um envelope e uma garrafa de Coca-Cola no balcão antes do início do turno.
O gerente se sentou à mesa do escritório e começou a retroceder nas gravações da câmera. Ele não conseguiria pegar os casos das outras semanas, mas, ao menos, o daquela manhã, sim. E, de fato, lá estava; Carlos entra pela porta da frente, indo para os fundos, onde iria se trocar para iniciar o turno de trabalho; um homem se aproxima, logo na sequência, deixa o envelope e o refrigerante e vai embora. A conveniência estava vazia; ninguém viu nada. Ele estava com uma camiseta de time, um boné e óculos escuros; totalmente indiferenciável de qualquer pessoa.
Tentamos buscar as câmeras de segurança do posto, porém, elas não cobriam todo o local. Conseguimos ver o homem caminhando até um ponto onde ele provavelmente pegou seu carro e foi embora, mas nunca saberíamos qual era ou para onde ele foi.
– Seja quem for, sabia o que estava fazendo – comentei.
– O que vai acontecer com o Carlos? – questionou o gerente, claramente preocupado. – Ele é um ótimo funcionário, eu tenho certeza de que não fez por mal.
– Eu até imagino que não – respondi. – Mas, às vezes, a gente se surpreende com as pessoas.
Eu mesmo já tive minha cota de surpresas com pessoas que jurava serem inocentes.
– No momento – falou Roberto – ele é no mínimo culpado por cumplicidade. Mas encontrar o verdadeiro culpado é o mais importante. Pode ser a chave para, se não livrar, no mínimo diminuir a pena dele. Se quer ajudar seu funcionário, eu sugiro que o ajude a encontrar um bom advogado.
Saímos de lá e nos sentamos no carro, pensativos.
– Com o que estamos lidando, exatamente, Roberto? – questionei. – Por que alguém estaria tentando dopar os caminhoneiros de um hortifruti para se acidentarem? Não faz o menor sentido.
– Acho que talvez esteja na hora de a gente falar com o tal do Kishimoto.
O hortifruti do Kishimoto era uma grande fazenda em Atibaia. Chegamos ao local certos de que o homem não estaria lá – e, de fato, não estava.
– Somos do DHPP – falei, apresentando-me ao responsável. – Precisamos falar com o proprietário.
– Kishimoto-sama não está aqui – disse o homem, que também era japonês. – Está no Japão, visitando a família. Deve voltar no mês que vem.
– Quem é a pessoa que fica imediatamente abaixo dele na linha de comando, aqui?
– Fujimoto-sama – disse ele. – Não está aqui, mas posso ligar para ele.
Ele ligou para o homem, que não parecia muito à vontade de vir para um tête à tête.
– Fujimoto-sama – eu falei, pegando o telefone do homem. – É o quarto funcionário da sua empresa que morre em um acidente com o seu caminhão. Eu acredito que seja de seu total interesse a nossa investigação.
– Quarto funcionário?
– Não está sabendo do acidente de hoje?
– Estou indo para aí. Chego em uma hora.
Enquanto aguardávamos a chegada do gerente, Jonas nos confirmou que o homem realmente morreu. O laboratório colheu os exames, mas os toxicológicos sempre demoravam muito. Por mais rápidos que tentassem ser, provavelmente não teríamos uma resposta sobre a bebida e o sangue do homem em menos de uma ou duas semanas, ao contrário do que a televisão nos faz acreditar.
– Fujimoto – falei, quando o homem finalmente chegou e nos levou à sua sala, da qual podíamos ver todo a imensidão das suas plantações. – Temos razões para crer que alguém está envenenando os seus caminhoneiros.
– Envenenando?
– Não exatamente envenenando – corrigiu-me Roberto. – É um sedativo. Eles dormem e batem o caminhão.
– Você tem alguma ideia de por que alguém iria querer que seus caminhoneiros batessem? – questionei eu.
– Não faço a menor ideia, investigador – ele respondeu.
Eu o observei atentamente; havia algo que não estava me cheirando bem em tudo aquilo, mas o homem permanecia estático, inexpressivo. Um clássico oriental como apresentado pelos filmes.
– Alguma desavença? Algum competidor? Problemas de família? – questionou Roberto. – Talvez não da sua, mas do Kishimoto.
– Kishimoto-sama é filho único, e seu filho é filho único também. Não, não teria nenhum motivo familiar para isso.
– Muito bem… Aqui está meu cartão, caso você se lembre de algo que possa ser útil – eu falei.
Ao final da tarde, todos nos reunimos na nossa sala no DHPP.
– Alguma conclusão? – questionei.
– Nada – eles falaram.
– Mistério total – disse Daniel.
– Não temos nenhuma evidência concreta dessas tais cartas – disse Jonas, por fim. – Pode ser que estejamos simplesmente com mais um maluco assassino em série que curte ver caminhoneiros baterem.
– Isso poderia até ser – opinou Roberto. – Mas não explica a escolha específica de transportadores de um determinado hortifrutigranjeiro.
– Acho que a gente precisa dar um tempo – falei. – Deixar a poeira baixar. Talvez ver o que os japoneses vão fazer.
Todos concordaram; estávamos fazendo hora extra, e um descanso seria bem-vindo.
Foi na noite daquele sábado, conversando com Isabella sobre o caso complicado que tinha em mãos, que ela me deu uma luz, aliás, um farol, como de costume.
– Você tem que olhar o caminhão – ela falou.
– Como é?
– Você já ouviu falar do Gustavo Fring?
– Não faço a menor ideia.
– Los pollos hermanos. Breaking bad?
– Ah, eu sei que existe a série. Mas… O que tem?
Isabella suspirou, com aquela condescendência clássica de reprovação que ela sempre usava quando tentava referenciar alguma coisa e eu, na minha ignorância, não compreendia.
– Gustavo era um contrabandista de meta-anfetamina e tinha uma rede de restaurantes espalhada pelos Estados Unidos. Ele usava seus caminhões para transportar as drogas, sem a polícia suspeitar.
– Você está dizendo que o japonês é um traficante?
– Não consigo pensar em outro motivo para alguém querer tirar de circulação os seus caminhões. Acha mesmo que algum hortifrutigranjeiro iria se dar a tanto trabalho por tão pouco? Poderia simplesmente tacar fogo na plantação ou algo do tipo.
– Mas, Isa… Isso não é… Ficção? É só uma série!
– A arte imita a vida, não é? Com certeza eles se basearam em alguma coisa para escrever a série. Ou, no mínimo, eles podem ter se inspirado na série para fazer isso. Tudo é possível. Eu iria dar uma olhada naqueles caminhões…
Encafifado com o que a Isabella me havia sugerido, no dia seguinte, embora fosse um domingo, eu conversei com um colega meu do Denarc e fui eu mesmo com um dos seus cachorros para investigar os caminhões. Jonas, que era solteiro e não tinha nada para fazer no domingo, decidiu me acompanhar.
Não era o mesmo homem que estava lá de guarda da última vez, mas ele nos deixou circular livremente pelo local; fomos primeiro aos caminhões mais antigos, mas o cachorro não sentiu o cheiro de absolutamente nada de diferente. A carga já havia sido totalmente retirada.
Fomos por último ao caminhão mais recente, no qual a carga ainda estava armazenada. O cachorro cheirou e cheirou e começou a latir para um ponto onde havia um monte de ovos quebrados.
– Está sentindo o cheiro dos ovos, chefe.
– Não é isso, Jonas. Ele com certeza pegou alguma coisa.
Procuramos na boleia um pano e começamos a limpar a sujeira.
– Isso aqui tá fedendo demais, pelo amor de Deus!
Por fim, o cão continuava latindo para um pedaço da carroceria, um retângulo de metal que ficava bem no fundo da carreta.
– Jonas, o que tem do outro lado disso?
Ele desceu e foi olhar; além das conexões usuais entre as partes do caminhão, não havia nada. A parte que deveria ser um relevo escavado não era nada além de uma chapa de metal.
– Tem alguma coisa aqui – falei.
Olhando com mais atenção para a caixa de metal, era possível ver onde parafusos prendiam as chapas, tornando-a quase uma parte da parede da carreta.
– Jonas, veja se consegue ferramentas, sim?
Na boleia, mais uma vez, ele pegou a caixa de ferramentas do caminhoneiro e, com cuidado, desatarraxamos o parafuso. Por fim, lá estavam: dentro do retângulo, alguns papelotes de drogas.
– Há! Não acredito que a Isa estava certa! – falei.
– Engraçado que não encontramos nada nos outros – falou Jonas. – Acho que alguém esvaziou.
– Vamos checar.
Voltamos às carretas dos outros caminhões, que tinham exatamente o mesmo compartimento, e os abrimos: não encontramos nada, embora o cachorro tenha ficado bastante animado com o cheiro.
– Definitivamente, alguém esvaziou isso aqui.
Seguimos para a guarita do pátio, onde conversamos com o guarda.
– Sabe quando os outros caminhões do Hortifruti Kishimoto foram esvaziados?
– Não faço ideia – ele falou. – Eu só fico aqui de fim de semana. Ninguém faz isso de fim de semana.
– Vocês têm um circuito interno de câmeras, certo?
O homem nos levou a uma sala, onde procuramos pelas gravações. Entretanto, apesar de ter um sistema de armazenamento, ele não salvava mais do que duas semanas.
– Sinto não poder ajudar, policiais – falou o guarda.
– Vamos notificar o DENARC – falei para Jonas. – Ninguém entra naquele caminhão, entendido?
Isolamos o caminhão com a fita amarela zebrada e, na sequência, voltamos para o nosso carro, colocando o cachorro no banco de trás. Estávamos a pouco mais de um quilômetro do pátio, quando uma moto com dois homens se aproximou de nós. O cachorro começou a latir imediatamente, e, quando olhei para o lado…
– Se abaixa! – disse Jonas.
O carona apontou uma arma e atirou; eu tinha abaixado bem a tempo, escapando da bala, que estourou o vidro inteiro. Jonas virou o volante, e nós provavelmente abalroamos a moto, pois senti um impacto e um solavanco. Ouvi outros tiros e estouros, o barulho do cachorro latindo e, depois, seus ganidos. Quando levantei, a arma em mãos, um dos homens estava com a perna presa debaixo do carro, sua arma caída longe; o cachorro estava caído ao seu lado, sangrando, e o outro motoqueiro estava fugindo.
Jonas avisou pelo rádio os dados da moto e características do homem. Eu o algemei, antes de retirá-lo debaixo da roda e fazer um torniquete. O cachorro, infelizmente, não respirava mais.
Quando o DENARC chegou ao pátio para fazer a apreensão, um camburão já havia pegado o nosso prisioneiro e o cachorro para transporte. Dênis, o responsável da equipe, me ligou de lá.
– Não tem nada no caminhão, Dias.
– Como não, Pinheiro?
– Só hortifruti. Nada de drogas.
Eu fiquei atônito por alguns instantes. Isso só podia significar…
– Onde está o guarda? Só pode ter sido ele!
Ouvi gritos indefinidos, como de Dênis dando ordens, e pouco depois ele voltou:
– Ele fugiu!
– Dentro da guarita tem um aparelho que grava as imagens das câmeras de vigilância, Pinheiro. Dê uma olhada!
Já estávamos quase no DHPP, quando ele me ligou novamente.
– Alguém sumiu com o aparelho, Dias.
– Merda.
Na minha cabeça, aquilo começava a tomar forma: Kishimoto transportava drogas em seus caminhões. Algum de seus rivais decidiu atacá-lo, impedindo o transporte. Os caminhões eram apreendidos, e o guarda pegava os papelotes, ou deixava que alguém pegasse. Esta pessoa, porém, poderia trabalhar para o Kishimoto, ou para o seu rival.
O guarda, quando percebeu que descobrimos sobre as drogas, certamente avisou o seu chefe, que encomendou a nossa tentativa de assassinato. Precisávamos fazer a apreensão de todos eles.
Convoquei toda a equipe novamente; o tempo era essencial. Emitimos ordens de prisão para o guarda do pátio, cujo nome não foi difícil de descobrir, e o motoqueiro que havia fugido.
– Chefe, não vai acreditar – disse Jonas, que havia, por sinal, saído-se muito bem no enfrentamento dos tiros. – O homem que atropelamos?
– Sim?
– É o mesmo que estava deixando as cartas.
– Tem certeza?
– A imagem não é boa o suficiente, mas… Sim, acho que é ele, mesmo.
– Fique aqui para fazer o interrogatório, então. Nós três vamos para o hortifruti.
Nós não tínhamos certeza de quem era o responsável pelo transporte das drogas, dentro da empresa de Kishimoto, mas o seu gerente certamente deveria responder por isso, ao menos enquanto não conseguíssemos que o dono voltasse do Japão. Assim, fomos à sede da empresa, onde, é claro, não encontramos o senhor Fujimoto.
Conseguimos seu contato e seu endereço, mas ele não atendeu ao telefone. Chegamos à sua casa em torno de 30 minutos depois, mas ninguém respondeu. Demorou um pouco, mas conseguimos um mandado e, assim, arrombamos a porta.
A casa estava toda desordenada, como se alguém tivesse saído às pressas. Assim, emitimos uma ordem de prisão também para Fujimoto.
– É melhor você não voltar para sua casa – disse Roberto, enquanto dirigia de volta. Eu estava sentado no banco do passageiro, desanimado. – Pode sofrer outro atentado.
– Acho que vou passar a noite no departamento.
– E a Isabella?
– O que tem?
– Estamos lidando com gente perigosa. Acha que não vão atrás dela?
– Ninguém sabe que estamos juntos, Roberto. Não exagere. Aqueles caras só vieram atrás da gente porque o guarda avisou. Nem devem saber direito quem eu sou.
Roberto deu de ombros. Revirando os olhos, eu liguei para Isabella.
– Oi, Isa. Tudo bem? Não, estou ligando para dizer que… Eu, ahm… Estou envolvido em uma investigação e… Sofri um atentado. Não, não, estou bem, não aconteceu nada. Não, não precisa. É só… Viu, você pretende sair de casa, ainda? É, então. Não saia. Não deixe nenhum desconhecido entrar, tá bom? Eu não acho que eles conheçam você, mas… Não custa. São homens perigosos. Está bem. Também te amo. Até.
Fechei o celular, olhando para Roberto, que assentia com a cabeça.
Jonas veio todo empolgado contar o que descobriu com seu interrogatório.
– Fujimoto! – falou ele, quase gritando.
– Como é?
– O japonês tava roubando do outro japonês!
– Explica isso melhor, Jonas.
– O motoqueiro disse que foi contactado por um japonês, que depois identificamos como o Fujimoto, para entregar o envelope com o dinheiro e a Coca-Cola. Hoje mesmo ele recebeu uma ligação, encomendando a sua morte, Dias. E a ligação veio deste telefone, que está no nome adivinha de quem?
– Fujimoto?
– Não, é um celular da empresa do Kishimoto! Só que a ligação não veio da empresa. Conseguimos triangular as torres. A ligação foi feita provavelmente da casa do Fujimoto. E, veja só… Para quem o guarda ligou?
– Para este mesmo número.
– Exatamente. Pegamos o guardinha no flagra, ele avisa o Fujimoto, que chama os motoqueiros. Enquanto isso, o guardinha limpa o caminhão; quando o DENARC chega, ele deixa que eles entrem, pega o disco rígido e vaza. Só que, para o azar dele, tinha câmeras de outras empresas do lado de fora. É uma questão de tempo até descobrirmos onde o meliante está.
– E o Fujimoto?
– Já estamos atrás dele. E já falamos com a Polícia Federal para achar o Kishimoto.
De fato, após algum tempo, o DENARC conseguiu capturar a gangue inteira. Fujimoto estava tentando fugir para o Paraguai, quando foi pego na ponte da amizade; Kishimoto deu o azar de ser descoberto justamente quando Brasil e Japão tinham acabado de assinar um tratado de extradição. O outro motoqueiro, o que havia pilotado a moto, foi encontrado morto, e eu tenho certeza de que vários outros seguiram o mesmo destino, como queima de arquivo, seja da parte de Kishimoto, seja da parte de Fujimoto.
O motoqueiro que tentou me assassinar foi preso, é claro, e o pobre caixa da loja de conveniência, bem… Seu chefe realmente contratou um advogado para ajudá-lo, mas o sistema penal no Brasil é bastante moroso. Embora tenha conseguido sair com um habeas corpus, não tenho certeza se ele será inocentado; acredito que alguma coisa ainda irá enfrentar.
– E tudo isso porque você quis ajudar um caminhoneiro no meio da marginal – eu falei para Isabella, quando concluímos o caso.
Ela deu de ombros.
– Não fiz nada além de prestar atenção aos detalhes. Mas, é claro, não bastava só isso. Eu poderia olhar por quanto tempo quisesse para aquela Coca-Cola, que nunca chegaria às conclusões que ela chegou. Por isso eu sempre a achei – e continuo achando – tão incrível!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais