Assalto a mão armada
O povo do Pernil sempre tem muita coisa com que se preocupar: o desemprego, a violência, a inflação (não só do preço, mas também do ego dos seus políticos e, por que não, dos influencers que eles seguem nas redes sociais, último fio de esperança de suas vidas sofridas)… Mas, ultimamente, a população específica de Santa Paula tem sofrido muito com uma coisa: dois caras em uma moto.
É, pareceria uma bobagem – por que se preocupar com dois caras em uma moto? Mas, em Santa Paula, isso significa apenas uma coisa: assalto.
E não foi diferente com o seu Asdrúbal, que estava com a sua Mevendes Benz¹ pela Avenida dos Bandeirolas², às onze horas da noite, quando o pneu furou. Ele parou lá no acostamento e ficou esperando o seguro chegar, quando, de repente, dois caras em uma moto apareceram. O coração de Asdrúbal, é claro, gelou.
– Perdeu, perdeu, perdeu, playboy! Passa tudo que tem!
Asdrúbal ergueu as mãos; na verdade, ele não tinha muita coisa. A carteira tinha ficado em casa, não estava de relógio, nem corrente; estava basicamente com um pijama e chinelos de dedo. Tinha, no máximo, um celular velho, que ia usar para pagar o pão que tinha saído para comprar, quando o pneu furou. O assaltante o tomou sem dó.
– A gente vai levar o carro, também! Essa belezinha vai valer uma fortuna!
– Olha, vocês bem que poderiam tentar, mas meu pneu furou.
Os dois assaltantes se olharam.
– Ô, droga, não dá nem pra ser assaltante direito no Pernil hoje em dia!
– Olha, a gente pode fazer o seguinte – disse Asdrúbal. – Vocês me ajudam a trocar o pneu, e pronto! Com o pneu trocado, a gente segue o seu assalto propriamente dito!
Os dois assaltantes se entreolharam; de vez em nunca passava alguém pela avenida naquele horário, mas, quem passasse, iriam achar que eles eram do seguro.
– Ah, tá bom, vai.
Eles guardaram as armas nos cintos e se puseram a ajudar; puxaram o macaco, estepe, levantaram o carro, trocaram o pneu, guardaram tudo, limpando o suor e as mãos. Asdrúbal estava plenamente satisfeito.
– Muito bom, pessoal! Agora, sim!
– Tá certo! Perdeu, perdeu, perdeu! Entra aí no carro e vambora!
Asdrúbal tomou a direção, um dos assaltantes foi no carona, apontando-lhe a arma, e o outro foi na moto, atrás, quase como um segurança particular. Mas, não tinham avançado nem 500 metros, quando o carro simplesmente parou.
– O que foi agora?
– Gasolina – disse o dono do carro. – Acabou.
– Ah, cara, fala sério!
O colega encostou ao lado, e o assaltante abaixou o vidro.
– Acabou a gasolina, acredita?
– Tem um posto aqui perto – disse Asdrúbal, todo prestativo. – A gente pode ir até lá, pegar um pouco de gasolina e voltar. O que acham?
O motoqueiro teve de concordar. O outro assaltante, que chamava Estevão (já estavam no ponto de trocar seus nomes, depois de tanto convívio), ficou no carona, aguardando; Maicou, também conhecido como Bolinha (não queira saber por quê), levou Asdrúbal na garupa, e os dois pararam em um posto um quilômetro à frente. Os frentistas, claro, imaginaram que fosse um assalto, mas Asdrúbal desceu erguendo as mãos.
– Venho em paz – ele disse. – Só preciso levar um pouco de gasolina para o meu carro.
– Putz, aqui não tem galão – disse o frentista. – Mas tenta no posto lá na frente.
Eles seguiram por mais um raio de cinco quilômetros, mas ninguém tinha um galão apropriado. Eles até compram uma Pesti de dois litros (não tinha Coca-grude, ou, por qual outro motivo iriam comprar Pesti?), mas, mesmo tomando tudo, ninguém quis encher uma garrafa PET, por não ser seguro.
– Olha, por que vocês não pegam gasolina da moto? Eu tenho um pedaço de mangueira.
Só que o pedaço de mangueira custava cincão, e Asdrúbal não tinha nada.
– Meu celular ficou com o Estevão, no carro!
– Merda – falou o Bolinha. – Aceita Pax?
O frentista passou os dados, Bolinha pagou a mangueira, e os dois voltaram voando para o carro. Estevão já estava babando no banco do carona –assaltar é trabalho duro, e ele merecia um descanso! Acordou de supetão, com Bolinha lhe dando um chute na perna.
– Bora trabalhar! A gente comprou as coisas, você passa a gasosa!
Destrambelhado, Estevão se levantou e olhou para a moto e a mangueira sem entender.
– Sério, mesmo?
Revirando os olhos, ele encaixou a mangueira no tanque da moto, puxou a gasolina e, claro, cuspiu no chão, morrendo de nojo, antes de colocar a mangueira no tanque da Mevendes.
– É bom caprichar, porque ela gasta pra caramba! – disse Asdrúbal.
Eles esvaziaram quase todo o tanque da moto, mas o mostrador do carro quase não se moveu.
– Tudo bem, ele diz que a autonomia é de… 25 quilômetros.
– Tá ótimo! – exclamou Estevão. – Bora, bora! Perdeu, perdeu!
– Sério que precisa disso, depois de tudo pelo que passamos? – comentou Asdrúbal. – Aliás, não quer dirigir?
O assaltante ficou surpreso.
– Eu? Dirigir uma Mevendes?
– É, eu não sei para onde vocês vão me levar, então, não faz sentido eu mesmo dirigir – disse Asdrúbal, com tranquilidade.
– Beleza! – exclamou o outro, e eles trocaram de lugar.
Assim, eles seguiram; só que, poucos quilômetros depois, quando estavam perto de acessar uma via duvidosa que os levaria para lugares ainda mais duvidosos, Bolinha teve de parar.
– Acabou a gasolina! – ele falou.
– Mas que saco! – reclamou Estevão. – Não vai caber a moto no porta-malas!
– Deixa, tem um posto aqui perto, eu vou encher – disse ele. – Segue o jogo, não fica parado que a polícia pega a gente!
Assim, Estevão seguiu, com Asdrúbal ao seu lado. E, assim que estavam longe o suficiente, Asdrúbal ergueu a arma de Estevão, que ele tinha deixado displicentemente caída diante do banco do passageiro, e apontou para a cabeça dele.
– Muito bom! Agora, pare ali.
– Ei, seu Asdrúbal, o que tá fazendo?
– O que parece que eu tô fazendo?
– Eu não tô entendendo, serião!
– Estou te assaltando. Vamos lá, me dá sua carteira… Deixa eu ver… Olha só, quanta grana! E o celular… Isso, entra aí no banco… Olha, que bolada! Fim de semana foi bom, ehm?
– É, a gente fez bastante serviço por causa do show da Taylor³…
– Maravilha. Transfere pra essa conta aqui, ó.
Sem ter outra opção, Estevão transferiu. Depois, Asdrúbal o fez sair do carro, deixar os tênis importados e a roupa de marca, e o deixou só de cueca na rodovia.
– Mas, seu Asdrúbal! – exclamou ele. – Eu não estou entendendo! Você… Você era pra ser o mocinho!
Asdrúbal, já no assento do motorista e ainda com o cano da arma apontado para ele, baixou o vidro blindado.
– E tu acha que eu consegui esse carro como? Trabalhando honestamente? Aqui é o Pernil, rapá!
E acelerou pela estrada afora.
¹ O nome deste carro é bastante autointuitivo: em uma época em que todo mundo queria carro zero, a Mevendes despontou como um carro com ótimo preço de revenda. O normal era o carro desvalorizar 50% no momento em que saía do pátio da concessionária, mas, por uma espécie de cartel da Mevendes, eles conseguiram inflacionar os preços de revenda por muitos anos, e, daí, surgiu o nome da marca. Sem mencionar que isso impulsiona o consumismo, porque, se é fácil vender o carro, os ricões que o compram vão querer trocar todo ano.
² Os Bandeirolas eram uns exploradores pernileiros de séculos passados que foram elevados a status de heróis. Ninguém sabe exatamente por quê: na verdade, eram só uns mercenários que saíam por aí roubando e escravizando. O único lado bom de todas as suas atividades é que ampliaram as fronteiras do Pernil – e, se não fosse isso, talvez como o Chilli, o Pernil teria uma forma de kafta no espeto, talharim, planária ou coisa parecida, e ninguém merece morar em um país com esse nome. Então, de certa forma, parabéns aos bandeirolas*!
* Ah, sim, quase esqueço de dizer: eles chamavam bandeirolas, porque andavam por aí com bandeiras penduradas nas costas, para serem mais fácil de se encontrarem quando se perdiam na mata (o que era pra lá de comum). Também serviam de alvo fácil para as flechas dos índios, o que fala meio contra à sua inteligência, mas aí é outra história.
³ Taylor JBS. Ela tinha outro nome antes, que não podemos mais dizer, por uma questão de briga de marcas, mas que era o mesmo de uma empresa de produtos congelados que a patrocinava. Quando trocou de patrocinador, em uma compra bilionária, Taylor teve, também, de trocar de nome. Ela está envolvida, aliás, em várias histórias bizarras e processos, como quando processou a Lady Baba por usar um vestido todo feito de bifes (é, isso mesmo, bifes. A população pernileira passa fome, mas o pessoal dos Emirados Unidos da Arrogância (EUA) usa comida como roupa). O motivo? Lógico que não foi pelo insulto consumista. É que ela estava usando indevidamente o seu patrocinador.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais