O Misterioso Caso das Belas Convulsivas
Eu estava em um trabalho de vigilância, de mais de um daqueles casos de traição que são, no frigir dos ovos, o que efetivamente paga as contas da minha agência de investigação, quando a Isabella, a patologista genial com quem trabalho há décadas e minha esposa já há alguns anos me ligou.
– O que você acha do caso de uma Bela Convulsiva?
– Boa tarde para você também, Isa.
– Boa tarde, André.
– Não seria uma Bela Adormecida?
– Não, já passamos disso. Estamos bem longe de um conto de de fadas. Talvez, um conto de terror.
– Bela convulsiva?
– Sim. Não quer dar um pulo aqui no IML?
– E quem vai manter a vigilância do nosso cliente?
– É o caso do Silveira?
– Sim, estou há semanas e não consigo…
– Ele se encontra com a amante na academia, André. Segunda, quarta e sexta. No vestiário, na sala de Pilates, eles variam.
– O quê? Como você sabe?
– Venha ver a Bela Convulsiva e eu te conto.
Com isso, ela venceu qualquer argumento que eu tivesse para manter a vigilância do homem em seu trabalho, e segui para o IML.
Ao chegar, deparei-me com uma moça coberta com um lençol. Seria certamente belíssima, se Isabella não tivesse rebatido o seu escalpe e coberto seu rosto em um emaranhado de pele e cabelo.
Ao lado, na mesa, repousava um cérebro cortado e um emaranhado do que se parecia com macarrão de udon (eu já fui mais afetado por isso, mas, hoje em dia, nada me impediria de ir comer na Liberdade logo depois de ver uma autópsia dessas).
– Ok, Isabella, aqui estou. Não estou vendo nada de Bela, nem de Convulsiva.
– Ah, desculpe – ela falou, rebatendo novamente o escalpe.
Aí, sim, pude observar a face da moça: era, de fato, muito bonita, embora, devo dizer, talvez de forma algo exagerada. Acho que já tinha feitos procedimentos estéticos demais e talvez fosse magra em demasia. As saboneteiras já eram claramente visíveis, e não havia sequer um grama de gordura no tórax – mas ostentava seios redondos e perfeitos de quem tinha colocado silicone.
– Quer me explicar por que tem uma modelo com a cabeça aberta aqui?
– Vamos, vamos, avalie, André! Eu tenho certeza de que você consegue chegar a alguma conclusão! – disse ela, como de costume. Ela achava que todo mundo conseguiria seguir o seu incrível método dedutivo que poderia descobrir tudo em um piscar de olhos, mas, é claro, não era bem assim. Nem todo mundo tinha aquele cérebro dela.
Respirando fundo, descobri o corpo; sua cavidade abdominal ainda estava aberta, e os órgãos haviam sido dissecados um a um. De dentro do intestino, Isabella havia removido aquele emaranhado branco e esquisito. Afora o fato de ser muito, muito magra, eu não consegui obter muita coisa. Dos órgãos dispostos, vi o cérebro com umas lesões esquisitas, que pareciam grãos, e aquele bolo de macarrão estranho.
– Nada, mesmo?
– Ahm… Uma paciente jovem. Diria uns 30 anos. Casada, ao que parece… E quando se casou, era mais gorda. Me parece que emagreceu recentemente… E que se preocupa muito com estética. Acho que fazia botox. E injetou algo nos lábios. Aqueles procedimentos da maçã do rosto, também.
– Demonização facial, você quer dizer?
– Não é harmonização o termo correto?
– Depende do seu ponto de vista.
– Bem, isso é o máximo que eu consigo.
Isabella se postou entre a moça e a mesa com os órgãos.
– Conheça Samara, 39 anos.
– Caraca, bem conservada, ehm?
– Deu entrada no hospital ontem de madrugada por quadro convulsivo. Os médicos não conseguiram controlar a tempo e ela faleceu. Quando fui examinar o seu cérebro, pensando de repente em algum acidente vascular por uso de drogas, o que foi que encontrei?
– Lentilhas?
– Quase isso. Lesões de cisticercos.
– Cisticercose? Aquela doença do porco?
– Exatamente. E não era só o cérebro dela, o corpo também estava cheio de lesões musculares. Pedi para fazer uma radiografia do corpo inteiro.
– Mas, de onde veio isso? Ela morava na fazenda, ou algo assim?
– Não. Residente de área nobre da cidade. Nada que faça pensar em problemas com consumo de comida contaminada, nem nada assim. Além disso, aquele bolo de tênias me chamou a atenção. E este não foi o primeiro caso: foi o segundo.
– Como é?
– O segundo caso de uma mulher muito bonita que pego com morte por convulsão. Ela também tinha um bolo de tênias no intestino e lesões de cisticerco em tudo que é canto do corpo.
– O que você quer dizer com isso, Isa?
Afinal de contas, quando a Isabella me chamava para alguma coisa, era porque estava suspeitando de um crime – e eu não conseguia ver aquilo como um complô de vermes para se vingar de mulheres bonitas.
A não ser que competidoras vingativas de concursos de Miss São Paulo estivessem querendo se livrar das vencedoras, jogando tênias na comida, mas, ainda assim, não fazia o menor sentido.
– Eis a minha teoria: elas se contaminaram de propósito.
– Como é? Quem iria querer pegar um negócio desses de propósito, Isa? Não faz o menor sentido!
– Pense comigo. Você é uma pessoa obcecada por beleza. Já fez de tudo para emagrecer, mas continua se achando gorda demais. Já fez até cirurgia. Talvez tenha um transtorno de imagem, não consiga se ver como realmente é. E, aí… Decide engolir uma tênia. Talvez não o verme, mas o ovo. E esse ovo eclode, e gera filhotes, e logo você tem um monte de tênias no seu intestino, que estão comendo por você, fazendo você emagrecer.
– Isa, isso é insano! E não explica a convulsão!
– Ah, explica sim. Porque, um belo dia, você conclui que chegou ao peso que desejava. Muito bom. O que precisa fazer agora?
– Se livrar das tênias?
– Exatamente. E, para fazer isso, o que você toma?
– Vermifugo?
– Isso mesmo. Mas, sabe qual é o problema de tomar vermífugo quando você tem um monte de cisticercos no cérebro?
– Você… Ahm… Convulsiona?
– Perfeito. A morte desses seres leva a um processo inflamatório intenso e difuso no cérebro. O cérebro inchou, elas convulsionaram e morreram em poucas horas.
– Tá bom, Isa, tá bom – falei, esfregando as têmporas. Aquilo era demais para a minha cabeça. – Mas, o que você quer de mim? Você me tirou da vigilância só para ver uma bizarrice?
– Não só isso. Você precisa descobrir como elas estão fazendo isso. Alguém está fornecendo as tênias e explicando sobre o tratamento. Em algum lugar tem algum maluco achando que isso é um bom jeito de perder peso. E, se a gente não fizer nada, mais mulheres vão morrer.
– Como raios eu vou achar esse cara, Isa?
– Não sei. O detetive é você.
Suspirei; estava quase saindo da sala, quando me lembrei:
– E o caso do Silveira? Como você sabe? Não vai me dizer que já viu a roupa dele que volta da academia e que ela não está suja, ou então, está molhada com água, mas não com suor?
– Admiro sua criatividade, André, mas não. Ele frequenta a mesma academia que eu – ela disse, simplesmente.
Touché.
Minha agência não tinha pernas o suficiente para ficar fazendo esse tipo de investigação, especialmente sem ter um cliente pagante, mas eu fiquei me debatendo internamente, como de costume, sobre o que fazer. Tentei ligar para o Roberto, antigo membro da minha equipe no DHPP, mas que tinha ficado por lá quando eu resolvi abrir minha agência de investigação.
– Obrigado pela preocupação, Dias, mas a gente não tem como dar conta de mais isso. Já tentou falar com o CRM ou coisa do tipo?
– Eu não sei nem quem é a pessoa. Como vou falar com o CRM?
– Vigilância sanitária, então.
É claro que a vigilância deu tão pouca importância quanto o Roberto.
Sendo assim, e sabendo que o Silveira não encontraria a sua amante até dali a dois dias pela manhã, eu decidi ir conversar com a família da Samara. Ela era casada com um homem de quarenta anos de idade e havia deixado para trás um filho de dez e uma filha de oito anos, que estavam, é claro, arrasados.
– Foi tão súbito – disse o marido. – Ela nunca teve nada…
– Seu Anderson, me diga uma coisa… Ela falou alguma vez sobre métodos para perder peso? – tentei.
– Perder peso?
– Sim. Ela fazia regimes, coisa do tipo?
– Ah, fazia, sim. O tempo todo. Usou até aquele tal de Ozempic… Perdeu bastante tempo, mas daí ela passava mal toda vez que queria beber ou comer doce, sabe?
– E recentemente? Ela estava com alguma dieta nova, alguma coisa assim?
– Eu não… Não sei. Mas, seu Dias… No que isso importa?
– Sua esposa tinha um bolo de vermes na barriga – falei. – Eles causaram uma inflamação no cérebro.
– Vermes?
– Sim. Acho que seria interessante, se possível, que vocês fizessem exames, também. Vai nos ajudar na investigação.
– Investigação?
– Tenho razões para acreditar que alguém está vendendo uma nova fórmula de emagrecimento que envolve engolir vermes.
A ideia era simples. Se o marido fizesse um exame de fezes e radiografias e elas não mostrassem nada – nem os vermes, nem as lesões comuns dos músculos –, isso significava que apenas a mulher havia se contaminado, o que era algo relativamente estranho, já que eles deveriam compartilhar a comida entre eles – e, portanto, a fonte de contaminação seria a mesma. Demorou alguns dias, mas conseguimos os exames, que vieram normais.
– Posso pedir para um colega meu dar uma olhada nos aparelhos eletrônicos da Samara?
Anderson não ficou muito confortável com a ideia, mas o fato de que apenas ela havia se contaminado realmente o deixou com a pulga atrás da orelha. Assim, levei o laptop e o celular da moça para que Jonas desse uma olhada. Jonas tinha sido da minha equipe na polícia civil e depois no DHPP, e era um excelente hacker. Tudo o que eu precisava de eletrônicos, pedia a ele, até porque eu sempre fui e continuarei sendo um ignorante digital. Além disso, eu lhe devia muito pelas ajudas que nos dera nos casos do Anatomista e do Artista.
– Oh-là-là – ele falou, após algo em torno de meia hora.
– Achou algo interessante?
– Diversas fotos dela pelada.
– Jonas! Sério!
– Tá, mas, além disso e da obsessão por beleza e pela própria imagem… Tem algumas conversas interessantes aqui em um grupo.
– Um grupo?
– Várias mulheres, mães de trinta, quarenta anos. Um grupo que discute sobre perda de peso e tudo mais… E elas mencionam sobre um método para perda de peso que envolve engolir ovos de tênia.
– Sério mesmo?
– Sério. Loucura, né?
– Não acredito nisso – falei, balançando a cabeça.
– Eu sei que é bizarro, mas é isso aí, Século XXI, beleza a qualquer custo. Se bem que isso aí é um método que já usam faz uns séculos, ehm.
Depois de tantos anos na polícia, queria poder dizer que nada mais me abalava. Mas, morrer nas mãos de um criminoso, tudo bem, vá lá. Agora, morrer por opção própria, só para poder emagrecer? Isso era demais para mim.
– E fala onde conseguiram isso?
– Parece que tem um protocolo específico de tratamento… Mas é um negócio bem dark. Acho que vou precisar me infiltrar.
– Como é?
– Este aqui é um grupo aberto. Vou me adicionar com o celular da Samara, fingir que sou uma mãe querendo emagrecer. Joana. Maravilha. E… Pronto. Me dá uns três dias.
Eu olhava para Jonas sem acreditar.
– Que foi? Adoro fazer isso. Trabalho de infiltração digital! E a melhor parte é que, agora que não faço mais parte do DHPP, ninguém vai ficar olhando feio para mim por fazer essas coisas meio… Nebulosas.
– Eu fico – respondi, na lata.
– Você quer descobrir quem é o maluco que está fazendo as mamães morrerem ou não?
– Tá bom, Jonas, tá bom…
De fato, três dias depois Jonas me chamou com respostas.
– Encontrei um cara na Dark Web – ele falou. – Ele se diz ser médico. Diz que consegue fazer você perder o peso que quiser, seguindo o protocolo dele. Totalmente seguro.
– E como funciona?
– Você faz o pagamento em bitcoins para esta conta… E ele envia os bichos para você.
Eu me sentei ao lado, algo decepcionado.
– Adianta seguir o dinheiro?
– É difícil. Deve conseguir desviar várias vezes entre diversas contas antes de chegar à verdadeira.
– E a origem do envio?
– Difícil, também. Nada impede que ele ponha no correio de um lugar longe da sua casa e usando um nome falso.
– Se tentar entrar em contato com ele?
– É tudo direto pelo site. Não tem como entrar em contato; o telefone não existe, os e-mails nunca respondem. As orientações são diretas: quando perder o peso desejado, tome tais medicamentos.
– Mas o vermifugo! – falei, esperançoso. – Precisa de receita!
– Precisaria, se não viesse junto com os ovos.
– Merda – respondi, desabando.
– Pois é. É bem acertado. Tudo feito de uma forma que realmente não tenha como descobrir.
– E o nome do médico? Registro? São verdadeiros?
– Então… Não. Ele está usando um registro de um médico do Pará que já morreu há muito tempo.
– Será que adianta passar para o CRM?
Jonas se virou na cadeira e me encarou.
– Olha, chefe, do jeito que eu vejo… O máximo que o CRM vai conseguir é, talvez, derrubar esse site. Mas outros vão surgir. Enquanto houver moças por aí querendo emagrecer a qualquer custo, vamos ter oportunistas enricando com métodos malucos. Tome as medidas cabíveis, chefe, mas… Estamos de mãos atadas. Esses caras são as verdadeiras tênias, e nós somos o sistema imunológico, apenas vendo eles crescerem, sem ter o que fazer.
Naquele mesmo dia à noite, eu estava bastante desanimado.
– O que foi, querido? – perguntou Isabella, enquanto me via remexer o macarrão (que me trazia lembranças ruins, diga-se de passagem).
– O caso das belas convulsivas.
– Ah, sim! – ela falou, juntando as palmas, animada. – O que deu? Pelo jeito, não foi muito bem.
– Você estava certa, como de costume – respondi. – Elas estavam comprando ovos de tênia pela internet. Um negócio muito bem acertado. Você paga em bitcoins, o cara envia as tênias e o remédio para você tomar quando já tiver emagrecido o suficiente. Exatamente como você previu.
– Então, por que o desânimo?
– Porque não temos como pegar esse cara. Eu passei todas as informações que temos para o CRM, a vigilância sanitária, o departamento de crimes digitais… Mas eu duvido que consigam. Podem levar anos, e é só ele se mudar. Ele não precisa estar nem aqui! Pode trabalhar em outro país, algum lugar que não extradite para o Brasil.
Isabella suspirou junto comigo.
– Descobri a verdade, mas não tenho o que fazer com ela – disse.
– Bem, ainda temos algo a fazer. Não existe crime perfeito, não é?
– Sim…
– Quanto mais pessoas orientarmos sobre os perigos desse método, menores as chances de este cara continuar sobrevivendo.
Dei de ombros.
– Ele vai achar outro meio.
– Ah, vai. Eles sempre acham. Mas, quem sabe, um que ao menos não cause a morte de ninguém…
Olhei para o macarrão, tão parecido com aquele bolo de tênias, e, por fim, empurrei o prato.
– Podemos pedir um hambúrguer, por favor?
– Só se for com carne bem passada – ela respondeu, sorrindo.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais